Repetição e vulnerabilidade

Assisti ao filme Jeanne Dielman, 23, quai du Commerce, 1080 Bruxelles há algum tempo, talvez uns cinco anos, por indicação de um aluno meu à época. Lembro-me de ter gostado do filme de Chantal Akerman, embora ele tenha me causado algum incômodo. Entre outras coisas, é um filme um tanto claustrofóbico, já que praticamente toda a narrativa se passa dentro do apartamento de Jeanne Dielman. Além disso, a própria protagonista é uma figura inquietante. Por fim, há a temporalidade do filme, com mais de três horas de duração: tudo o que vemos na tela acontece em tempo real. Por exemplo, assistimos à chaleira começar a ferver desde o momento em que Jeanne liga o fogo até quando a água finalmente ferve e o apito soa. Creio que quase todas as cenas seguem essa temporalidade natural dos eventos, gerando certo incômodo em um espectador do acelerado século 21.

Hoje, o filme ressurgiu para mim de uma forma completamente nova e, francamente, assustadora. Estava ouvindo um podcast do excelente professor de política britânico David Runciman. O programa, de altíssima qualidade, combina conteúdo rigoroso com perspicácia, humor e inteligência. Organizado em séries temáticas, neste caso tratava-se de uma sobre grandes filmes, e foi ali que ouvi o episódio dedicado a Jeanne Dielman.

Jeanne Dielman, 23, quai du commerce, 1080 Bruxelles (1975) | MUBI

Cena do filme Jeanne Dielman, 23, quai du Commerce, 1080 Bruxelles (1975)

Na interpretação de Runciman, o filme de Akerman é, antes de tudo, sobre controle. E o controle, no caso de Jeanne, manifesta-se na ritualização exagerada de atividades cotidianas banais. No filme, ela é uma dona de casa extremamente metódica. Cada tarefa — descascar batatas, lavar o banheiro, tomar banho, arrumar a mesa para o jantar com o filho, com quem divide o apartamento — é executada sempre da mesma forma. Nessa repetição, Jeanne encontra conforto e previsibilidade. Acompanhá-la nesses rituais é ao mesmo tempo estranho, misterioso e hipnotizante, como destaca Runciman. Ele questiona: como ninguém além dos espectadores a observa realizando essas tarefas, estaria Jeanne consciente do que faz? Em certo nível, provavelmente não, já que são gestos automáticos, parte de sua “memória muscular”. Contudo, Runciman sugere que há ali uma performance: Jeanne faz tudo isso para si mesma; ela é sua própria plateia. Ao agir assim, ela encontra conforto em fazer tudo “certo”, mesmo sob o peso opressivo do trabalho doméstico.

A partir disso, Runciman propõe uma segunda leitura fascinante: o filme também é sobre escolha. Sobre o dilema existencial de escolher — mesmo sabendo que muitas escolhas são irrelevantes. Por exemplo: onde, quando e como descascar uma batata? O ato em si, a hora de começar, o método a ser usado, são decisões minúsculas, sem grande importância. Contudo, essas escolhas precisam ser feitas. No contexto da rotina doméstica, essas “micro-escolhas” parecem triviais, mas são inevitáveis. Jeanne, para lidar com isso, hiper-ritualizou quase tudo. Dessa forma, eliminou qualquer espaço para dilemas ou ambivalências. Mas isso não dura. A menor quebra nessa rotina cuidadosamente construída é suficiente para desestabilizá-la, como quando as batatas cozinham além do ponto. No universo do filme, isso é uma catástrofe que abala Jeanne profundamente.

Por fim, Runciman oferece uma terceira interpretação: apesar de toda a ritualização e do controle aparente, Jeanne é profundamente vulnerável. Essa visão me fez reconsiderar o filme, especialmente como psicólogo, pois sei que a personagem demonstra traços de transtorno obsessivo-compulsivo. Para quem está nesse estado psíquico, manter o controle é fundamental. Na superfície, Jeanne parece controlar sua casa e sua rotina com perfeição, mas tanto ela quanto sua casa estão inseridas em um contexto maior. O apartamento está num prédio, que está numa cidade, dentro de uma sociedade. Runciman destaca um aspecto que evidencia essa vulnerabilidade: além das tarefas domésticas, Jeanne recebe homens em casa e é paga por encontros sexuais. As cenas de sexo não são mostradas, mas vemos a preparação e o momento em que os homens saem. Jeanne faz tudo isso com o mesmo mecanicismo ritualístico, e o dinheiro recebido é poupado.

Entretanto, Runciman sugere que poupar dinheiro, no contexto do filme, é outra ilusão de controle. A inflação no final dos anos 70 era especialmente agressiva. Assim, o ato de economizar dinheiro, que parece oferecer segurança, é na verdade fútil. Ao depositar o dinheiro no banco, Jeanne perde completamente o controle sobre o que acontecerá a seguir. A inflação destrói o valor do dinheiro e, por extensão, invalida todo o trabalho que gerou esse dinheiro. Para Runciman, essa vulnerabilidade econômica reflete a inflação de suas ações ritualísticas: tudo o que ela faz, toda a sua tentativa de controle, é corroído. Jeanne confia nesse sistema para manter sua vida burguesa e seus rituais, mas essa confiança é apenas fantasia. No fundo, não há controle algum.

