O apego à vida

Fazia quatro dias que estava de pé em cima do telhado de um rancho. Foi levado até ali por puro instinto e sorte. A água do rio mais próximo subiu tanto que invadiu centenas de casa pelo caminho, incluindo a sua, da qual foi arrastado por um nado improvisado. Durante quatro dias ficou sem comer, sem beber e sem a menor chance de relaxar. Se descuidasse minimamente, caía sobre a água. E, caindo, muito provavelmente acabaria morrendo afogado. Quatro dias de músculos tensos, de dor nas quatro patas, cada uma delas com uma ferradura. Tais ferraduras, que em terra serviam de apoio firme, ali em cima do telhado eram uma ameaça de morte, pois tornavam tênue o ponto de contato com o telhado. Equilibrava-se sobre a parte firme deste último, composta por uma única madeira estreita e comprida. Não bastasse o malabarismo, também não parava de chover. Assim, encharcado, com fome, com dor e sede, ele permaneceu sobre o telhado. Ninguém veio em seu socorro, pelo menos não no início. Havia, como todo cavalo, sido projetado para desbravar a terra aberta, não para se manter rígido sobre um telhado, um ponto tênue que o segurava na fina navalha da vida. Portanto, não entendia absolutamente nada do que estava acontecendo. Só sabia que precisava ficar parado. Não podia dormir. Quatro dias de agonia, espanto, medo, paralisia instintiva, equilíbrio fatal. Fitava o entorno com seus olhos doces, obedientes a um mestre agora ausente. Encarava resignado a água. Via algumas pontas de casas despontando aqui e ali, elas também tentando ficar emersas. Os restos de alguns postes de luz. Virá alguém em seu socorro? Ele obviamente não poderia responder a esta questão. Mas sua intuição animal o fazia aguentar. Assim como o absurdo o arrancou do chão firme e da vida cotidiana de trotadas e trabalho duro, o absurdo o mantinha no cume do telhado. Naquele momento, sentiu-se profundamente sozinho. Abandonado. Um plácido, profundo e resignado sentimento animal. Não obstante, não saberia fazer outra coisa que não permanecer vivo. Manter sua vida, não importa a razão. Não era por saudade de seu antigo dono, nem por amor às pradarias em que trotava. Nem por apego a outros companheiros cavalos. Nem pelo capim que comia todo dia. Ou pela longa vida que ainda poderia ter pela frente. Era simplesmente porque não lhe parecia natural, instintivo, se deixar engolfar pela água suja. Não havia nele nenhum vestígio de impulso ao nada, à morte. Poderia ter morrido, é claro, mas se isso tivesse acontecido não seria por sua própria vontade. Estava agarrado à vida. Nada mais importava. Seu corpo simplesmente parecia saber o que fazer. Da água suja e mortal precisava escapar. Subir, escalar, ir até o último refúgio possível, fosse onde fosse, e ali permanecer. Sua permanência era sua prova de amor à vida, o amor animal, puro e profundo. Abaixo de si, o terror, a destruição.

Crédito da imagem aqui

O que uma mãe espera de seu filho?

Tragedy in life starts with the bondage of parent and child

É com esse ditado que o diretor Yasujirō Ozu começa seu filme The only son, de 1936. Nele, uma mãe faz tudo o que pode para enviar o filho para a escola – mas não porque ela desejava, mas sim porque o filho, ainda criança, praticamente a forçou a isso. E ela banca a aposta do filho. Vende suas humildes posses (uma casa), e passa a viver no local de trabalho. Graças a esse sacrifício o filho vai, de fato, para escola e se forma professor. Após muitos anos sem vê-lo, a mãe decide lhe fazer uma visita, em Tóquio.

A partir daí vemos, nas expressões da mãe, um misto de desapontamento, frustração e resignação. O filho havia se casado. Tivera um filho. Porém, morava nos rebaldes de Tóquio, e trabalhava como um professor de matemática à noite, em um colégio que, ao que tudo indica, não tinha status algum e ainda lhe rendia um salário com o qual mal conseguia sobreviver.

Para receber a mãe em visita, o filho precisa emprestar dinheiro de um colega. Um dinheiro que não dá para quase nada. Em solidariedade, a esposa vende seu quimono para arranjar um pouco mais de recursos para que pudessem levar a mãe para passear. E assim o filme vai se desvelando, em preto-e-branco, com o drama da frustração recíproca se instalando em ambos, filho e mãe, forçando-os a se confrontar com a realidade e a ressignificar sua relação.

Cena do filme. No fundo, a representação de uma fábrica. O trabalho interligando esses dois seres, misturados como numa neblina. O trabalho como um fio a ligar a sociedade japonesa do pré-guerra?

O que uma mãe espera de seu filho? Que ele seja alguém. Que suba na vida. Que tenha condições não só de sustentar sua própria família mas, se necessário, também dar suporte aos pais que envelhecem. Desde o nascimento, uma série de expectativas vão sendo destiladas pelos pais sobre seus filhos. Há um arranjo em que, do sucesso de um, há o sucesso do outro. E vice-versa.

Às vezes, filhos seguem pela vida tentando provar algo para seus pais. Tentam perpetuar aquele sonho que lhes foi impingido desde mesmo antes de seu nascimento. O desejo de fazer os olhos dos pais brilharem. De fazer com que esses pais encham a boca ao falar das suas conquistas. O orgulho da família. O que deu certo. Aquele de cujo sofrimento e sacrifício dos pais emergiu, fazendo tudo valer a pena e ter sentido.

No jogo de expectativas mútuas, vamos formando nossa personalidade. É muito provável que os primeiros desejos surjam desse contexto de profunda vinculação afetiva entre a mãe e o filho. Ocorre que essa relação primitiva é tão forte que ela imprime uma direção ao espírito do filho. Com o tempo, essa direção vai se travestindo de outros desejos, alguns dos quais, de fato, originais – digo, realmente desejo de um ser singular capaz de decidir seu próprio destino. Muitos dos desejos, porém, seguem nas trilhas deixadas no inconsciente pela relação mãe-filho.

