Fontes de sentido
janeiro 3, 2025
Existem camadas fundamentais de proteção contra a loucura, círculos concêntricos entre si que, quando em operação, mantêm a loucura afastada. Refiro-me à loucura como uma condição específica: a perda do alicerce da existência, quando o único ponto de continuidade é o corpo — a unidade biológica tangível que persiste, mesmo quando tudo no plano simbólico desmorona. Nesse estado, o corpo se mantém como um fato empírico inquestionável: o ser-coisa que permanece, apesar do vazio que consome a mente. Uso o termo ‘loucura’ porque, para o ser humano, a plena existência não se restringe ao corpo. Este, embora regido por leis precisas e sendo o fundamento da vida individual, é insuficiente por si só. Somos seres que necessitam do simbólico, da linguagem, dos significados que estruturam e sustentam o ‘eu’. A loucura, então, é esse hiato de percepção entre um corpo vivo, independente, e uma mente figurativamente morta. É uma situação absurda que, por vezes, pode se resolver de maneira extraordinária: a mente morta faz o corpo também morrer.
É claro que há uma relação intrínseca entre o físico e o simbólico; talvez, de fato, sejam expressões de uma mesma extensão, como pensava Espinosa. No entanto, para fins deste argumento, adotarei minha definição e considerarei a loucura como um recuo, uma inflexão do ser em direção ao corpo. Trata-se de um corpo operando conforme suas próprias forças vitais, enquanto o ‘ser’ funciona apenas como um espectador atônito.
As proteções que evitam ou contornam esse estado de loucura são, ao menos as mais importantes, as seguintes:
O Amor
O amor, ou seja, a existência de uma relação amorosa entre duas pessoas, é uma força capaz de sustentar o ser, mesmo que, por vezes, envolva dor. Sem o amor — e, sobretudo, sem a capacidade de amar de maneira prática — o ser se vê desamparado, privado de parte de suas forças vitais. O corpo, enquanto potência, pode ser acionado em diversos contextos, como um cavalo que responde às rédeas (pelo menos enquanto ainda mantém suas forças vitais; isso muda drasticamente quando essas forças se esgotam). Assim, o amor surge como uma forma de mobilizar o corpo, insuflando-lhe energia e vida.
O amor articula as dimensões física e simbólica, tendo como eixo central o falo, ponto de contato entre dois corpos e epicentro do prazer. O falo, nesse sentido, não é um órgão (sexual; Freud), mas o conduíte simbólico de uma experiência vivida de forma simultânea e integral por dois seres. Não ‘pertence’ a um ou outro dos amantes; ele representa a unidade metafórica na qual ambos se articulam reciprocamente. O falo é, em última instância, a essência da corporidade sexualizada, um significante estruturador (Lacan), uma transitoriedade, isto é, a condição para o trânsito de estados: estados físicos variados entre si, mas também o trânsito do físico e do mental (mesmo ‘espiritual’).
Sem essa dimensão sensual, o amor se transforma em algo diferente — talvez sublimado, deslocado, mas não menos importante. Poderia, por exemplo, assumir a forma de uma densa amizade. Por sua vez, apenas o componente físico, embora potencialmente gratificante para o cérebro (e, por conseguinte, para o indivíduo), é um estado isolado, sem transição com outros estados. Além disso, há um limite para a sensualidade pura, que, pior ainda, pode aprisionar o indivíduo no invólucro de seu próprio corpo, ou seja, o impedir de transicionar entre diferentes estados e afetos.
A Crença em Algo Maior
A segunda proteção, independente de questões de costumes, nível intelectual, contexto social ou histórico, é a crença em um outro mundo, em um Deus, ou, em suma, em uma religião. Embora haja, nessa crença, problemas como ilusões, delírios e formas de exploração e alienação, é inegável que acreditar em uma vida após a morte oferece consolo. A religião proporciona a garantia de que os absurdos vividos aqui têm, ao fim, algum sentido.
Enquanto forma institucionalizada de relação com o sagrado, a religião é um poderoso mecanismo de sustentação de significados, organizando a vida desde seus elementos mais básicos — como nascimento, sofrimento, união e morte. Assim, o ser humano fica protegido da loucura. Seu corpo não é apenas um organismo esplêndido, embora efêmero e mortal, mas é também templo, receptáculo, vaso e, novamente, um conduíte para o transcendente. Toda a aridez da mortalidade, da doença, da dor e do sofrimento é ressignificada em uma narrativa de salvação, glória e integração ao “Todo”, representado por Deus: fonte de toda a vida, origem de tudo e razão de nossa existência.
A Família
A família é uma instituição central na vida humana, responsável por consolidar os principais guias morais e valores que moldam a existência. É nela que aprendemos a distinguir o certo do errado, entendemos nosso papel no mundo e formamos as primeiras percepções sobre a própria realidade. Para muitos, a família é o universo de referência, seja no núcleo restrito — pais e irmãos — ou no núcleo ampliado, que inclui tios, primos e outros parentes. Além de filtrar a realidade para seus membros, sobretudo antes de estes desenvolverem crenças próprias, a família carrega um conjunto implícito de propósitos, como preservar ou ampliar seu poder, algo evidente em famílias que compartilham negócios ou perpetuam tradições. Muitas vezes, pais mais possessivos continuam a influenciar ou vigiar seus filhos mesmo após a saída deles de casa, criando uma dinâmica grupal que impacta seus membros tanto positiva quanto negativamente.