Nos momentos finais do filme, Jeanne, após limpar o apartamento, senta-se em uma poltrona, com dificuldade para respirar. Respirar torna-se, então, um ato de escolha e, como tal, um dilema, um problema existencial. Ela não tem certeza se sabe ou mesmo se deseja respirar. Um terror instala-se nela — um terror vinculado à necessidade primordial de tomar uma microdecisão: respirar. Algo que, naturalmente, seria automático transforma-se em uma questão consciente, exigindo a intervenção de Jeanne, de sua vontade. O controle que ela tenta exercer em sua vida entra, assim, em uma espiral de colapso, atingindo seu ápice paradoxal: o que deveria ser natural e automático torna-se objeto de deliberação, de ocasião ou palco para a emergência da angústia.

Runciman conclui dizendo que este é um filme em que as grandes coisas são pouco importantes, enquanto as pequenas coisas se revelam absolutamente existenciais. Por exemplo, um evento significativo no filme é Jeanne matando um homem. No entanto, essa ação, que poderia ser vista como central, é tratada quase como algo menor, irrelevante no contexto da narrativa. Por outro lado, pequenos gestos, como a preparação de um café, tornam-se os momentos mais importantes. Eles não apenas ocupam grande parte do tempo, mas demandam um nível profundo de implicação emocional e psicológica da personagem.

O vento vai nos carregar

Desta vez gostaria de comentar um filme do diretor Abbas Kiarostami, conhecido pela trilogia Koker. Mas o filme em questão aqui é The wind will carry us.

Um grupo de amigos, que depois sabemos serem cineastas, vão até uma aldeia curda incrustrada no alto de uma planície para filmar um ritual local em torno da morte. O plot é simples assim. E “nada” ocorre em 118 minutos em que acompanhamos, quase que na mesma temporalidade do personagem, a estadia desses cineastas, em especial de um, Behzad. Exceto pura poesia.

Cena do filme The wind will carry us (1999)

A matéria do filme é o cotidiano: o transcorrer trivial da vida — nascer, alimentar-se, assear-se, trabalhar, morrer. E, claro, a presença majestosa da natureza. Uma natureza que, a julgar pelo comportamento dos habitantes do lugar, é parte intrínseca de sua percepção da vida. Isso chega a ser quase um incômodo para quem pensa pela lógica do sujeito-objeto, vendo o humano como algo apartado da natureza. Para essas pessoas, a morte é sempre um acontecimento assustador, como se estivesse à parte da vida, negando-a.

Por exemplo, Behzad, o personagem central (e único ator profissional no filme), sobe uma colina para pegar sinal de celular e, acidentalmente, encontra um fêmur humano em um cemitério improvisado. Ele pega o osso, compara-o com sua própria perna e, em seguida, coloca-o no painel do carro, como se fosse um objeto qualquer — um isqueiro ou um copo. Ninguém se chocou com isso. Nem ele. Mais adiante, o mesmo osso é jogado sobre um fio de água, próximo a um riacho onde cabras pastam. O osso, então, é levado pela correnteza, simbolizando a integração da morte com os vivos, numa harmonia que aparenta ser resignada, quase indiferente.

É evidente que não se trata de poetizar a penúria. Viver numa comunidade rural, como a retratada no filme, deve ser repleto de dificuldades. Não é um bucolismo burguês, tampouco uma visão romântica de alguém que observa de fora. Se refletirmos, nossas sociedades altamente tecnológicas, repletas de conforto e atalhos, também não escapam da mesma verdade final: a vida passa, a morte chega e, assim, o ciclo de reciclagem e renovação da vida continua. É um ciclo infinito, aparentemente sem propósito intrínseco. A diferença é que dispomos de subterfúgios, racionalizações, mediações e, como consequência, maior distanciamento — até mesmo uma ruptura — com a natureza e, por extensão, com a morte. Já não nascemos em casa; tampouco morremos lá. Nascemos e morremos em hospitais, onde os médicos são vistos como figuras apartadas de nós. Fetichizamos a ciência. Podemos até criticá-la, mas, no momento de desespero, na “hora H do dia D”, recorremos a ela como cordeiros assustados, em busca de milagres.

O filme, ao introduzir poesia no “deserto do real”, destaca o privilégio de estar vivo. Se o ciclo de nascimento, procriação e morte não possui propósito intrínseco, por outro lado, só os vivos podem contemplar a beleza da natureza. Nesse sentido, um dos melhores momentos do filme, para mim, ocorre quando Behzad encontra o médico da vila, que lhe dá carona em sua moto. Durante o diálogo, quando Behzad pergunta se “o outro mundo” — após a morte — não seria mais bonito, o médico, de maneira plácida e serena, responde: “Ninguém voltou de lá para nos dizer como é.” O que sabemos é que, ao fecharmos os olhos pela última vez, não haverá mais volta para cada um de nós, individualmente. Todas as maravilhas e belezas da natureza desaparecerão para nós. Essa é a verdadeira perda com a morte. Segundo o médico, a morte é muito pior que a pior das doenças.

Assim, ao longo de uma conversa casual entre duas pessoas numa moto, a “premissa” do filme se revela em forma de poesia. É surpreendente como verdades profundas são apresentadas com casualidade e até humor. Essas verdades são semeadas ao vento, voando, quem sabe, para germinar em algum outro lugar. Entre a vida e a morte, fica a ideia capturada por um conhecido ditado: “Melhor um pássaro na mão do que dois voando.” Na linguagem do médico, temos:

“Dizem que ela é linda como
uma huri do céu!
Mas eu digo…
que o suco da vinha é melhor.
Prefira o presente a
estas belas promessas.
Mesmo um tambor parece
melodioso à distância
Prefira o presente”

Cena do filme The wind will carry us (1999)

 

O abismo e o sublime

Ultimamente tenho assistido os filmes do diretor Robert Bresson. Dois deles me foram absolutamente impactantes. O primeiro, Au hasard Balthazar. O segundo, sobre o qual falarei algumas coisas aqui, é Mouchette (que é baseado num livro).