Os desejos dos pais, de uma mãe em específico, são por sua vez ecos de sonhos mais amplos. Refletem o espectro da cultura. Em certos contextos, pais chegam mesmo a burlar a lei para ter seus filhos aceitos em colégios de prestígio. Outros pais entram em desespero com medo de que seus filhos fiquem aquém das conquistas dos filhos de outros pais. Há o pavor, o temor, do fracasso dos filhos. Em outras culturas, como talvez as orientais, se deposita um rigor descomunal sobre os filhos, que devem ser como vigas que envergam mas nunca quebram, como se deles dependesse a existência moral da família. Um filho que “fracassa” traria a desgraça da vergonha, um elo frágil para uma estrutura social que se fantasia inquebrável.

***

Nossos pais podem ser nosso grande desafio, mas também nossas maiores fontes de aprendizado, um portal no tempo de nossa existência. São o acesso que temos àquilo que, na origem, era para ser nosso propósito, a razão de estarmos vivos. Eles têm o “blueprint” de nossa existência. Virar as costas para eles é só confirmar seu poder. Enfrentá-los é apenas jogar seu jogo. A reconciliação só será possível após o calvário da decepção, de onde então podemos emergir com alguma “síntese” provisória, com um projeto que tenha nossa genuína participação. Afinal, a vida começa no nascimento, não “antes” dele.

***

Comentário extemporâneo, mas ligado ao assunto: sou da opinião de que a humanidade resolveria muito de seus problemas relacionados à desigualdade social e “familicídios” (do tipo Succession – a série) se os governos mundiais simplesmente decretassem que toda e qualquer propriedade que um indivíduo acumulasse em vida deveria ser, necessária e completamente, doada antes da morte do indivíduo. Porém, com um detalhe: nenhum descendente seria autorizado a receber absolutamente nada de seus genitores.

Imortalidade

Como explicar a imortalidade para pessoas simples? Você conseguiria fazer isso sem usar jargões religiosos ou filosóficos? Parece difícil, não? Pois o diretor Béla Tarr conseguiu, e de uma forma tão simples que você mal consegue acreditar. E ela está bem na abertura de seu Werckmeister Harmonies. Há mais de dez anos eu havia comentando um outro filme seu. A cena em questão está abaixo.

Como você pode ver, a escolha do diretor para tocar no tema da imortalidade foi o movimento dos astros, mais exatamente a Terra, com nossa Lua rodopiando a seu redor, e o Sol, ao redor de cuja órbita dançam todos os outros astros. Tentei assistir pequenos vídeos científicos ilustrando extamente esses mesmos movimentos, mas não é a mesma coisa. Nunca havia pensando na imortalidade desta forma, embora certamente essa intuição já estivesse dentro de mim. Talvez de todo mundo.

Em um momento da encenação, János Valuska, o ator representado aqui por Lars Rudolph, solicita o seguinte a seu espectador: Tudo o que peço é que você dê um passo comigo rumo à infinitude, onde a constância, a quietude e a paz reinam no vazio infinito. E apenas imagine que, nesse silêncio sonoro infinito, há uma impenetrável escuridão por toda parte.

Somos apresentados ao reino do vazio infinito. O Cosmos, que é, sob qualquer ponto de vista, um “ambiente” extremamente hostil. Essa hostilidade, e os limites aparentemente intransponíveis que ela impõe aos bilhões de planetas apenas na nossa galáxia (a Via Láctea), são, hipoteticamente, uma das razões por que nunca tenhamos sido contatados por outras formas de vida inteligente (assumindo, é óbvio, que elas existam). Esses diversos mundos são como ilhas isoladas umas das outras, cuja distância (cada vez se ampliando mais) e condições inimagináveis de seu entorno tornariam qualquer viagem, mesmo de civilizações supostamente mais sofisticadas que a nossa em termos de sustentabilidade energética, um beco-sem-saída.

***

E então o ator introduz o Sol, dizendo: A luz brilhante do sol sempre irradia seu calor e luz no lado da Terra que está voltado para ele naquele momento. E nós estamos aqui, em seu esplendor. O nosso sol é um “farol” que ilumina o mar escuro. No caso da Terra, porém, ele a ilumina apenas em uma de suas partes de cada vez, as quais assim se revezam entre luz e escuridão. Mas há um acontecimento fantástico representado pela nossa Lua, que provoca uma “indentação” na esfera ardente do Sol. No início, essa indentação é pequena, mas ela vai ficando maior e maior. E então um evento dramático ocorre: a Lua bloqueia a luz solar. Temos um eclipse, que, como ocorreu recentemente no hemisfério norte, pode ser total.

Na Terra, o fenômeno provoca um espanto em todo o reino animal: O céu escurece, e então tudo fica completamente escuro. Os cães uivam, os coelhos se encolhem, os veados correm em pânico, correm, fogem em desespero. E nesse crepúsculo terrível e incompreensível, até os pássaros… até os pássaros também estão confusos e vão pousar. E então… Silêncio Completo.

***

Imagine um período em que não tínhamos o conhecimento científico para explicar esse acontecimento. Nossos ancestrais devem ter se apavorado até os ossos. O que era aquilo? O primeiro humano que testemunhou esse evento deve com certeza ter imaginado que o mundo acabaria. Que a terra se abriria sobre seus pés, que era o fim. Imagine o desespero, sentir a escuridão engolindo sem aviso o dia, assistir os animais se recolhendo em debandada, a temperatura cair, o silêncio, a escuridão do universo enfim triunfando sobre nosso pequeno ponto luminoso no nada. Tenho certeza que esses primeiros seres pensantes devem ter vivenciado isso tudo como uma experiência profundamente religiosa, mesmo antes de religiões terem sido criadas oficialmente.

