“Homenagem” à ilusão e aparência, ao excesso e à decadência das máscaras sociais

Fontes de sentido

Existem camadas fundamentais de proteção contra a loucura, círculos concêntricos entre si que, quando em operação, mantêm a loucura afastada. Refiro-me à loucura como uma condição específica: a perda do alicerce da existência, quando o único ponto de continuidade é o corpo — a unidade biológica tangível que persiste, mesmo quando tudo no plano simbólico desmorona. Nesse estado, o corpo se mantém como um fato empírico inquestionável: o ser-coisa que permanece, apesar do vazio que consome a mente. Uso o termo ‘loucura’ porque, para o ser humano, a plena existência não se restringe ao corpo. Este, embora regido por leis precisas e sendo o fundamento da vida individual, é insuficiente por si só. Somos seres que necessitam do simbólico, da linguagem, dos significados que estruturam e sustentam o ‘eu’. A loucura, então, é esse hiato de percepção entre um corpo vivo, independente, e uma mente figurativamente morta. É uma situação absurda que, por vezes, pode se resolver de maneira extraordinária: a mente morta faz o corpo também morrer.

É claro que há uma relação intrínseca entre o físico e o simbólico; talvez, de fato, sejam expressões de uma mesma extensão, como pensava Espinosa. No entanto, para fins deste argumento, adotarei minha definição e considerarei a loucura como um recuo, uma inflexão do ser em direção ao corpo. Trata-se de um corpo operando conforme suas próprias forças vitais, enquanto o ‘ser’ funciona apenas como um espectador atônito.

As proteções que evitam ou contornam esse estado de loucura são, ao menos as mais importantes, as seguintes:

O Amor

O amor, ou seja, a existência de uma relação amorosa entre duas pessoas, é uma força capaz de sustentar o ser, mesmo que, por vezes, envolva dor. Sem o amor — e, sobretudo, sem a capacidade de amar de maneira prática — o ser se vê desamparado, privado de parte de suas forças vitais. O corpo, enquanto potência, pode ser acionado em diversos contextos, como um cavalo que responde às rédeas (pelo menos enquanto ainda mantém suas forças vitais; isso muda drasticamente quando essas forças se esgotam). Assim, o amor surge como uma forma de mobilizar o corpo, insuflando-lhe energia e vida.

O amor articula as dimensões física e simbólica, tendo como eixo central o falo, ponto de contato entre dois corpos e epicentro do prazer. O falo, nesse sentido, não é um órgão (sexual; Freud), mas o conduíte simbólico de uma experiência vivida de forma simultânea e integral por dois seres. Não ‘pertence’ a um ou outro dos amantes; ele representa a unidade metafórica na qual ambos se articulam reciprocamente. O falo é, em última instância, a essência da corporidade sexualizada, um significante estruturador (Lacan), uma transitoriedade, isto é, a condição para o trânsito de estados: estados físicos variados entre si, mas também o trânsito do físico e do mental (mesmo ‘espiritual’).

Sem essa dimensão sensual, o amor se transforma em algo diferente — talvez sublimado, deslocado, mas não menos importante. Poderia, por exemplo, assumir a forma de uma densa amizade. Por sua vez, apenas o componente físico, embora potencialmente gratificante para o cérebro (e, por conseguinte, para o indivíduo), é um estado isolado, sem transição com outros estados. Além disso, há um limite para a sensualidade pura, que, pior ainda, pode aprisionar o indivíduo no invólucro de seu próprio corpo, ou seja, o impedir de transicionar entre diferentes estados e afetos.

A Crença em Algo Maior

A segunda proteção, independente de questões de costumes, nível intelectual, contexto social ou histórico, é a crença em um outro mundo, em um Deus, ou, em suma, em uma religião. Embora haja, nessa crença, problemas como ilusões, delírios e formas de exploração e alienação, é inegável que acreditar em uma vida após a morte oferece consolo. A religião proporciona a garantia de que os absurdos vividos aqui têm, ao fim, algum sentido.

Enquanto forma institucionalizada de relação com o sagrado, a religião é um poderoso mecanismo de sustentação de significados, organizando a vida desde seus elementos mais básicos — como nascimento, sofrimento, união e morte. Assim, o ser humano fica protegido da loucura. Seu corpo não é apenas um organismo esplêndido, embora efêmero e mortal, mas é também templo, receptáculo, vaso e, novamente, um conduíte para o transcendente. Toda a aridez da mortalidade, da doença, da dor e do sofrimento é ressignificada em uma narrativa de salvação, glória e integração ao “Todo”, representado por Deus: fonte de toda a vida, origem de tudo e razão de nossa existência.