Mouchette é uma criança-adolescente que não encontra esperança ao seu redor. Sua situação é encapsulada de forma simbólica pela música que é forçada a cantar durante uma aula, uma composição atribuída, poeticamente, a Cristóvão Colombo: Vous qui n’avez plus d’espoir. Sur l’immensité profonde. Ses yeux s’ouvraient pour le voir.

Aqueles sem esperança, lançados na imensidão profunda do oceano, moldados por um horizonte infinito. Colombo suplica à sua tripulação desolada: apenas três dias. Três dias para que, com olhos bem abertos, possam contemplar a promessa de um novo mundo, de uma terra firme que os resgataria do vazio do oceano — o mesmo oceano que reflete um céu tão profundo e inescrutável quanto ele próprio.

Mas Mouchette nunca encontra terra firme.

A jovem é cercada pela desgraça. Sua mãe, à beira da morte, jaz na cama sob seus cuidados. Seu irmãozinho, ainda um bebê, depende completamente dela. Sem fósforos para acender o fogão e aquecer o leite, Mouchette improvisa, tentando aquecê-lo com o próprio corpo. Enquanto isso, enxuga as lágrimas de uma violência sexual recente (apenas a ponta do iceberg de sua miséria). Lágrimas que ela seca com o mesmo pano que serve de fralda para o bebê, este em prantos — de fome, frio, medo, ou simplesmente por estar encharcado de seus próprios dejetos.

Seu pai, alcoólatra, a agride. Seu corpo carrega as marcas do descaso: sujo, vestido com roupas desgastadas e sem lavar, ela é praticamente uma pária em sua comunidade. “Cara de rato”, dizem os meninos.

Quando sua mãe morre, Mouchette, a princípio, parece receber alguma atenção dos vizinhos daquela vila rural, conservadora, situada na França profunda. Mas a aparência de benevolência logo se desfaz, revelando as intenções reais. Para uns, Mouchette não passava de “uma vadia”; para outros, era uma imprestável. Não havia lugar para esperança em sua vida.

As badaladas do sino da capela, marcando a passagem cruel do tempo, são um dos poucos sons que permeiam sua jornada. Cada batida do sino, confesso, reverberava como um pássaro negro bicando minha carne em uma noite sombria.

Estou sendo vago, propositalmente, na descrição do filme. Para captar o fluxo de emoções que ele evoca, só mesmo assistindo por você mesmo.

Cena final do filme Mouchette (1967)

Tanto Mouchette quanto Balthazar se configuram como “animais sacrificiais” perante o público. Como modernos Pôncios Pilatos, fingimos que não é conosco, mas o diretor nos envolve irremediavelmente em uma trama onde o mal é destilado em detalhes — sua força ampliada pelo minimalismo dos cenários e pela crueza dos personagens.

Ambos protagonizam uma espécie de testemunho do colapso humano. Contudo, enquanto Balthazar permanece passivo, aceitando o peso de sua condição, Mouchette ainda tenta exercer algum tipo de agência, mesmo que limitada e dolorosamente expressa na forma de uma violência reversa.

Essa tentativa de reação, porém, é tragicamente desproporcional. A revolta de Mouchette, em comparação às forças esmagadoras que a cercam, é como pétalas de rosa diante das balas de canhão que a atingem incessantemente.

Cena final de Au hasard Balthazar (1966)

O sentimento mais coerente, se é que podemos usar essa palavra em algo tão profundamente contraditório, talvez seja a perplexidade — uma espécie de reverência ambivalente diante da coexistência do abismo e do sublime. Sentir-se esmagado entre a aridez da imanência, com suas lágrimas e crueldades, e a vastidão da transcendência, que só um olhar vivo pode alcançar, é habitar um paradoxo essencial.

É a tensão entre a finitude e o infinito que nos define como humanos. Podemos ser consumidos pela desesperança ao encarar a imanência brutal do mal — tanto na ação quanto na omissão — ou, paradoxalmente, nos maravilharmos com a revelação de algo maior, algo que insiste em surgir mesmo na escuridão mais densa.

Talvez o sentimento seja o da angústia sagrada, uma dor que não quer fugir, mas que também não se resigna. É o reconhecimento da graça e da tragédia coexistindo, como se o mesmo gesto que cria pudesse, ao mesmo tempo, destruir. Afinal, viver é ser lançado nesse entrelugar — onde contemplamos o belo e somos feridos pelo feio, onde buscamos sentido no vazio.

A coerência aqui, se houver alguma, talvez esteja em acolher o desconforto como parte do mistério, aceitando que não há resposta simples para a dualidade que nos atravessa. Em última instância, só o ato de perguntar já nos faz dignos dessa transcendência que somos capazes de entrever.

Feminilidade

Ultimamente, quando possível, tenho tentado assistir a filmografia do diretor sul-coreano Hong Sang-soo. Em algum lugar, vi que ele é chamado de o novo Ozu. Não sei se isso faz sentido, exceto que cheguei até ele por conta dessa associação, já que gosto muito do Ozu.