E como eclipses não ocorrem a todo momento, e considerando que os primeiros seres pensantes não tinham ainda uma cultura escrita e outras formas de transmissão, é provável que tais experiências de terror nunca tenham sido documentadas. Talvez alguns vestígios aqui e ali, feitos em alguma pedra. Realmente, não sei. A raridade (do ponto de vista da temporalidade de uma vida humana) de um eclipse tornava cada novo acontecimento um acontecimento novo, e igualmente desesperador.

***

Mas, então, aos poucos, a lua vai se afastando daquele lado da Terra sobre o qual ela estava bloqueando a luz. Assim, a coroa radiante do Sol novamente atinge a Terra, trazendo de volta o calor, o verde e as demais cores. Os animais, que até ali estavam num reino de terror e pânico, à espera do pior, novamente colocam os pescoços fora dos buracos. Talvez, a princípio, ainda desconfiados, mas aos poucos vão retomando suas rotinas, e dentre em pouco já não se lembrariam mais de nada.

Para o ser pensante, porém, talvez não possamos falar a mesma coisa. Algo, por certo, havia de ter ficado gravado em seu espírito. Talvez a lembrança desse acontecimento o tenha transformado de algum modo profundo. Talvez um sentimento de antecipação passasse doravante a fazer parte de sua imaginação. Talvez ele tenha concluído que precisaria “fazer alguma coisa”. Não podia ficar carregando esse peso por onde quer que fosse. Talvez isso tenha lhe manchado tanto a alma que sua curiosidade exploratória tenha despontado com força e fundado seu caráter. Ele precisava descobrir o que era aquilo. Sua tenacidade exploratória passaria a ser proporcional a seu medo e a seu desamparo. Assim, uma profunda disciplina talvez tenha surgido, a disciplina que muitos milênios depois chamaríamos de disciplina científica. Na sua base, o terror, o desamparo, mas também a esperança, o desejo de se antecipar ao Cosmos. Ou ao menos de dar-lhe uma explicação, um sentido – isto é, um pequeno conforto, ainda que isso lhe revelasse a profunda contradição de sua existência, a contradição entre finitude e eternidade.

Como conclui nosso personagem: Emoções profundas penetraram em todos. Eles haviam escapado do peso da escuridão. O peso da escuridão: eis aí algo de que não se sai ileso. Aquela escuridão que nenhuma lâmpada pode combater, nenhuma vela, nenhum fogo ou tocha. A escuridão que escapa dos limites das espécies vivas. A escuridão impenetrável do Universo, que está “ali” a poucas centenas de kilômetros de nosso planeta. Com esse pensamento, certamente a espécie pensante não teria outro destino diferente do misticismo. Inicialmente, um misticismo delirante, algo que nosso cérebro nos permite de produzir. O delírio nada mais é que a representação mental, e sua relativa autonomia, de um acontecimento no mundo físico, pensamentos gerando pensamento e, no mesmo processo, sendo mascarados como pensamentos. Aos poucos, porém, o delírio vai cedendo, tanto na medida em que os humanos vão aprendendo a se sintonizar com o mundo físico mediados por instrumentos, como na medida em que eles vão construindo sistemas filosóficos – estes últimos, embora não necessariamente conectados imediatamente com o mundo físico, exploram cenários mentais possíveis para o lugar dos humanos em tal mundo físico e, mais importante, colocam-se a si próprios como pensamentos (sobre pensamentos).

***

A escuridão nos amedronta e nos fascina. Na caracterização de Béla Tarr, porém, como você deve ter visto no vídeo acima, ela é também profundamente magnânima, num sentido transformador para um ser pensante. Pois se formos capazes de apreciar, mesmo que de modo indireto, o movimento dos planetas, as forças incalculáveis que estão em sua base, a harmonia resultante dessas forças, o simples fato de haver planetas com esse tipo de sincronicidade e perfeição… se formos capazes de penetrar nesse mistério, que é afinal materializado aqui na Terra na forma de reações e afetos, então isso nos abre a possibilidade de resgatarmos o sentido real de nossa capacidade reflexiva, seja na ciência ou em qualquer outra esfera. Aqui sim é o “universal” se manifestando no “particular”. A opção de um ser pensante por viver sua vida toda apartado dessa constatação, mergulhado em trevas e escuridão, em delírios individuais e coletivos, é a maior ironia, o maior “desperdício” a que nos encurralou nosso próprio cérebro.

***

Na verdade, o movimento da Terra, da Lua e do Sol é muito mais complexo. Tudo tem a ver com o ponto de referência escolhido. Se você tiver interesse, assista o vídeo abaixo e se surpreenda!

Experimentos mentais, 4: O penguim

Uma cena do documentário Encounters at the End of the World (2007), do magistral Werner Herzog