A Família

A família é uma instituição central na vida humana, responsável por consolidar os principais guias morais e valores que moldam a existência. É nela que aprendemos a distinguir o certo do errado, entendemos nosso papel no mundo e formamos as primeiras percepções sobre a própria realidade. Para muitos, a família é o universo de referência, seja no núcleo restrito — pais e irmãos — ou no núcleo ampliado, que inclui tios, primos e outros parentes. Além de filtrar a realidade para seus membros, sobretudo antes de estes desenvolverem crenças próprias, a família carrega um conjunto implícito de propósitos, como preservar ou ampliar seu poder, algo evidente em famílias que compartilham negócios ou perpetuam tradições. Muitas vezes, pais mais possessivos continuam a influenciar ou vigiar seus filhos mesmo após a saída deles de casa, criando uma dinâmica grupal que impacta seus membros tanto positiva quanto negativamente.

Com o tempo, aqueles que formam suas próprias famílias tendem a reproduzir, em maior ou menor grau, as influências da família de origem, enquanto também estabelecem novas dinâmicas e valores. O casamento, como ponto central dessa formação, combina diferentes perspectivas sobre o que significa “ser família”, misturando sobreposição, adaptação e síntese. Essa nova unidade pode se tornar uma fonte de proteção contra a loucura, fornecendo aos seus membros ideais, objetivos e valores que os orientam no mundo, ainda que esses elementos sejam, muitas vezes, herdados do núcleo original.

Embora inserida no mundo, a família mantém um certo grau de isolamento, funcionando como uma âncora emocional e prática. Ela é um ponto de partida e de retorno, uma base onde seus membros encontram orientação, segurança e, em última instância, sentido para navegar as complexidades da vida. Por exemplo, um jovem casal que acaba de ter um filho: é inegável, exceto se sejam uns irresponsáveis (e, de fato, estes existem aos montes, talvez sendo mesmo a regra), que farão do filho, da sua criação, desenvolvimento, florescimento e futura autonomia seu centro prioritário. Até o trabalho ganha outro sentido, pois, em parte, se trabalha para prover a família. Um filho, para talvez a grande maioria (a massa) da população que se engaja em projetos de longíssimo prazo, talvez seja a grande referência, uma importante senão fundamental bússola e fonte imediata de sentido.

O dinheiro

Existe uma instituição que, no mundo de hoje, representa o poder em estado puro: o dinheiro. O dinheiro é uma instituição abrangente o suficiente para incorporar dentro dele trabalho, carreira, profissão, atividade, capital, mercado, dívida, crédito. Ter dinheiro é ter poder. Não apenas poder de comprar coisas, mas o de ser respeitado, de influenciar pessoas, até mesmo países inteiros. A busca pelo dinheiro traz consigo uma infinidade de ações que, sozinhas, podem consumir a vida de uma pessoa. Tornar-se rico, ter uma conta bancária recheada, poder comprar o que se deseja, ostentar, ou meramente saber que se tem. Com dinheiro, as pessoas te buscam, querem te ouvir; as pessoas te servem, se submetem, colocam suas energias em função de você (seja você uma empresa ou não). O dinheiro é status, posição social. Para consegui-lo, o indivíduo precisa engajar-se em algum tipo de atividade, seja profissional ou não. Isso consome tempo. Mas, sobretudo, isso orienta, canaliza, encaminha e sustenta uma busca; sustenta o desejo (nem que o desejo seja o desejo de ter mais dinheiro; o poder que visa a mais poder; “vontade de poder”). Dá um fio condutor para uma vida inteira.