Até aqui, os filmes que assisti me causaram grande impacto, mas nenhum deles chegou perto de Virgin stripped naked by her bachelors (2000). Possivelmente, isso se deve à atuação da personagem central, em torno da qual a narrativa é estruturada – quer dizer, o filme ocorre da perspectiva da mulher. O mesmo ocorre em outros filmes igualmente brilhantes do diretor, em particular Nobody’s Daughter Haewon (2013), no qual a protagonista se envolve com um homem inseguro, incapaz de sustentar seu desejo.

Cena do filme Virgin stripped naked by her bachelors (2000)

Gostaria de deixar algumas impressões sobre Virgin Stripped. Como mencionei, a atuação de Lee Eun-ju, que interpreta Soo-jung, é excepcional. Foi só mais tarde que descobri que ela havia se suicidado aos 24 anos, e já se passaram exatos vinte anos desde sua morte. Isso me causou uma tristeza profunda.

De forma resumida, Soo-jung é uma roteirista para uma TV a cabo local. Ela é muito próxima de um produtor, e por meio dele, conhece um amigo rico, dono de uma galeria de arte. Esse amigo, Jae-hoon, se sente imediatamente atraído por ela. Atração essa que ele expressa de forma clara. No entanto, Soo-jung também nutre sentimentos por Young-soo, o produtor. Esse triângulo amoroso é contado através de um recurso frequentemente utilizado pelo diretor: a repetição de cenas, que oferece diferentes perspectivas sobre eventos semelhantes.

Soo-jung é uma mulher delicada, sensível e, em comparação aos homens à sua volta, mais madura. Além dos dois já mencionados, há também seu irmão e um amigo de longa data. Em sua essência, ela carrega uma feminilidade profunda, uma estética que pode ser interpretada de diferentes maneiras, dependendo do olhar do espectador. Um exemplo disso ocorre quando ela está na cama com Jae-hoon, que, sendo um mulherengo, a chama pelo nome de outra mulher. Naturalmente, Soo-jung fica abalada e se afasta. Jae-hoon, desesperado, sai à sua procura, e o vemos perdido nas ruas cinzas de uma cidade indiferente, tomado por um choque existencial. No entanto, na mesma cena, ela o reencontra e, de maneira surpreendente, pega sua mão. Nesse momento, parece que ele foi ressuscitado, resgatado de um abismo de alienação emocional, e foi a mulher que lhe ofereceu a chance de redenção, tirando-o da paisagem desolada e sem vida.

Os homens no filme, mesmo que não intencionalmente, acabam sendo agentes de violência contra ela, como no exemplo citado. Não se trata de violência física, mas da violência proveniente de homens perdidos em si mesmos. Eles crescem fisicamente, tornam-se fortes, conquistam status, mas nada disso os impede de serem, de certa forma, inseguros. A insegurança parece estar no coração do homem. Nos filmes de Hong, homens inseguros sempre se deparam com mulheres resolutas. Como é dito em outro de seus filmes, “a mulher é o futuro do homem” (Woman is the future of man). A feminilidade em Soo-jung, com sua serenidade, serve como bússola e guia em meio à névoa de uma masculinidade indecisa, taciturna e, muitas vezes, alcoolizada. Parece que os homens precisam de bebida para lidar com as complexidades sociais e afetivas.

O que uma mãe espera de seu filho?

Tragedy in life starts with the bondage of parent and child

É com esse ditado que o diretor Yasujirō Ozu começa seu filme The only son, de 1936. Nele, uma mãe faz tudo o que pode para enviar o filho para a escola – mas não porque ela desejava, mas sim porque o filho, ainda criança, praticamente a forçou a isso. E ela banca a aposta do filho. Vende suas humildes posses (uma casa), e passa a viver no local de trabalho. Graças a esse sacrifício o filho vai, de fato, para escola e se forma professor. Após muitos anos sem vê-lo, a mãe decide lhe fazer uma visita, em Tóquio.

A partir daí vemos, nas expressões da mãe, um misto de desapontamento, frustração e resignação. O filho havia se casado. Tivera um filho. Porém, morava nos rebaldes de Tóquio, e trabalhava como um professor de matemática à noite, em um colégio que, ao que tudo indica, não tinha status algum e ainda lhe rendia um salário com o qual mal conseguia sobreviver.

Para receber a mãe em visita, o filho precisa emprestar dinheiro de um colega. Um dinheiro que não dá para quase nada. Em solidariedade, a esposa vende seu quimono para arranjar um pouco mais de recursos para que pudessem levar a mãe para passear. E assim o filme vai se desvelando, em preto-e-branco, com o drama da frustração recíproca se instalando em ambos, filho e mãe, forçando-os a se confrontar com a realidade e a ressignificar sua relação.

Cena do filme. No fundo, a representação de uma fábrica. O trabalho interligando esses dois seres, misturados como numa neblina. O trabalho como um fio a ligar a sociedade japonesa do pré-guerra?

O que uma mãe espera de seu filho? Que ele seja alguém. Que suba na vida. Que tenha condições não só de sustentar sua própria família mas, se necessário, também dar suporte aos pais que envelhecem. Desde o nascimento, uma série de expectativas vão sendo destiladas pelos pais sobre seus filhos. Há um arranjo em que, do sucesso de um, há o sucesso do outro. E vice-versa.

Às vezes, filhos seguem pela vida tentando provar algo para seus pais. Tentam perpetuar aquele sonho que lhes foi impingido desde mesmo antes de seu nascimento. O desejo de fazer os olhos dos pais brilharem. De fazer com que esses pais encham a boca ao falar das suas conquistas. O orgulho da família. O que deu certo. Aquele de cujo sofrimento e sacrifício dos pais emergiu, fazendo tudo valer a pena e ter sentido.