Naquela manhã, como em muitas outras, ele havia acordado no meio de outros pinguins. Mal podia se mexer e logo esbarrava no companheiro do lado. Na verdade, jamais se poderia determinar quem havia se mexido primeiro. Dava no mesmo, no fim. Um mexe aqui, outro é mexido lá. Vice-versa. Uma grande massa que, se pudesse ser vista de cima, seria confundida com uma poça de petróleo. Quando o sol começa a despontar no horizonte antártico, nem parecia o sol todo majestoso que, na altura do equador, é tão voraz que parece querer engolir a Terra. Em fez disso, ali era um sol tão vestigial que mais parecia uma luzinha de poucos watts sofrendo para vencer a invasão da noite escura com tênues penumbras de clareza. Graças à mecânica dos corpos, ao frio que se torna menos frio, e à luz pálida que é logo refletida pela neve infinita, os pinguins começam a se mover. A massa preta vai se transformando em pontos pretos, que então vão se espalhando e se espalhando a ponto de a neve ficar parecida com a pele de um dálmata. A dinâmica toda é acionada pelo estômago, como sempre ocorre nesses casos. O estômago sincronizado desses pinguins faz pernas e barbatanas logo entrarem em ação. Os pontos pretos seguem um vetor predominante rumo a um penhasco, do qual pulam e se lançam como balas de canhão no mar revolto. Hora de arranjar comida. E assim essas aves, com a rapidez com a qual transitam da terra para o mar, tornam-se peixes ágeis e graciosos, cortando a água como lâminas. Mas ele não fez nada disso. Não, não. Inicialmente, ficou parado no mesmo ponto onde havia estado a noite toda. Na correria, foi chacoalhado um pouco para frente e para o lado, mas se recompôs. Tinha os pés firmes e bem posicionados na neve, a esse ponto já meio derretida em volta deles. Seus olhos ovais, combinando um preto com marrom, fitam perdidos a paisagem à sua frente. Uma paisagem hoje idêntica à de ontem, e de muitos dias antes. E, provavelmente, idêntica a de muitos dias a porvir. Branco à direita, à esquerda, na frente e atrás dele. Com um detalhe: lá à distância, atrás dele, a neve transita em declive, sendo então possível vislumbrar os contornos de uma linha de montanhas. De resto, o branco triste, frio, estéril e vazio. Ele fica olhando o nada por quase uma hora. Aqui e ali, mexe um pouco as barbatanas, como se estivesse imaginando o mar, ou combatendo algum inseto. Do nada, se vira no sentido oposto àquele trilhado pelos companheiros logo mais cedo – ou seja, o sentido das montanhas. E começa a andar. Simples assim: anda, anda, anda e, ao fazê-lo, vai balançando as barbatanas para se equilibrar, como se estivesse conversando em voz alta e gesticulando contra os próprios pensamentos. O corpo, embora siga mais ou menos em linha reta, oscila em torno de seu eixo, parecendo mais uma marcha do que uma caminhada. De passos curtos e rápidos vai seguindo pelo manto branco de neve. Segue em direção às montanhas. Vai num caminho sem volta, sozinho, longe para sempre de seus companheiros. Um caminho em cujo fim certamente encontrará a morte. Torna-se, irrevogavelmente, um simples pontinho na imensidão do cenário. Um simples pinguim, ora andando, ora dando barrigadas na neve para acelerar o ritmo, rumo ao branco profundo, ao silêncio, ao esquecimento.

Seres não pensantes

A vida na Terra, desde seu surgimento, é uma série de singularidades que nunca mais vão se repetir. Neste exato momento, um número quase-infinito de eventos estão acontecendo. Destes, pouquíssimos serão lembrados, sequer reconhecidos. E infinitos eventos ocorreram no passado.

Porém, cada evento singular é passível de ser identificado, descrito, até mesmo documentado. Se houver um Deus, com certeza ele representa as infinitas possibilidades de acontecimentos singulares, e cada uma dessas infinitas possibilidades são não apenas por ele antecipadas, mas especialmente acolhidas e dignificadas.

Nos recôndidos mais distantes da história, animais circularam por esta Terra. Cada um viveu esse mistério que é a vida. Interagiram com o ambiente, extraíram deste os recursos para se manterem vivos, interagiram entre si, muitos se reproduziram, outros vagaram solitários por vastidões sem fim. Olharam para as estrelas, mesmo que delas não tivessem a menor consciência. Do Cosmos receberam os raios do Sol, laboriosamente convertidos em formas de energia por eles assimiláveis, transmitidas em uma cadeia de minúsculos seres construída sobre milhares e milhares de séculos.

Os que tinham coração, este lhes bombeava um sangue viscoso e nutritivo. Um músculo insistente, que ora batia acelerado, fazendo seus detentores subirem planícies e colinas íngremes, ora batia como se fosse parar, deixando o organismo naquele estado de vigília, uma zona entre a vida e a morte. Os que tinham cérebro, este lhes integrava todas as maravilhas físicas e cósmicas que irradiavam por todos os lados e que, graças a alguns desses cérebros, eram enfim apreendidas naquilo que realmente eram. E mesmo os cérebros que não faziam isso também tiveram seu papel, ajudando essa multidão anônima de seres a relembrarem o local onde nasceram ou então onde estavam as frutas mais doces.

Os que tinham um sistema nervoso, e imagino que fossem muitos, podiam sentir o que nós humanos chamamos de dor. Mas pouco importa o que nós humanos chamemos essa reação que faz evitar algo. A dor é a universal que nivela todos os organismos vivos minimamente complexos. A dor é sempre vivida de modo singular. Ninguém ou nada pode sentir dor por procuração. Essa mesma dor tem como complemento o prazer, mais uma palavra humana que basicamente descreve uma sensação física que tende a induzir a repetição de um comportamento. Na vasta maioria do reino animal, essa repetição está na base da transmissão de algumas células que têm o pontencial de gerar outros seres iguais aos exemplares originais.

Tenho um imenso interesse por animais não conscientes. Eles são a ESMAGADORA regra deste planeta, jamais a exceção. A única exceção é uma espécie que só se tornou dominante por causa de um órgão pensante. O pensamento é a ruptura com o imediatismo da existência. Pensar é romper com o mistério da vida. Para esse cérebro pensante chamado de “humano”, qualquer mistério é uma fonte de questionamento, um tópico de investigação. Um ainda-não que, em questão de tempo, será dissecado em explicações racionais.

Os animais não conscientes são os verdadeiros “donos” deste planeta. Até porque chegaram primeiro. Infelizmente, não bastassem as diversas extinções naturais em massa, estão sendo submetidos a novos níveis de tortura e destruição pela espécie que tem um cérebro pensante, a única efetivamente capaz de produzir o mal absoluto por escolha própria. Tal espécie se arroga o poder de tutelar os animais não pensantes, destruindo-os, seja como meio de alimentação, lazer/diversão, “avanço científico”, ou pura maldade (= algo que não precisava acontecer, mas acontece porque o humano assim o deseja). Não há quase mais nada “selvagem” na natureza. Em cada canto mais remoto deste planeta haverá a presença da espécie pensante – que se adapta até ao fundo do mar, tamanha sua astúcia e resiliência.

