Repetição e vulnerabilidade
dezembro 26, 2024
Assisti ao filme Jeanne Dielman, 23, quai du Commerce, 1080 Bruxelles há algum tempo, talvez uns cinco anos, por indicação de um aluno meu à época. Lembro-me de ter gostado do filme de Chantal Akerman, embora ele tenha me causado algum incômodo. Entre outras coisas, é um filme um tanto claustrofóbico, já que praticamente toda a narrativa se passa dentro do apartamento de Jeanne Dielman. Além disso, a própria protagonista é uma figura inquietante. Por fim, há a temporalidade do filme, com mais de três horas de duração: tudo o que vemos na tela acontece em tempo real. Por exemplo, assistimos à chaleira começar a ferver desde o momento em que Jeanne liga o fogo até quando a água finalmente ferve e o apito soa. Creio que quase todas as cenas seguem essa temporalidade natural dos eventos, gerando certo incômodo em um espectador do acelerado século 21.
Hoje, o filme ressurgiu para mim de uma forma completamente nova e, francamente, assustadora. Estava ouvindo um podcast do excelente professor de política britânico David Runciman. O programa, de altíssima qualidade, combina conteúdo rigoroso com perspicácia, humor e inteligência. Organizado em séries temáticas, neste caso tratava-se de uma sobre grandes filmes, e foi ali que ouvi o episódio dedicado a Jeanne Dielman.
Cena do filme Jeanne Dielman, 23, quai du Commerce, 1080 Bruxelles (1975)
Na interpretação de Runciman, o filme de Akerman é, antes de tudo, sobre controle. E o controle, no caso de Jeanne, manifesta-se na ritualização exagerada de atividades cotidianas banais. No filme, ela é uma dona de casa extremamente metódica. Cada tarefa — descascar batatas, lavar o banheiro, tomar banho, arrumar a mesa para o jantar com o filho, com quem divide o apartamento — é executada sempre da mesma forma. Nessa repetição, Jeanne encontra conforto e previsibilidade. Acompanhá-la nesses rituais é ao mesmo tempo estranho, misterioso e hipnotizante, como destaca Runciman. Ele questiona: como ninguém além dos espectadores a observa realizando essas tarefas, estaria Jeanne consciente do que faz? Em certo nível, provavelmente não, já que são gestos automáticos, parte de sua “memória muscular”. Contudo, Runciman sugere que há ali uma performance: Jeanne faz tudo isso para si mesma; ela é sua própria plateia. Ao agir assim, ela encontra conforto em fazer tudo “certo”, mesmo sob o peso opressivo do trabalho doméstico.
A partir disso, Runciman propõe uma segunda leitura fascinante: o filme também é sobre escolha. Sobre o dilema existencial de escolher — mesmo sabendo que muitas escolhas são irrelevantes. Por exemplo: onde, quando e como descascar uma batata? O ato em si, a hora de começar, o método a ser usado, são decisões minúsculas, sem grande importância. Contudo, essas escolhas precisam ser feitas. No contexto da rotina doméstica, essas “micro-escolhas” parecem triviais, mas são inevitáveis. Jeanne, para lidar com isso, hiper-ritualizou quase tudo. Dessa forma, eliminou qualquer espaço para dilemas ou ambivalências. Mas isso não dura. A menor quebra nessa rotina cuidadosamente construída é suficiente para desestabilizá-la, como quando as batatas cozinham além do ponto. No universo do filme, isso é uma catástrofe que abala Jeanne profundamente.
Por fim, Runciman oferece uma terceira interpretação: apesar de toda a ritualização e do controle aparente, Jeanne é profundamente vulnerável. Essa visão me fez reconsiderar o filme, especialmente como psicólogo, pois sei que a personagem demonstra traços de transtorno obsessivo-compulsivo. Para quem está nesse estado psíquico, manter o controle é fundamental. Na superfície, Jeanne parece controlar sua casa e sua rotina com perfeição, mas tanto ela quanto sua casa estão inseridas em um contexto maior. O apartamento está num prédio, que está numa cidade, dentro de uma sociedade. Runciman destaca um aspecto que evidencia essa vulnerabilidade: além das tarefas domésticas, Jeanne recebe homens em casa e é paga por encontros sexuais. As cenas de sexo não são mostradas, mas vemos a preparação e o momento em que os homens saem. Jeanne faz tudo isso com o mesmo mecanicismo ritualístico, e o dinheiro recebido é poupado.
Entretanto, Runciman sugere que poupar dinheiro, no contexto do filme, é outra ilusão de controle. A inflação no final dos anos 70 era especialmente agressiva. Assim, o ato de economizar dinheiro, que parece oferecer segurança, é na verdade fútil. Ao depositar o dinheiro no banco, Jeanne perde completamente o controle sobre o que acontecerá a seguir. A inflação destrói o valor do dinheiro e, por extensão, invalida todo o trabalho que gerou esse dinheiro. Para Runciman, essa vulnerabilidade econômica reflete a inflação de suas ações ritualísticas: tudo o que ela faz, toda a sua tentativa de controle, é corroído. Jeanne confia nesse sistema para manter sua vida burguesa e seus rituais, mas essa confiança é apenas fantasia. No fundo, não há controle algum.
Nos momentos finais do filme, Jeanne, após limpar o apartamento, senta-se em uma poltrona, com dificuldade para respirar. Respirar torna-se, então, um ato de escolha e, como tal, um dilema, um problema existencial. Ela não tem certeza se sabe ou mesmo se deseja respirar. Um terror instala-se nela — um terror vinculado à necessidade primordial de tomar uma microdecisão: respirar. Algo que, naturalmente, seria automático transforma-se em uma questão consciente, exigindo a intervenção de Jeanne, de sua vontade. O controle que ela tenta exercer em sua vida entra, assim, em uma espiral de colapso, atingindo seu ápice paradoxal: o que deveria ser natural e automático torna-se objeto de deliberação, de ocasião ou palco para a emergência da angústia.
Runciman conclui dizendo que este é um filme em que as grandes coisas são pouco importantes, enquanto as pequenas coisas se revelam absolutamente existenciais. Por exemplo, um evento significativo no filme é Jeanne matando um homem. No entanto, essa ação, que poderia ser vista como central, é tratada quase como algo menor, irrelevante no contexto da narrativa. Por outro lado, pequenos gestos, como a preparação de um café, tornam-se os momentos mais importantes. Eles não apenas ocupam grande parte do tempo, mas demandam um nível profundo de implicação emocional e psicológica da personagem.