No jogo de expectativas mútuas, vamos formando nossa personalidade. É muito provável que os primeiros desejos surjam desse contexto de profunda vinculação afetiva entre a mãe e o filho. Ocorre que essa relação primitiva é tão forte que ela imprime uma direção ao espírito do filho. Com o tempo, essa direção vai se travestindo de outros desejos, alguns dos quais, de fato, originais – digo, realmente desejo de um ser singular capaz de decidir seu próprio destino. Muitos dos desejos, porém, seguem nas trilhas deixadas no inconsciente pela relação mãe-filho.

Os desejos dos pais, de uma mãe em específico, são por sua vez ecos de sonhos mais amplos. Refletem o espectro da cultura. Em certos contextos, pais chegam mesmo a burlar a lei para ter seus filhos aceitos em colégios de prestígio. Outros pais entram em desespero com medo de que seus filhos fiquem aquém das conquistas dos filhos de outros pais. Há o pavor, o temor, do fracasso dos filhos. Em outras culturas, como talvez as orientais, se deposita um rigor descomunal sobre os filhos, que devem ser como vigas que envergam mas nunca quebram, como se deles dependesse a existência moral da família. Um filho que “fracassa” traria a desgraça da vergonha, um elo frágil para uma estrutura social que se fantasia inquebrável.

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Nossos pais podem ser nosso grande desafio, mas também nossas maiores fontes de aprendizado, um portal no tempo de nossa existência. São o acesso que temos àquilo que, na origem, era para ser nosso propósito, a razão de estarmos vivos. Eles têm o “blueprint” de nossa existência. Virar as costas para eles é só confirmar seu poder. Enfrentá-los é apenas jogar seu jogo. A reconciliação só será possível após o calvário da decepção, de onde então podemos emergir com alguma “síntese” provisória, com um projeto que tenha nossa genuína participação. Afinal, a vida começa no nascimento, não “antes” dele.

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Comentário extemporâneo, mas ligado ao assunto: sou da opinião de que a humanidade resolveria muito de seus problemas relacionados à desigualdade social e “familicídios” (do tipo Succession – a série) se os governos mundiais simplesmente decretassem que toda e qualquer propriedade que um indivíduo acumulasse em vida deveria ser, necessária e completamente, doada antes da morte do indivíduo. Porém, com um detalhe: nenhum descendente seria autorizado a receber absolutamente nada de seus genitores.

Imortalidade

Como explicar a imortalidade para pessoas simples? Você conseguiria fazer isso sem usar jargões religiosos ou filosóficos? Parece difícil, não? Pois o diretor Béla Tarr conseguiu, e de uma forma tão simples que você mal consegue acreditar. E ela está bem na abertura de seu Werckmeister Harmonies. Há mais de dez anos eu havia comentando um outro filme seu. A cena em questão está abaixo.

Como você pode ver, a escolha do diretor para tocar no tema da imortalidade foi o movimento dos astros, mais exatamente a Terra, com nossa Lua rodopiando a seu redor, e o Sol, ao redor de cuja órbita dançam todos os outros astros. Tentei assistir pequenos vídeos científicos ilustrando extamente esses mesmos movimentos, mas não é a mesma coisa. Nunca havia pensando na imortalidade desta forma, embora certamente essa intuição já estivesse dentro de mim. Talvez de todo mundo.

Em um momento da encenação, János Valuska, o ator representado aqui por Lars Rudolph, solicita o seguinte a seu espectador: Tudo o que peço é que você dê um passo comigo rumo à infinitude, onde a constância, a quietude e a paz reinam no vazio infinito. E apenas imagine que, nesse silêncio sonoro infinito, há uma impenetrável escuridão por toda parte.

Somos apresentados ao reino do vazio infinito. O Cosmos, que é, sob qualquer ponto de vista, um “ambiente” extremamente hostil. Essa hostilidade, e os limites aparentemente intransponíveis que ela impõe aos bilhões de planetas apenas na nossa galáxia (a Via Láctea), são, hipoteticamente, uma das razões por que nunca tenhamos sido contatados por outras formas de vida inteligente (assumindo, é óbvio, que elas existam). Esses diversos mundos são como ilhas isoladas umas das outras, cuja distância (cada vez se ampliando mais) e condições inimagináveis de seu entorno tornariam qualquer viagem, mesmo de civilizações supostamente mais sofisticadas que a nossa em termos de sustentabilidade energética, um beco-sem-saída.

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E então o ator introduz o Sol, dizendo: A luz brilhante do sol sempre irradia seu calor e luz no lado da Terra que está voltado para ele naquele momento. E nós estamos aqui, em seu esplendor. O nosso sol é um “farol” que ilumina o mar escuro. No caso da Terra, porém, ele a ilumina apenas em uma de suas partes de cada vez, as quais assim se revezam entre luz e escuridão. Mas há um acontecimento fantástico representado pela nossa Lua, que provoca uma “indentação” na esfera ardente do Sol. No início, essa indentação é pequena, mas ela vai ficando maior e maior. E então um evento dramático ocorre: a Lua bloqueia a luz solar. Temos um eclipse, que, como ocorreu recentemente no hemisfério norte, pode ser total.