Na base do exponencial desenvolvimento tecnológico da espécie pensante estão seus próprios interesses. Bombas atômicas foram inventadas não para defender o planeta de um eventual meteoro ou de “alienígenas”, mas para reforçar o poder de uma tribo sobre a outra. As sofisticadas técnicas de previsão do tempo não servem, primariamente, para proteger animais não pensantes de esbarrarem com eventos climáticos catastróficos. Servem para prever ações pela espécie pensante a fim de proteger suas plantações e propriedades. A espécie pensante chegou mesmo a inventar deuses, acreditando que, após esta vida, haverá um paraíso onde alguns viverão eternamente. Por certo porque não consegue conceber que uma tal “maravilha” deva morrer e ser esquecida para sempre.

A espécie humana melhorou inimaginavelmente suas condições de vida. Mas faz tudo pensando em si mesma. Do ponto de vista do planeta, essa espécie é completamente supérflua. Se não tivesse surgido, tudo estaria na mesma. A espécie humana não fez nada de significativo pelo planeta, exceto arruiná-lo. Ou quando cria desgraças para ela própria vir com a “solução”. A espécie humana, do ponto de vista do planeta, não é senão outra mutação fracassada. Os últimos a sair da selva para as cidades, onde usam bonés e armas semi-automáticas, para usar uma expressão de G. Carlin.

Conforto-me com o pensamento de que há um Deus. E, como disse antes, esse Deus está registrando tudo. Esse Deus sabe, no fundo, “o que está rolando”. Ele escuta cada grito, cada vida dizimada, seja por uma pedra aleatória ou por complexos matadouros “humanizados”. Quero crer que esse Deus é tão sintonizado com a verdadeira natureza do Cosmos que é até mesmo capaz de amar cada ser humano individualmente, uma tarefa desafiadora.

Experimentos mentais, 3: O pequeno animal

Estava sobre a margem de um rio. Caiu ali. O organismo estava sendo dominado por uma infecção. Ele havia passado, há alguns dias atrás, por um galho molhado caído no chão. As folhas desse galho formavam um tipo de prancha, tão lisa que o desfecho inevitável era que escorregasse e fosse lançado contra uma pedra. Só que essa pedra em particular tinha uma estrutura irregular, como um diamante cinza com várias quinas pontiagudas formadas por ângulos esculpidos. A carne do animal é rasgada no encontro seco e direto com um desses ângulos. Estímulos extremamente caóticos são disparados na região do tecido violado. À velocidade da luz, eles percorrem as vias nervosas periféricas, indo desaguar no rudimentar centro nervoso do animal. O resultado surge na forma de um grito estridente, profundo e contínuo, jorrando pelo ar da mesma forma como o sangue estava jorrando do tecido perfurado. O grito se espalha na redoma formada por um enclave na floresta, de onde rodopia pelo ar e se dissipa para o além. Nada nem ninguém podia vir em socorro. A chuva recomeça a cair, e o sangue da ferida é diluído pela água, formando no chão um pequeno redemoinho num decrescente de vermelho, começando bem vivo e vibrante, passando por um rosado, depois por um rosa-alaranjado, até por fim, lá embaixo na trilha em que seguiu bailando com a água, tornar-se quase transparente. A floresta parecia estar diluindo o pequeno animal, primeiro seu grito, depois seu sangue, em poucos dias seu corpo inteiro. Assim, sozinho e frágil, o pequeno animal se tornou presa do predador mais poderoso, impiedoso, do qual era impossível escapar, o predador que existe dentro de qualquer ser vivo, seja do pequeno ou do grande animal. Um predador que fica o tempo todo à espreita, aguardando o menor sinal de fraqueza, uma brecha pela qual ele possa atacar. E uma vez ele lance suas garras sobre sua vítima, então nada mais ela poderia fazer. Nosso pequeno animal fez sua última jornada sobre a Terra primitiva com muito esforço. E é assim que o encontramos na margem desse rio que lhe oferta uma água fresca e límpida para um último gole, sua última interação visceral com a mãe terra. O pequeno animal se estira na margem, onde pequenas pedras polidas por séculos formam uma cama em volta de seu corpo. O dia estava lindo e radiante, com uma fina trilha de neblia à distância, indicando os últimos vestígios da manhã. Do ponto onde está o pequeno animal, a água segue seu curso independente pela floresta. Ao longo de seu caminho, vai refletindo as copas das árvores do Triássico. Parece uma serpente verde ondulando rumo ao infinito. Quem sabe quantos outros animais, como este que acaba de se extinguir, ela vai beijar pelo caminho.

Cena do filme A árvore da vida (2011). Detalhe no canto direito da figura.