Com o tempo, aqueles que formam suas próprias famílias tendem a reproduzir, em maior ou menor grau, as influências da família de origem, enquanto também estabelecem novas dinâmicas e valores. O casamento, como ponto central dessa formação, combina diferentes perspectivas sobre o que significa “ser família”, misturando sobreposição, adaptação e síntese. Essa nova unidade pode se tornar uma fonte de proteção contra a loucura, fornecendo aos seus membros ideais, objetivos e valores que os orientam no mundo, ainda que esses elementos sejam, muitas vezes, herdados do núcleo original.
Embora inserida no mundo, a família mantém um certo grau de isolamento, funcionando como uma âncora emocional e prática. Ela é um ponto de partida e de retorno, uma base onde seus membros encontram orientação, segurança e, em última instância, sentido para navegar as complexidades da vida. Por exemplo, um jovem casal que acaba de ter um filho: é inegável, exceto se sejam uns irresponsáveis (e, de fato, estes existem aos montes, talvez sendo mesmo a regra), que farão do filho, da sua criação, desenvolvimento, florescimento e futura autonomia seu centro prioritário. Até o trabalho ganha outro sentido, pois, em parte, se trabalha para prover a família. Um filho, para talvez a grande maioria (a massa) da população que se engaja em projetos de longíssimo prazo, talvez seja a grande referência, uma importante senão fundamental bússola e fonte imediata de sentido.
O Estado
O pertencimento a um estado-nação é uma importante fonte de sentido, pois ancora a identidade social de uma pessoa. Em alguns países, esse pertencimento à pátria é não apenas motivo de orgulho, mas também de distinção social. Bandeiras são hasteadas nas residências, símbolos nacionais são disseminados e materializados em imagens, monumentos, edifícios e objetos presentes no cotidiano. A história do país, que se entrelaça com a história da família, oferece elementos para a construção de uma narrativa sobre o valor próprio, proporciona um senso de direção e propósito, além de possibilitar a aglutinação em torno de um projeto coletivo. Uma nação, além de ser uma entidade delimitada por fronteiras físicas e pela distinção entre ‘nós’ e ‘eles’, é também uma produção imaginária, uma representação abrangente que envolve modos de agir, sentir e pensar. Em países onde o nacionalismo é mais exacerbado, o sentimento de pertencimento nacional torna-se um fator de distinção em relação a outros países, sendo a forma como aquele grupo de pessoas se posiciona no restante do mundo. Ser brasileiro, europeu ou americano faz uma diferença significativa no significado que atribuímos à nossa própria vida e à vida dos outros, além de determinar, em parte, nosso próprio raio de possibilidades objetivas na realidade.
O dinheiro
Existe uma instituição que, no mundo de hoje, representa o poder em estado puro: o dinheiro. O dinheiro é uma instituição abrangente o suficiente para incorporar dentro dele trabalho, carreira, profissão, atividade, capital, mercado, dívida, crédito. Ter dinheiro é ter poder. Não apenas poder de comprar coisas, mas o de ser respeitado, de influenciar pessoas, até mesmo países inteiros. A busca pelo dinheiro traz consigo uma infinidade de ações que, sozinhas, podem consumir a vida de uma pessoa. Tornar-se rico, ter uma conta bancária recheada, poder comprar o que se deseja, ostentar, ou meramente saber que se tem. Com dinheiro, as pessoas te buscam, querem te ouvir; as pessoas te servem, se submetem, colocam suas energias em função de você (seja você uma empresa ou não). O dinheiro é status, posição social. Para consegui-lo, o indivíduo precisa engajar-se em algum tipo de atividade, seja profissional ou não. Isso consome tempo. Mas, sobretudo, isso orienta, canaliza, encaminha e sustenta uma busca; sustenta o desejo (nem que o desejo seja o desejo de ter mais dinheiro; o poder que visa a mais poder; “vontade de poder”). Dá um fio condutor para uma vida inteira.
Empreendedores, como se diz, não pensam no dinheiro, mas sim em revolucionar alguma coisa. Pode ser, nunca falei com um empreendedor de verdade. Talvez a adrenalina de começar algo do zero, ou de transformar algo que já exista, o sentido intrínseco desse tipo de coisa, talvez isso seja o suficiente ou mesmo seja o combustível da ação empreendedora. Mas não há empreendedores pobres, quebrados; quer dizer, até existem — na verdade, são a maioria. Mas isso não os faz “vibrar”, o fato de estar quebrado mas ainda assim continuar engajado, comprometido, envolvido até a alma com sei lá o que esteja empreendendo. Não, é preciso que tal atividade empreendedora gere dinheiro. Por si só, em que pese algum discursinho barato dizendo o contrário (em geral, usando alguma outra das instituições acima mencionadas), é possível estruturar uma vida inteira em torno da busca, ampliação e conservação de dinheiro/poder — se isso é justificável, viável, ou mesmo desejável eticamente, não é o ponto para este argumento.
Em outro momento, tentarei abordar a loucura que se insinua quando uma ou mais dessas fontes protetoras se rarefazem ou simplesmente desaparecem. Elas podem se sobrepor, reforçar-se mutuamente ou, ao contrário, anular-se umas às outras.