Na Terra, o fenômeno provoca um espanto em todo o reino animal: O céu escurece, e então tudo fica completamente escuro. Os cães uivam, os coelhos se encolhem, os veados correm em pânico, correm, fogem em desespero. E nesse crepúsculo terrível e incompreensível, até os pássaros… até os pássaros também estão confusos e vão pousar. E então… Silêncio Completo.

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Imagine um período em que não tínhamos o conhecimento científico para explicar esse acontecimento. Nossos ancestrais devem ter se apavorado até os ossos. O que era aquilo? O primeiro humano que testemunhou esse evento deve com certeza ter imaginado que o mundo acabaria. Que a terra se abriria sobre seus pés, que era o fim. Imagine o desespero, sentir a escuridão engolindo sem aviso o dia, assistir os animais se recolhendo em debandada, a temperatura cair, o silêncio, a escuridão do universo enfim triunfando sobre nosso pequeno ponto luminoso no nada. Tenho certeza que esses primeiros seres pensantes devem ter vivenciado isso tudo como uma experiência profundamente religiosa, mesmo antes de religiões terem sido criadas oficialmente.

E como eclipses não ocorrem a todo momento, e considerando que os primeiros seres pensantes não tinham ainda uma cultura escrita e outras formas de transmissão, é provável que tais experiências de terror nunca tenham sido documentadas. Talvez alguns vestígios aqui e ali, feitos em alguma pedra. Realmente, não sei. A raridade (do ponto de vista da temporalidade de uma vida humana) de um eclipse tornava cada novo acontecimento um acontecimento novo, e igualmente desesperador.

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Mas, então, aos poucos, a lua vai se afastando daquele lado da Terra sobre o qual ela estava bloqueando a luz. Assim, a coroa radiante do Sol novamente atinge a Terra, trazendo de volta o calor, o verde e as demais cores. Os animais, que até ali estavam num reino de terror e pânico, à espera do pior, novamente colocam os pescoços fora dos buracos. Talvez, a princípio, ainda desconfiados, mas aos poucos vão retomando suas rotinas, e dentre em pouco já não se lembrariam mais de nada.

Para o ser pensante, porém, talvez não possamos falar a mesma coisa. Algo, por certo, havia de ter ficado gravado em seu espírito. Talvez a lembrança desse acontecimento o tenha transformado de algum modo profundo. Talvez um sentimento de antecipação passasse doravante a fazer parte de sua imaginação. Talvez ele tenha concluído que precisaria “fazer alguma coisa”. Não podia ficar carregando esse peso por onde quer que fosse. Talvez isso tenha lhe manchado tanto a alma que sua curiosidade exploratória tenha despontado com força e fundado seu caráter. Ele precisava descobrir o que era aquilo. Sua tenacidade exploratória passaria a ser proporcional a seu medo e a seu desamparo. Assim, uma profunda disciplina talvez tenha surgido, a disciplina que muitos milênios depois chamaríamos de disciplina científica. Na sua base, o terror, o desamparo, mas também a esperança, o desejo de se antecipar ao Cosmos. Ou ao menos de dar-lhe uma explicação, um sentido – isto é, um pequeno conforto, ainda que isso lhe revelasse a profunda contradição de sua existência, a contradição entre finitude e eternidade.

Como conclui nosso personagem: Emoções profundas penetraram em todos. Eles haviam escapado do peso da escuridão. O peso da escuridão: eis aí algo de que não se sai ileso. Aquela escuridão que nenhuma lâmpada pode combater, nenhuma vela, nenhum fogo ou tocha. A escuridão que escapa dos limites das espécies vivas. A escuridão impenetrável do Universo, que está “ali” a poucas centenas de kilômetros de nosso planeta. Com esse pensamento, certamente a espécie pensante não teria outro destino diferente do misticismo. Inicialmente, um misticismo delirante, algo que nosso cérebro nos permite de produzir. O delírio nada mais é que a representação mental, e sua relativa autonomia, de um acontecimento no mundo físico, pensamentos gerando pensamento e, no mesmo processo, sendo mascarados como pensamentos. Aos poucos, porém, o delírio vai cedendo, tanto na medida em que os humanos vão aprendendo a se sintonizar com o mundo físico mediados por instrumentos, como na medida em que eles vão construindo sistemas filosóficos – estes últimos, embora não necessariamente conectados imediatamente com o mundo físico, exploram cenários mentais possíveis para o lugar dos humanos em tal mundo físico e, mais importante, colocam-se a si próprios como pensamentos (sobre pensamentos).

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A escuridão nos amedronta e nos fascina. Na caracterização de Béla Tarr, porém, como você deve ter visto no vídeo acima, ela é também profundamente magnânima, num sentido transformador para um ser pensante. Pois se formos capazes de apreciar, mesmo que de modo indireto, o movimento dos planetas, as forças incalculáveis que estão em sua base, a harmonia resultante dessas forças, o simples fato de haver planetas com esse tipo de sincronicidade e perfeição… se formos capazes de penetrar nesse mistério, que é afinal materializado aqui na Terra na forma de reações e afetos, então isso nos abre a possibilidade de resgatarmos o sentido real de nossa capacidade reflexiva, seja na ciência ou em qualquer outra esfera. Aqui sim é o “universal” se manifestando no “particular”. A opção de um ser pensante por viver sua vida toda apartado dessa constatação, mergulhado em trevas e escuridão, em delírios individuais e coletivos, é a maior ironia, o maior “desperdício” a que nos encurralou nosso próprio cérebro.