Experimentos mentais, 2: Embaixo da carroça

Era uma manha chuvosa. Ele estava quase meio corpo enterrado na lama. Estava de quatro. Suas pernas e braços com certeza estavam na lama. Disso ele tinha certeza. Além da chuva havia neblina. Seus dentes também tinham um pouco de lama, ele agora pensava. Estava com fome. Sim, era em parte pela fome e em parte pela chuva que ele estava ali embaixo daquela carroça. O cavalo ao qual a carroça estava atachada era um animal maltratado. Não que isso fosse relevante para sua presente situação. Aliás, ele nem achava que cavalos deviam ser bem tratados, estar vistosos. Pelo menos não os cavalos dos plebeus. Sim, ele era um plebeu. Na verdade, na sua mente, ele era alguém que não vivia no castelo. Só isso que ele sabia com certeza. Sua condição não era um tema de reflexão. Até porque, o que sabia ele? Ele nem sabia que podia saber algo. Ou que havia algo para se saber. O sol nascia, ele tinha fome, buscava comida, como agora, e voltava para o monte de palha cheia de merda de galinha na qual dormia. Ele tem vontade de abrir a boca. E abre a boca bem aberta, torcendo a cabeça para cima, revelando para o teto de madeira da carroça seus dentes destroçados. Podres. Um podre obsceno. Ele olha para o teto da carroça e, sem saber o porquê, imagina que houvesse ali um espelho. E no espelho ele vê um espectro, uma figura disforme, uma coisa que, mesmo não tendo consciência de si, parece perguntar ‘O que é isso?’ E fica entretido por algum tempo nessa penumbra fantasmagórica de um espelho que não existe, de uma pessoa que não existe para além das fronteiras da fome. A fome. Essa dor estranha no meio do corpo. Era mais desconfortável que a lama misturada com estrume na qual estava banhado. Olha pelos vãos da roda da carroça. Olha para o céu, e uma gota graúda de chuva lhe acerta bem um dos olhos. Leva a mão enlameada em ato involuntário até eles. Só piora o estado de um dos olhos. Mas que importa. Ajusta o olho que ainda está aberto e enxergando e o direciona para o pequeno público que perambula por ali. Ele está à espera do fim da feira. Era uma feira medieval. Rudimentar e agrária como poderia ser uma feira medieval. E uma feira de um burgo pobre e desgraçado. Ainda por cima, ele tinha nascido ali. Sempre esperava até o fim da feira, e sempre achava um pedaço de nabo quebrado, sujo e duro. Ou um caule perdido de alguma cenoura há muito já longe dali. Hoje com essa chuva, pensa ele, o caule estaria completamente empapado. Mas ele comeria mesmo assim. E é isso mesmo o que no fim acaba acontecendo. Agora sentado embaixo da carroça e não mais de quatro, come os talos de nabos e cenouras. Não é muito. Mas o suficiente para acalmar essa dor que aparece umas duas vezes ao dia e que desaparece assim que ele come coisas como caules e talos. E assim passa mais uma manhã. Como essa, mais umas duas ou três, antes de ele ser esmagado pelas rodas de outra carroça num dia sem chuva.

Psicólogo não é demógrafo

Considere o seguinte. Você tem uma série de informações demográficas sobre um indivíduo X. Digamos, você sabe onde ele mora, seu gênero, seu status socioeconômico. Se você considera essas informações em agregados populacionais, você pode, com alguma segurança, extrapolar “outcomes” sobre esse indivíduo X. Por exemplo, pode estimar que a probabilidade de ele ascender socialmente é de média para baixa. Você não precisa entrevistar essa pessoa ou conhecer sua história pessoal para realizar certas extrapolações.

Em certo senso comum psicólogo, o próprio psicólogo recorre a variáveis sociodemográficas para ajudar a explicar algum fenômeno psicológico de interesse. Na sua versão mais distorcida ou empobrecida, o psicólogo usa jargões como “O sistema faz esse indivíduo X ser excluído ou ter menos chances de sucesso”. O sistema, sempre o sistema.

Se você faz análises de amplos sistemas, como o “capitalismo”, e você assume premissas ou pressupostos sobre como esse “sistema funciona”, você não precisa se dar ao trabalho de tentar explicar a singularidade. Aliás, esta última chega a ser até mesmo vista com suspeita. OK, você pode dizer que estou entendendo errado. Que existe uma “dialética” entre “universal e particular”. Que o primeiro se expressa no segundo, e vice-versa. Claro que isso acontece – nenhum singular ocorre no abstrato.

Mas acho que existe uma fronteira aqui, cujo reconhecimento com certeza viria a calhar em algumas situações, quando psicólogos são, na prática, cópias distorcidas de demógrafos.

Há também o oposto, claro: psicólogos agindo como cópias de jornalistas. Fazem perguntas óbvias para as pessoas, perguntas cujas respostas esse psicólogo, ingênuo ou incompetente em domínios teóricos, já tem antecipadas. A pesquisa se transforma, assim, num simulacro. Para não mencionar as dificuldades metodológicas envolvidas, como viés de resposta da parte do entrevistado/participante. Vieses de resposta significam, basicamente, que o participante de sua pesquisa “veste a camisa de sujeito de pesquisa” e fala o que você quer ouvir ou o que ele acha que é o apropriado a dizer nesse contexto.

O autômato, usado por E. T. A. Hoffman (um autor citado por Freud) é uma excelente excursão sobre a idéia de ventrículo, de marionete, de um indivíduo puramente movido por signos culturais unidirecionais

Meu ponto, porém, é o seguinte. Cada pessoa é uma unidade singular (atenção: não sou “seguidor” de Leibniz; continue lendo). Um sistema aberto, em constante interação com seu meio e imersa no fluxo do tempo irreversível. E qual meio é esse? Gostaria de destacar um em específico: a cultura. Muitos (psicólogos) tratam a cultura como uma “variável”. Nada mais ingênuo do que isso. Pode servir, como no caso do demógrafo, para extrapolar alguns “outcomes”, mas a cultura não é “só” isso.

A cultura é o meio humano por excelência. Sua estrutura básica são signos. Por exemplo. Imagine um jovem tendo de escolher um curso superior. Ele vai ser “influenciado” pela materialidade de sua existência, por certo (se a família tem ou não dinheiro, por exemplo). Mas ele vai ser influenciado em um nível muito mais profundo: o próprio significado de um curso superior. Inicialmente, a pessoa é constituída de fora para dentro, por assim dizer. Há signos culturais que, de forma poderosa e quase invencível, promovem certas trajetórias em detrimento de outras. Há signos culturais que impedem ou dificultam certas trajetórias.

Porém, se essa pessoa quiser, de fato, emergir como singularidade, ela terá de revisitar os significados (signos) que a cultura lhe forneceu e que apareceram como caminhos a seguir. Revisitar significa que essa pessoa precisará produzir signos ela própria. Como diz o poeta, “Fazer algo com aquilo que fizeram de mim”. Apropriar-se de sua própria singularidade. Produzir signos é equivalente a produzir sentidos, tingindo afetivamente os significados (signos socialmente compartilhados). Aliás, não é à toa que Vygotsky, que estudou sentidos & significados, priorizou a ARTE como objeto fundamental de análise!