Empreendedores, como se diz, não pensam no dinheiro, mas sim em revolucionar alguma coisa. Pode ser, nunca falei com um empreendedor de verdade. Talvez a adrenalina de começar algo do zero, ou de transformar algo que já exista, o sentido intrínseco desse tipo de coisa, talvez isso seja o suficiente ou mesmo seja o combustível da ação empreendedora. Mas não há empreendedores pobres, quebrados; quer dizer, até existem — na verdade, são a maioria. Mas isso não os faz “vibrar”, o fato de estar quebrado mas ainda assim continuar engajado, comprometido, envolvido até a alma com sei lá o que esteja empreendendo. Não, é preciso que tal atividade empreendedora gere dinheiro. Por si só, em que pese algum discursinho barato dizendo o contrário (em geral, usando alguma outra das instituições acima mencionadas), é possível estruturar uma vida inteira em torno da busca, ampliação e conservação de dinheiro/poder — se isso é justificável, viável, ou mesmo desejável eticamente, não é o ponto para este argumento.

Em outro momento, tentarei abordar a loucura que se insinua quando uma ou mais dessas fontes protetoras se rarefazem ou simplesmente desaparecem. Elas podem se sobrepor, reforçar-se mutuamente ou, ao contrário, anular-se umas às outras.

Repetição e vulnerabilidade

Assisti ao filme Jeanne Dielman, 23, quai du Commerce, 1080 Bruxelles há algum tempo, talvez uns cinco anos, por indicação de um aluno meu à época. Lembro-me de ter gostado do filme de Chantal Akerman, embora ele tenha me causado algum incômodo. Entre outras coisas, é um filme um tanto claustrofóbico, já que praticamente toda a narrativa se passa dentro do apartamento de Jeanne Dielman. Além disso, a própria protagonista é uma figura inquietante. Por fim, há a temporalidade do filme, com mais de três horas de duração: tudo o que vemos na tela acontece em tempo real. Por exemplo, assistimos à chaleira começar a ferver desde o momento em que Jeanne liga o fogo até quando a água finalmente ferve e o apito soa. Creio que quase todas as cenas seguem essa temporalidade natural dos eventos, gerando certo incômodo em um espectador do acelerado século 21.

Hoje, o filme ressurgiu para mim de uma forma completamente nova e, francamente, assustadora. Estava ouvindo um podcast do excelente professor de política britânico David Runciman. O programa, de altíssima qualidade, combina conteúdo rigoroso com perspicácia, humor e inteligência. Organizado em séries temáticas, neste caso tratava-se de uma sobre grandes filmes, e foi ali que ouvi o episódio dedicado a Jeanne Dielman.

Jeanne Dielman, 23, quai du commerce, 1080 Bruxelles (1975) | MUBI

Cena do filme Jeanne Dielman, 23, quai du Commerce, 1080 Bruxelles (1975)

Na interpretação de Runciman, o filme de Akerman é, antes de tudo, sobre controle. E o controle, no caso de Jeanne, manifesta-se na ritualização exagerada de atividades cotidianas banais. No filme, ela é uma dona de casa extremamente metódica. Cada tarefa — descascar batatas, lavar o banheiro, tomar banho, arrumar a mesa para o jantar com o filho, com quem divide o apartamento — é executada sempre da mesma forma. Nessa repetição, Jeanne encontra conforto e previsibilidade. Acompanhá-la nesses rituais é ao mesmo tempo estranho, misterioso e hipnotizante, como destaca Runciman. Ele questiona: como ninguém além dos espectadores a observa realizando essas tarefas, estaria Jeanne consciente do que faz? Em certo nível, provavelmente não, já que são gestos automáticos, parte de sua “memória muscular”. Contudo, Runciman sugere que há ali uma performance: Jeanne faz tudo isso para si mesma; ela é sua própria plateia. Ao agir assim, ela encontra conforto em fazer tudo “certo”, mesmo sob o peso opressivo do trabalho doméstico.

A partir disso, Runciman propõe uma segunda leitura fascinante: o filme também é sobre escolha. Sobre o dilema existencial de escolher — mesmo sabendo que muitas escolhas são irrelevantes. Por exemplo: onde, quando e como descascar uma batata? O ato em si, a hora de começar, o método a ser usado, são decisões minúsculas, sem grande importância. Contudo, essas escolhas precisam ser feitas. No contexto da rotina doméstica, essas “micro-escolhas” parecem triviais, mas são inevitáveis. Jeanne, para lidar com isso, hiper-ritualizou quase tudo. Dessa forma, eliminou qualquer espaço para dilemas ou ambivalências. Mas isso não dura. A menor quebra nessa rotina cuidadosamente construída é suficiente para desestabilizá-la, como quando as batatas cozinham além do ponto. No universo do filme, isso é uma catástrofe que abala Jeanne profundamente.