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Na verdade, o movimento da Terra, da Lua e do Sol é muito mais complexo. Tudo tem a ver com o ponto de referência escolhido. Se você tiver interesse, assista o vídeo abaixo e se surpreenda!

Corrupção

Há algumas semanas assisti o filme The human condition, dirigido por Masaki Kobayashi. Trata-se de uma história épica (são nove horas de filme), um verdadeiro retrato das deformações pelas quais passa o espírito humano em tempos e situações extremas.

Essencialmente, acompanhamos a jornada de Kaji. Ele começa como uma espécie de responsável pelo RH de uma mina de carvão. Idealista, tenta tornar as condições de trabalho menos penosas possíveis, mas é levado a situações tão extremas e paradoxais que, no final, acaba sendo demitido. A demissão o faz ser convocado para o exército imperial, e então o seguimos em sua peregrinação pelos quartéis japoneses, onde o absurdo está em toda parte.

No exército, mais uma vez Kaji tenta ajudar seus companheiros. Segue uma “filosofia” que ouviu de um dos trabalhadores de seu emprego anterior: Os semelhantes (neste caso, os bons) sempre encontram outros semelhantes. E, de fato, aqui e ali ele vai encontrando pessoas que, como ele, tentam humanizar condições inumanizáveis.

Finalmente, Kaji acaba como prisioneiro de guerra. Vai para um campo de trabalho forçado do Exército Vermelho. Ali, novamente, nosso personagem vivencia situações que o empurram cada vez mais longe no sentido da desumanização. Sua humanidade é, mais uma vez, testada até o limite. Presencia novos absurdos “institucionais”, mais burocracia estúpida e injusta, traições, trapaças, desprezo e a banalização da morte. Logo ali, entre os “companheiros” que, supunha Kaji, jamais poderiam ser injustos…como “socialistas”, com certeza (pensa Kaji) seriam justos. Deveriam ser o que de melhor haveria de humanidade. Nada mais longe da realidade.

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Até que ponto o espírito humano é corruptível? Na visão religiosa, somos sempre, desde o nascimento, condenados ao pecado. Já nascemos impuros, e não vai ser um banho nalgum rio qualquer que vai nos salvar. Nossa caminhada nesta vida é de contínua contrição, de expiação. Todo o momento somos provados e testados. Há quase tudo arquitetado para que falhemos. Mas precisamos acreditar na Graça e tentar nos salvar. Chegar o menos “sujos” no final quanto sejamos capazes.

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Sempre que preciso viajar de avião tenho um pensamento sombrio: em geral, tudo corre bem. As pessoas se sentam nos seus assentos; são educadas, ajudando umas às outras a acomodar bagagens; cedem sua vez para que outro passageiro passe; etc. Porém, e aí vem meu pensamento sombrio: e se esse avião sofresse um acidente?

Fico imaginando que quanto mais grave for um eventual acidente, mais a humanidade de cada pessoa é colocada à prova. E mais se pode rumar para uma lei da selva, um caos de rebanho assombrado. Em filmes enlatados de Hollywood, nestas horas sempre aparece um “herói” que se sacrifica pelos outros (em geral, homem). É claro que esse herói existe. E sua existência, mesmo que rara, é necessária para termos certeza de que, aconteça o que acontecer, nossa humanidade prevalece. Haverá coragem, altruísmo.

Mas a corrupção do espírito humano é diretamente proporcional à percepção de que a vida individual, ou suas extensões (membros da família, propriedade, etc.), está ameaçada. Quando só há um lugar a ocupar e existem várias pessoas disputando esse lugar, aí é que vemos a corrupção. Mesmo o esporte, que obviamente não é uma situação extrema como a sugerida acima, representa uma forma de corrupção às avessas: pois vertemos lácrimas para o vencedor. E por quê? Porque sabemos que ele mereceu, que venceu ao se superar, e superar os outros, seguindo regras justas e previamente estabelecidas. Mas é também uma corrupção, pois sempre haverá perdedores, e a cultura funciona, pelo menos na superfície, emulando winners e mandando para o lixo todos os perdedores.

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Eis assim que aquele jovem recém-formado, idealista e cheio de discurso coletivista e participativo, quando entra em uma instituição, especialmente se for uma empresa, vai progressivamente se corrompendo. Tanto no sentido de “defender o seu”, como no sentido de perda de sua individualidade. Ele vai modelando seu comportamento e sua linguagem, depois seu pensamento e enfim sua afetividade. Para falar a verdade, ele vai sendo modelado (ver meu outro post a respeito). Parafraseando o que uma vez disse Sartre, os jovens de hoje serão os avós de amanhã, tão conservadores quanto os atuais avós.

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A humanidade é linda desde que haja comida, propriedade, segurança, conforto e um lugar ao sol para todos. Quanto a realidade se distancia disso, aproximando-se de um cenário de escassez ou recursos limitados, aí então temos o terreno da corrupção. A corrupção é parte de um narcisismo atávico e ancestral. A coragem, em geral, implica numa abnegação, num desinteresse profundo, num desapego virtuoso. Não parece ser corriqueiro, mas está nas infinitas possibidades de ser um humano – a condição humana.

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Para finalizar, vamos pensar no seguinte. Imagine que você seja um pai ou mãe de família durante a França ocupada pelos alemães na Segunda Guerra. E suponhamos que, nesse contexto de situação extrema, você tenha a oportunidade de refugiar em seu porão um perseguido pelo regime nazista. Caso você aceite, e seja pego, toda sua família seria sumariamente executada. Você correria esse risco? Muitos assumiram. Muitos mais não.