Uma pessoa jamais será uma imitadora perfeita de vozes, para usar uma expressão de Thomas Bernhard. Mas ela pode viver sua vida como uma sonâmbula ambulante, como na poderosa narrativa de Hermann Broch. O sonâmbulo vive dentro de um sonho. Esse sonho é, claro, o sonho narrado por signos culturais, que buscam instituir, ainda que de modo fluido e revisável, formas de vida consideradas legítimas. Se uma pessoa fosse uma perfeita imitadora de vozes, ela simplesmente seria previsível por meio de variáveis demográficas, como eu disse no início. Não precisaríamos de psicologia, oras.

E ela não é tal sonâmbulo justamente porque é capaz de produzir sentidos. Ao psicólogo, portanto, abre-se um campo de investigação enorme: como fazer a pessoa encontrar-se com ela mesma, na sua trajetória concreta de vida, atravessada que é, como um peixe num aquário, pela cultura (= a água). Aliás, David F. Wallace escreveu uma fantástica crônica sobre os peixinhos nadando inconscientes da água. Vale muito a leitura.

Volto a falar da importância de reconsiderarmos o conceito de singularidade, de pessoa, de ser de carne e osso cujas experiências jamais poderão ser terceirizadas, sob o risco de essa pessoa passar o resto de sua vida nadando em uma água da qual não consegue ter a mais remota ideia. A psicologia no nosso país passou por transformações fundamentais. Hoje é uma ciência muito comprometida com as condições materiais e sociais que “geram” ou “determinam” certos fenômenos psicológicos. Mas, como um rebanho, alguns estão indo ou já foram longe demais. Simplesmente, apagaram a individualidade, soterrando-a em jargões “sistêmicos” e discursos, na melhor das hipóteses, super entediantes e, na pior das hipóses, cínicos. Aliás, nesse sentido, lembrei-me agora de outra leitura fundamental: Crítica da razão cínica, do Peter Sloterdijk.

Faltando às aulas

Vem dos EUA a notícia de que os alunos, especialmente do ensino básico e médio, estão faltando massivamente às aulas. Um quarto dos estudantes são considerados como “cronicamente ausentes”. Em parte, isso é ainda reflexo da pandemia. Porém, especialistas apontam para algo aparentemente mais sério: o fato de a cultura estar flexibilizando a presença na escola, tornando-a opcional.

Ao longo dos meus quase vinte e cinco anos como docente posso dizer que o fenômeno tem piorado. O meu universo amostral é o ensino superior, e já tive experiência de passar por diversas instituições. Penso que seja praticamente impossível não associar isso com a ampliação do acesso à internet. Além disso, a pandemia tornou bem mais aceitável o modelo “à distância”. Porém, isso parece ter ido um pouco longe demais e o próprio sentido de estar fisicamente presente numa sala de aula começa a ser relativizado.

Uma vez um aluno me perguntou como eu, como professor, via a “competição” com vídeos no Youtube ou de influencers. Na ocasião, relativizei. Mas parece inegável que o lugar do professor como “centro” irradiador de conhecimentos está diminuindo no mundo real e migrando para outros formatos. Isso, na melhor das hipóteses. Na pior, não está migrando para lugar nenhum!

Educação na Idade Média. Alguma “semelhança”?

Um aluno assiste minha aula porque é basicamente obrigado. Ele não me escolhe. Há o conjunto de disciplinas, e cada professor é responsável por algumas delas. Não tem a ver com uma turma em particular. Na internet, em contrapartida, ele pode escolher quem e o que ouvir. Há uma liberdade bem maior de escolha.

Desse ponto de vista, seria apenas uma troca de seis (presença) por meia dúzia (on-line)? Em parte, sim. Mas a decentralização promovida pela virtualização de todas as relações, das afetivas, laborais até as educacionais, pode estar reforçando certas características geracionais nos jovens. Estes começam a ver o professor como parcialmente dispensável. Jovens-adultos até podem, de fato, ter mais autonomia e considerar que ouvir um professor em específico não compensa – que é muito mais prático e melhor assistir um vídeo sobre o mesmo assunto na internet. Mas e as crianças, elas têm esse discernimento?

Qual o valor de uma aula? Não é apenas o conteúdo. Quando um aluno assiste um vídeo, é só isso que ele recebe: conteúdo. Faltar seguidamente numa mesma aula, e depois fazer um “trabalho de reposição”, pode cair em duas categorias: da parte do aluno, ele está deixando claro que seu interesse é puramente transacional (passar); da parte do professor, de que suas aulas equivalem apenas ao conteúdo do que foi ministrado. Por isso, é muito importante considerar reprovações por motivos de ausência. Mas resolverá?

***

Participar de uma aula presencial é estar junto com outros, criando um espaço de compartilhamento, de trocas de olhares, de leitura de implícitos, de ação-reação in loco.

Mais do que isso: uma aula é um evento singular, por vezes até mesmo um acontecimento, algo cuja passagem do tempo torna impossível replicar. E, como todo acontencimento, ele pode ser marcante. Pois nele podem surgir experiências singulares e, como tais, irrepetíveis – e, pela mesma razão, tão preciosas como a própria vida, que é o evento singular mais importante do Universo.

Muitas aulas presenciais são apenas eventos, okay; mas algumas serão acontecimentos. Você dificilmente conseguirá isso numa aula gravada, mesmo que você a repita centenas de milhares de vezes, num puro evento de massificação generalizada, na eterna repetição do mesmo, o tédio instituído como novo normal. A morte do acontecimento, da surpresa singular de cada materialização do tempo na presença. Estar presente (há um duplo sentido aqui!) é, hoje em dia, algo tão ou mais importante que a atenção.