Por fim, Runciman oferece uma terceira interpretação: apesar de toda a ritualização e do controle aparente, Jeanne é profundamente vulnerável. Essa visão me fez reconsiderar o filme, especialmente como psicólogo, pois sei que a personagem demonstra traços de transtorno obsessivo-compulsivo. Para quem está nesse estado psíquico, manter o controle é fundamental. Na superfície, Jeanne parece controlar sua casa e sua rotina com perfeição, mas tanto ela quanto sua casa estão inseridas em um contexto maior. O apartamento está num prédio, que está numa cidade, dentro de uma sociedade. Runciman destaca um aspecto que evidencia essa vulnerabilidade: além das tarefas domésticas, Jeanne recebe homens em casa e é paga por encontros sexuais. As cenas de sexo não são mostradas, mas vemos a preparação e o momento em que os homens saem. Jeanne faz tudo isso com o mesmo mecanicismo ritualístico, e o dinheiro recebido é poupado.

Entretanto, Runciman sugere que poupar dinheiro, no contexto do filme, é outra ilusão de controle. A inflação no final dos anos 70 era especialmente agressiva. Assim, o ato de economizar dinheiro, que parece oferecer segurança, é na verdade fútil. Ao depositar o dinheiro no banco, Jeanne perde completamente o controle sobre o que acontecerá a seguir. A inflação destrói o valor do dinheiro e, por extensão, invalida todo o trabalho que gerou esse dinheiro. Para Runciman, essa vulnerabilidade econômica reflete a inflação de suas ações ritualísticas: tudo o que ela faz, toda a sua tentativa de controle, é corroído. Jeanne confia nesse sistema para manter sua vida burguesa e seus rituais, mas essa confiança é apenas fantasia. No fundo, não há controle algum.

Nos momentos finais do filme, Jeanne, após limpar o apartamento, senta-se em uma poltrona, com dificuldade para respirar. Respirar torna-se, então, um ato de escolha e, como tal, um dilema, um problema existencial. Ela não tem certeza se sabe ou mesmo se deseja respirar. Um terror instala-se nela — um terror vinculado à necessidade primordial de tomar uma microdecisão: respirar. Algo que, naturalmente, seria automático transforma-se em uma questão consciente, exigindo a intervenção de Jeanne, de sua vontade. O controle que ela tenta exercer em sua vida entra, assim, em uma espiral de colapso, atingindo seu ápice paradoxal: o que deveria ser natural e automático torna-se objeto de deliberação, de ocasião ou palco para a emergência da angústia.

Runciman conclui dizendo que este é um filme em que as grandes coisas são pouco importantes, enquanto as pequenas coisas se revelam absolutamente existenciais. Por exemplo, um evento significativo no filme é Jeanne matando um homem. No entanto, essa ação, que poderia ser vista como central, é tratada quase como algo menor, irrelevante no contexto da narrativa. Por outro lado, pequenos gestos, como a preparação de um café, tornam-se os momentos mais importantes. Eles não apenas ocupam grande parte do tempo, mas demandam um nível profundo de implicação emocional e psicológica da personagem.

Perguntas e Cia, 1

Você descobre melhor o seu desejo quando fracassa ou quando tem sucesso? Quando persiste ou desiste?

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É possível sentir-se motivado, energizado, sem um propósito? É possível construir sentido sem um objetivo?

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O que é uma pessoa corrupta? Alguém envolvido na política ou na administração pública? Ou seria uma pessoa que, conforme suas circunstâncias mudam, também altera suas ideias, valores e comportamentos de forma correspondente?

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Como espera que os especialistas em economia da mídia digam algo diferente do que sua própria subjetividade os faz enxergar no mundo? Essa eu respondo: em um mundo onde a financeirização dominou todos os espaços, o que temos são subjetividades maquínicas, agindo como máquinas, no sentido de uma máquina animada por um código. Será que estou indo longe demais ao afirmar que essas subjetividades nem sequer são reais, mas, sim, a manifestação do “capital” como força propulsora, como “ânima” (código) do mundo ocidental? 

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O caminho para a justiça social, e até mesmo para a afirmação individual, seria o da paz ou da guerra? Da não-violência, mesmo diante das maiores barbáries, ou da violência? O caminho está mais próximo de um Martin Luther King ou de um Malcolm X?