Talvez aceitemos a lenta mas progressiva substituição da presencialidade pela virtualidade porque, no fundo, nós próprios não estamos mais tão conectados assim com o “mundo da vida” – afinal, boa parte de nossas relações afetivas e de amizade também se desmaterializaram. Com todas suas maravilhas, a internet e a virtualização estão nos desconectando de nossos corpos, criando “cidades invisíveis” nos cabos que passam pelo fundo do oceano, por ondas que vão e voltam de satélites no espaço vazio e frio bilhões de vezes ao longo de um mero dia. Igual ao que estamos nos tornando aqui, espaços vazios.

Corrupção

Há algumas semanas assisti o filme The human condition, dirigido por Masaki Kobayashi. Trata-se de uma história épica (são nove horas de filme), um verdadeiro retrato das deformações pelas quais passa o espírito humano em tempos e situações extremas.

Essencialmente, acompanhamos a jornada de Kaji. Ele começa como uma espécie de responsável pelo RH de uma mina de carvão. Idealista, tenta tornar as condições de trabalho menos penosas possíveis, mas é levado a situações tão extremas e paradoxais que, no final, acaba sendo demitido. A demissão o faz ser convocado para o exército imperial, e então o seguimos em sua peregrinação pelos quartéis japoneses, onde o absurdo está em toda parte.

No exército, mais uma vez Kaji tenta ajudar seus companheiros. Segue uma “filosofia” que ouviu de um dos trabalhadores de seu emprego anterior: Os semelhantes (neste caso, os bons) sempre encontram outros semelhantes. E, de fato, aqui e ali ele vai encontrando pessoas que, como ele, tentam humanizar condições inumanizáveis.

Finalmente, Kaji acaba como prisioneiro de guerra. Vai para um campo de trabalho forçado do Exército Vermelho. Ali, novamente, nosso personagem vivencia situações que o empurram cada vez mais longe no sentido da desumanização. Sua humanidade é, mais uma vez, testada até o limite. Presencia novos absurdos “institucionais”, mais burocracia estúpida e injusta, traições, trapaças, desprezo e a banalização da morte. Logo ali, entre os “companheiros” que, supunha Kaji, jamais poderiam ser injustos…como “socialistas”, com certeza (pensa Kaji) seriam justos. Deveriam ser o que de melhor haveria de humanidade. Nada mais longe da realidade.

***

Até que ponto o espírito humano é corruptível? Na visão religiosa, somos sempre, desde o nascimento, condenados ao pecado. Já nascemos impuros, e não vai ser um banho nalgum rio qualquer que vai nos salvar. Nossa caminhada nesta vida é de contínua contrição, de expiação. Todo o momento somos provados e testados. Há quase tudo arquitetado para que falhemos. Mas precisamos acreditar na Graça e tentar nos salvar. Chegar o menos “sujos” no final quanto sejamos capazes.

***

Sempre que preciso viajar de avião tenho um pensamento sombrio: em geral, tudo corre bem. As pessoas se sentam nos seus assentos; são educadas, ajudando umas às outras a acomodar bagagens; cedem sua vez para que outro passageiro passe; etc. Porém, e aí vem meu pensamento sombrio: e se esse avião sofresse um acidente?

Fico imaginando que quanto mais grave for um eventual acidente, mais a humanidade de cada pessoa é colocada à prova. E mais se pode rumar para uma lei da selva, um caos de rebanho assombrado. Em filmes enlatados de Hollywood, nestas horas sempre aparece um “herói” que se sacrifica pelos outros (em geral, homem). É claro que esse herói existe. E sua existência, mesmo que rara, é necessária para termos certeza de que, aconteça o que acontecer, nossa humanidade prevalece. Haverá coragem, altruísmo.

Mas a corrupção do espírito humano é diretamente proporcional à percepção de que a vida individual, ou suas extensões (membros da família, propriedade, etc.), está ameaçada. Quando só há um lugar a ocupar e existem várias pessoas disputando esse lugar, aí é que vemos a corrupção. Mesmo o esporte, que obviamente não é uma situação extrema como a sugerida acima, representa uma forma de corrupção às avessas: pois vertemos lácrimas para o vencedor. E por quê? Porque sabemos que ele mereceu, que venceu ao se superar, e superar os outros, seguindo regras justas e previamente estabelecidas. Mas é também uma corrupção, pois sempre haverá perdedores, e a cultura funciona, pelo menos na superfície, emulando winners e mandando para o lixo todos os perdedores.

***

Eis assim que aquele jovem recém-formado, idealista e cheio de discurso coletivista e participativo, quando entra em uma instituição, especialmente se for uma empresa, vai progressivamente se corrompendo. Tanto no sentido de “defender o seu”, como no sentido de perda de sua individualidade. Ele vai modelando seu comportamento e sua linguagem, depois seu pensamento e enfim sua afetividade. Para falar a verdade, ele vai sendo modelado (ver meu outro post a respeito). Parafraseando o que uma vez disse Sartre, os jovens de hoje serão os avós de amanhã, tão conservadores quanto os atuais avós.

***

A humanidade é linda desde que haja comida, propriedade, segurança, conforto e um lugar ao sol para todos. Quanto a realidade se distancia disso, aproximando-se de um cenário de escassez ou recursos limitados, aí então temos o terreno da corrupção. A corrupção é parte de um narcisismo atávico e ancestral. A coragem, em geral, implica numa abnegação, num desinteresse profundo, num desapego virtuoso. Não parece ser corriqueiro, mas está nas infinitas possibidades de ser um humano – a condição humana.

***

Para finalizar, vamos pensar no seguinte. Imagine que você seja um pai ou mãe de família durante a França ocupada pelos alemães na Segunda Guerra. E suponhamos que, nesse contexto de situação extrema, você tenha a oportunidade de refugiar em seu porão um perseguido pelo regime nazista. Caso você aceite, e seja pego, toda sua família seria sumariamente executada. Você correria esse risco? Muitos assumiram. Muitos mais não.


You cannot copy content of this page