Sobre desistir – parte 2

O problema surge quando nos deparamos com um “ponto de não-retorno”, aquele momento em que permanecemos por tanto tempo no caminho de uma escolha passada, baseada em um desejo que talvez também pertença ao passado. Quanto mais avançamos nessa trajetória, mais, em teoria, sentimos que há algo a perder caso optemos por desistir. Por vezes, toda uma vida é construída sobre essa escolha, consolidada até o ponto em que algo essencial dentro de nós se extingue – algo que antes dava sustentação orgânica à nossa existência. Nesse momento, resta apenas a forma, o invólucro de um desejo que já não nos serve, como um casulo abandonado.

É como caminhar por uma estreita ponte de madeira e, de repente, perceber que os degraus terminaram. Sem suporte, começamos a cair, e a sensação é de um precipício infinito, onde só existe a queda. Frente a esse vazio, uma estratégia possível – e paradoxal – é não fazer nada: apenas continuar. O lado positivo de uma trajetória construída é sua própria inércia. É como desligar o motor de um carro no alto de uma colina; a energia potencial acumulada é suficiente para fazê-lo deslizar por bons quilômetros, mesmo sem engatar a marcha. Então, você simplesmente deixa o carro seguir.

É evidente que essa “estratégia” de enfrentamento não é das mais saudáveis. Em algum momento, ela transforma a pessoa por dentro, silenciosa e gradualmente. Imagine esta cena: você é um recipiente vazio. Alguém, ou algo, começa a despejar concreto dentro de você. O processo é lento, iniciando pelos pés. Demora muito, mas, com o tempo, o concreto alcança o coração. E continua a subir. Devagar. Sem que você perceba totalmente, embora consiga sentir de alguma forma, acaba completamente tomado – transformado em pedra. Firme, sólida, absolutamente “certa” de si mesma. Terrivelmente persistente.

***

Snow Storm: Steam-Boat off a Harbour’s Mouth, 1842, J. M. W. Turner

Persistir na adversidade. Eis uma verdade cultural quase universal. Se você adiciona a isso uma conotação religiosa, então chega à conclusão de que persistir na adversidade não é algo fortuito, mas, sim, uma provação divina, como ocorre com o personagem bíblico Jó. Deus nos sustenta enquanto atravessamos uma intempérie. Quando era seminarista, lembro-me de ter um santinho no qual uma trilha na areia começava com duas pegadas e terminava com quatro. Nos momentos difíceis, sem perceber, Jesus caminhava ao seu lado. Ou algo assim. Na essência, a ideia era de que não estamos sozinhos ou abandonados quando acreditamos que tudo está perdido.

Tenho plena consciência da força que uma crença como essa imprime em uma alma atribulada. Em versões seculares, a mesma moral é repetida incessantemente, como nos filmes de Hollywood. Acredito que a cultura americana seja o melhor exemplo de uma versão secularizada da história de Jó. Por lá, a subjetividade é tão pressionada a persistir, tão enclausurada em uma ideia espartana de força e coragem — de jamais jogar a toalha — que a única válvula de escape para racionalizar a desistência é a linguagem da patologia mental. Fulano não conseguiu “vencer na vida” (leia-se: persistir, resistir) porque sofria de depressão, crises de ansiedade, problemas de atenção, e assim por diante. Como toda cultura, a americana — e, por extensão, sua projeção no imaginário global via filmes hollywoodianos — é um espartilho tão apertado que se confunde com a própria carne.

Ao homem, como gênero, é legado o triste destino de uma virilidade constantemente posta à prova. Ao menor sinal de intenção de desistir de algo, a acusação logo vem em forma de questionamento do caráter masculino. Às mulheres, como gênero, é atribuída a preferência pelo “macho alfa”, uma aberração de indivíduo completamente doutrinado na cartilha da persistência, do “enduring”, das criativas e infindáveis estratégias de “coping” para continuar na luta, como um gladiador. Não há lugar para homens considerados fracos em uma cultura de pedra como essa — de resto, algo que também se observa em muitas outras culturas ocidentais, especialmente naquelas com uma história marcadamente ascético-religiosa.

Sobre desistir – parte 1

Na nossa cultura, desistir raramente é visto de forma positiva. A persistência é amplamente valorizada e exaltada como virtude. Quando alguém desiste de algo, as explicações costumam apontar para falta de força de vontade, caráter, ânimo, “estamina” ou coragem. O desistente é frequentemente percebido como fraco e pouco confiável.

Reconheço que, em determinadas situações, desistir pode ser prejudicial. Por exemplo, quando o objetivo é tornar-se pianista, é inegável que será preciso enfrentar muitos desafios. Essa escolha, por si só, já carrega uma exclusão: ao decidir seguir esse caminho, você voluntariamente aceita abrir mão de diversas gratificações imediatas em troca de uma possível recompensa futura. Um obstáculo – ou mesmo uma série deles – não deveria, por si só, ser motivo para abandonar um propósito.

O problema é que, em geral, tomamos decisões sem saber o que enfrentaremos pelo caminho. Voltando ao exemplo do pianista, no momento da decisão, imaginamos uma plateia extasiada aplaudindo nossa performance magistral. O resultado idealizado, antecipado no instante da escolha, é muitas vezes o combustível inicial. Porém, quanto mais fantasioso for o objetivo, maior pode ser a frustração ao lidar com a realidade. Assim, uma das razões para desistir é perceber que o caminho é difícil, tedioso, ou exaustivo demais para ser trilhado.

Persistir, por sua vez, é também uma forma de renúncia. Mas renunciar não é o mesmo que desistir. Renunciar significa aceitar os sacrifícios inerentes a uma escolha, adiando recompensas que, aliás, podem nem se concretizar. Afinal, o futuro é incerto, o sucesso não depende apenas de esforço, e as idealizações frequentemente sucumbem à dura realidade. Desistir, por outro lado, é algo completamente diferente.

Desistir implica abandonar uma decisão já tomada. Esse ato pode ocorrer em diferentes níveis: desistir de uma carreira, de um relacionamento, de um sonho. Também existem desistências cotidianas, como abandonar uma fila no supermercado ou deixar de procurar promoções entre diversas lojas. Em casos mais extremos, pode significar desistir de viver.

A desistência muitas vezes envolve cálculos racionais de custo-benefício: investimento versus retorno. Mas há algo mais profundo no ato de desistir. Trata-se da relação com o que realmente desejamos. Quando conhecemos nosso desejo, somos capazes de justificar, para nós mesmos e para os outros, o sofrimento temporário em prol de um bem maior no futuro – como o exemplo do pianista renomado. Esse mecanismo também é evidente nas religiões, onde pessoas renunciam a prazeres terrenos em busca da promessa de recompensas divinas.

De forma semelhante, persistir – o oposto de desistir – é sustentado pelo desejo. A questão central, então, é compreender o sentido do que se deseja, e não apenas seu significado social. Essas dimensões, no entanto, estão profundamente entrelaçadas. Pensemos no caso de muitos jovens brasileiros que aspiram ser médicos. Será que esse desejo é puramente pessoal? Difícil acreditar. Desde cedo, esses jovens são expostos a ideais e valores que exaltam a medicina, muitas vezes transmitidos pela família, pela mídia ou pelos pares. Com o tempo, os significados sociais associados à profissão vão se internalizando e se confundindo com o desejo individual. Em outras palavras, o que começa como uma expectativa externa pode se transformar na própria vontade do sujeito, carregando nuances particulares.

Sob a perspectiva do desejo, desistir significa abrir mão de uma escolha que parecia pessoal. Então, por que desistimos? Uma possibilidade é que o desejo que julgávamos nosso era, na verdade, o desejo de outra pessoa – dos pais, por exemplo. Nesse caso, desistir significa abandonar não apenas uma decisão, mas também uma parte de si mesmo que antes parecia central à sua identidade. Trata-se de um ato que exige enorme coragem, muito diferente da visão estereotipada de fraqueza frequentemente associada à desistência.

Desistir, nesse contexto, não é simplesmente recuar, mas abrir mão de certezas em troca de possibilidades incertas. Afinal, apoiar nossas escolhas no desejo dos outros oferece uma forma de certeza – ainda que apenas aparente. Os significados, que são herdados socialmente, tendem a ser mais estáveis e definidos do que os sentidos, que precisam ser construídos individualmente, comportando risco e profundas incertezas. Desistir pode ser um gesto profundo e transformador, capaz de desafiar convenções culturais e provocar uma reflexão sobre o que, de fato, constitui o próprio desejo. Na essência, discutir a desistência é discutir o querer – ou o não querer.

O jumentinho branco

Hoje, passando pela rua onde moro, vi um pequeno jumentinho branco atrelado a uma carroça. Isso é algo comum na paisagem da cidade. Quase sempre, fico atraído pelo animal. Gosto de observar sua expressão, que, em geral, transmite uma paciência inabalável. Hoje, ele estava ali, numa rua escura, parado, esperando seu dono buscar algo. Parado, calmo, passivo, obediente. Tão pequenininho, branco, numa rua escura, atrelado à carroça. Sabe-se lá de onde ele veio, sabe-se lá para onde vai. Pode ser perto, pode ser longe (mais provavelmente, longe).

Fico imaginando quando ele nasceu. Pelo que percebo, não é comum ver jumentos brancos pelas ruas. Mas esse jumentinho branco, quando nasceu, certamente chamou a atenção. E hoje, ao vê-lo na rua escura, não havia como não notar, nem como não se surpreender com o contraste: a rua escura, suja, esburacada, e o jumentinho branco, atrelado à carroça, passivo, obediente, resignado, com aquele olhar vazio, sem emoção, exceto pela aceitação do momento.

Logo me lembrei do jumentinho cinza-escuro e encardido do filme Balthazar, de Robert Bresson, sobre o qual já mencionei em outro post. Balthazar é o dócil animal que passa de dono em dono, de situação em situação, ora recebendo carinho e amor, ora (mais frequentemente) sofrendo ódio gratuito, agressão ou abandono. O ser humano faz quase nada, exceto usar o animal como instrumento, uma espécie de trator movido a sangue e músculo. O que podemos dizer sobre um humano que usa outro ser vivo como ferramenta? De certo modo, ele também se torna um objeto, tratando sua própria vida como um processo instrumental: pegar caixas, colocá-las na carroça, levar para um lugar X, despejá-las lá, cobrar por isso. E o ciclo se repete infinitamente, movido pela necessidade de sobrevivência.

Do ponto de vista moral e ético, sei que tratar um ser vivo como objeto só é possível porque um dos entes envolvidos domina o outro. O jumento não foi “criado” pela seleção natural com a “intenção” de ajudar o ser humano a transportar cargas. O uso pelo ser humano não é a razão de sua existência. Isso aconteceu porque, dotado de inteligência, o ser humano descobriu que o jumento é resistente, obediente, manso, passivo, resignado. Não exige grande treinamento, se é que exige algum. Basta mantê-lo preso, usar o chicote para “comunicar” direções e paradas, alimentá-lo e colocá-lo para trabalhar.

No filme de Bresson, Balthazar revela muito mais sobre os humanos que interagem com ele do que sobre si próprio. Não há como não traçar um paralelo entre Balthazar e a figura de Cristo. Imagine Cristo carregando a cruz, enfrentando seu calvário, sendo ridicularizado pelos passantes ou até açoitado. E, depois de toda a humilhação, sendo sacrificado na cruz. Nos evangelhos, não há vestígios de que Cristo estivesse com ódio das pessoas que o maltratavam, nem de autocomiseração ou ressentimento. É como se ele simplesmente tivesse de passar por aquilo. Para alguns, isso seria sinal de fraqueza, de ser um “cordeirinho” diante do mundo; para outros, é a expressão de uma coragem inabalável. Algo semelhante a Sócrates, que aceitou seu destino sem resistência. E a Balthazar, que, na foto que mencionei em outro post, aparece em seus últimos momentos de vida. Ele fora baleado porque seu “dono”, na ocasião, o usava para contrabandear mercadorias e foi interceptado pela polícia. Na imagem, Balthazar está cercado por cordeiros.

Alguém, como eu, passa e vê o jumentinho; ao vê-lo, pensa nas coisas que pensei. Outra pessoa poderia ver o carroceiro e enxergá-lo como um sobrevivente, catando os restos pela cidade para manter a si mesmo e à sua família vivos – vítima da exclusão social, econômica e política de um país à margem do capitalismo. Antigamente, quando essas duas interpretações surgiam em minha mente, eu me culpava por tê-las. Achava que deveria me concentrar apenas no carroceiro como objeto de minha inquietação, e mais, deveria atribuir a isso uma consciência política, acompanhada de uma força para “fazer algo”. Hoje, não sinto mais essa culpa. Hoje me deixo afetar pelo que posso ser afetado. Hoje tento não me culpar pelo que sinto. Somos muitos no Brasil; somos muitos aqui, nesta cidade onde vivo. Se cada um sentir algo, seja pela parte que for, isso já seria o mínimo necessário para mudarmos nossa visão de vida, do mundo, das pessoas e dos outros animais.

O cachorro

Assisti ao filme The heart of a dog, de Laurie Anderson, lançado em 2015. Nele, há uma menção à pintura abaixo, de Goya. Tudo o que diz respeito a animais, especialmente cachorros, toca algo profundamente emocional em mim. Neste filme-documentário, o cachorro ocupa um lugar especial, servindo como ponto de partida para reflexões sobre a vida, a morte, o sentido da realidade e o lugar do amor. A narrativa é conduzida pela voz da própria diretora, que entrelaça suas experiências de vida com esses temas. O filme se encerra de forma tocante, ao som da belíssima música de Lou Reed, Turning Time Around.

Francisco de Goya. The dog [1819-1823]

Há quem interprete essa pintura como a representação de um cachorro afogando ou afundando em areia movediça. Percebendo seu fim inevitável, solitário e desamparado, ele olha para cima, talvez na esperança de alguma ajuda. De fato, os vínculos entre cães e humanos remontam às profundezas do tempo. Assim, talvez ele aguardasse a providência de algum humano ou deus que viesse resgatá-lo. Vou prosseguir com as projeções e interpretações desta imagem.

A parte inferior da figura, mais escura, representa a terra, o mundo da vida. Já o vasto céu, de um dourado que se estende ao infinito, simboliza o etéreo, a impermanência, mas também o absoluto, a vastidão do Universo. A delicada cabeça do cachorro, quase mínima, é o ponto de interseção entre o imanente (a terra, o concreto) e o transcendente (o céu, o infinito).

A vida, no fundo, não é exatamente isso? Nosso corpo é apenas uma membrana, um ponto de consubstanciação provisória entre o pouco de matéria que nos permite tangibilizar o espaço e preenchê-lo, e o nada de onde viemos e para onde retornaremos. A própria Terra — o planeta, neste caso — não é senão outra frágil membrana desempenhando a mesma função. Não conheço as proporções matemáticas exatas, mas arrisco dizer que a materialidade da Terra, como ponto de massa situado no espaço e no tempo, é proporcionalmente ínfima em relação ao Universo, assim como nosso corpo (nossa massa) é ínfimo quando comparado à Terra.

O fastio do ‘homem moderno’

Gravura Melencolia I, de Albrecht Dürer (1514)

A sujeição da linguagem

Há uma passagem de um livro de R. Barthes em que ele discute o “fascismo da língua”. Segundo ele, o fascismo não consiste em impedir alguém de falar, mas em obrigá-lo a dizer algo. Ao falar, o simples ato de usar a língua já me insere em uma relação de poder. Assim, para Barthes, falar não seria apenas um ato de comunicação, mas também de submissão. Ao me expressar, já estou me sujeitando às estruturas normativas da minha língua. Soma-se, de um lado, a autoridade de quem faz uma afirmação e, de outro, o gregarismo de quem a repete.

A característica gregária da língua estaria presente nos próprios signos que a compõem. Um signo precisa ser reconhecido. O interlocutor que me ouve precisa validar o que estou dizendo — não apenas o conteúdo, mas também a forma. Sem esse reconhecimento, o circuito cotidiano da compreensão não se completa.

O mais interessante é que essa sujeição se aplica mesmo quando “falamos conosco”, no monólogo interminável de nossos fluxos de pensamento, no diálogo interno que constitui a consciência. Mesmo ali, na intimidade, nos sujeitamos. Há, internamente, uma “autoridade” que profere um determinado discurso (o “eu”?) e outra que o reconhece, conferindo-lhe alguma verossimilhança. Esse processo pode ganhar contornos obsessivos, paranoicos ou neuróticos, nos quais a repetição desempenha um papel crucial.

Portanto, para tentar escapar da sujeição, existem duas possibilidades: experimentar ou silenciar-se. De fato, o silêncio é uma forma de evitar as camisas de força embutidas na linguagem, com suas estruturas de poder e necessidade de reconhecimento pelo outro. Seria o silêncio, tanto interno quanto externo, uma forma de resistência? Já a experimentação consiste em explorar as franjas, as bordas e as fronteiras dos discursos institucionalizados.


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