O limite

Quando sabemos que chegamos a nosso limite, ao limite daquilo que almejamos nos tornar (supondo que, nada mais nada menos, queiramos nos tornar os melhores ‘do mundo’ no que fazemos?). Em que momento sabemos que é hora de desistir?

Algumas dessas questão são colocadas em Whiplash (ver filme abaixo).

O argumento não é novo, mesmo no caso da arte. A discussão sobre os limites da obsessão por se tornar o melhor atravessa a arte, da literatura ao cinema (no caso da primeira, ocorre-me agora o livro “O náufrago”, de Thomas Bernhard).

Em Whiplash ( literalmente, “chicotada”) um jovem estudante de uma das “melhores escolas de música dos EUA” encontra-se às voltas com um professor linha-dura, do tipo daqueles instrutores impiedosos do exército, que a todo instante o pressiona e o “humilha” (uso entre aspas pois, no mundo politicamente-correto que vivemos, um professor, quando quer extrair o melhor de seus alunos, é chamado assim, como quem humilha os alunos – claro, há exceções, mas não estou falando delas) pelo direito de poder tocar na bateria da banda de jazz da escola.

Embora o filme tenha muitos lapsos, o fato é que ele lida com aspectos simplesmente fundamentais de nossa relação com nossos desejos e com sua possibilidade de realização, para não falar da própria relação ensino-aprendizagem e a busca pelo sublime, pelo perfeito, pelo milimetricamente exato, preciso, sintonizado (o professor em questão, apenas após alguns toques dos instrumentos pelos músicos, já sabia se estavam ou não sintonizados).

Até que ponto somos, enfim, capazes de sustentar nosso desejo? Bom, a pergunta já foi indecentemente explorada por muita gente, psicanálise à frente. No contexto do filme, que não poderia ser melhor (o da música), há, mesmo num gênero conhecido pelo improviso (o jazz), um ‘produto’ tangível decorrente do que os músicos fazem – um produto (a música) que pode ser avaliado, pode ser contrastado com algum critério de valor (no caso do professor-linha-dura, um critério beirando à perfeição). Quer dizer, mesmo que tenhamos “subjetivismos” aqui e ali, fato é que podemos distinguir um “bom” músico de um músico mediano ou simplesmente medíocre.

Nas artes, nossa relação com o belo, com a perfeição, com o ajuste fino, irreparável, entre corpo e mente, entre corpo e instrumento, entre corpo/instrumento e os demais membros/instrumentos (de uma banda, como é o caso do filme), é muito mais facilmente discernível do que em campos menos propícios à geração de ‘produtos tangíveis’.

Não se trata, penso, de sustentar ‘psiquicamente’ nosso desejo, mas, antes de mais nada, de colocá-lo em ação em termos de desempenho. Até que ponto, porém, vai a perseverança, a resiliência, a capacidade de resistir às frustrações e continuar? Basta, como no filme, a pessoa ensaiar, praticar, estudar, até o limite da exaustação e do prejuízo físico (o jovem músico tinha, nos momentos em que ensaiava, sangue nas mãos)? Treinar horas a fio, dias, meses, anos, é ‘garantia’ de que seremos (como queria o jovem personagem, como todo adolescente?) “os melhores do mundo em nossas áreas de especialidade”?

Claro que não basta, aqui, jogar a dívida na conta do talento. O talento depende de disciplina, pelo menos parece assim ser em muitas áreas (mesmo para os gênios). Porém, quantas pessoas, em todo esse mundo, talvez nesse exato momento, estão treinando, obstinadamente, para se tornarem os melhores, se superarem? No caso brasileiro, para dar um exemplo, pense-se no exército de pequenos jogadores, ávidos para superar os times de vársea e chegar a alguma divisão minimamente respeitável do futebol (claro, sempre visando se tornarem grandes ‘craques’, como os ídolos de plantão…). Quantos chegarão no topo? Pouquíssimos, e não se trata apenas de oportunidade (embora, claro, se houver, melhor!), nem tampouco de apenas sorte, nem de treinamento exaustivo. É preciso algum ingrediente a mais.

O filme dá a entender que tal ingrediente pode ser encontrado do lado do próprio indivíduo, de sua obstinação, motivação. Subrepticiamente, a mensagem é: o mundo vai lhe dar muita porrada, vai lhe jogar lama na cara e vai dificultar, muito, sua vida. Só nesse momento, um exército vai morrer na praia. Não vão aguentar a carga, ou, como inclusive ocorre no filme, vão até algum advogado e tentam processar o professor (no caso) pelo “assédio” e pelo método pouco “educativo” do professor (que, de fato, perde o emprego de instrutor por conta disso). Recorrer à justiça, embora devidamente plausível e, em muitos casos, realmente necessário, é, de novo neste filme, sugerido como algo para os “fracos”. Essa mensagem, evidentemente, dá muita dor de cabeça para muita gente. Joga-se a criança e água fora, nesta questão. Humilhou, processo nele! Porém, e se houver algo mais profundo, algo mais visceral, algo mais próximo do “real” (no sentido filosófico ‘realista’) nisso tudo, e se, de fato, como diz o professor quando encontra seu ex-aluno num bar, for essa, precisamente essa, a causa do fracasso que a música vivencia hoje em dia (ele dá o exemplo do jazz, mas, óbvio, a generalização pode ser facilmente feita aqui)? O que separa o exército que morre na praia, que racionaliza (“ah, isso não era para mim, mudei de área…”), se entrega, do pequeno número dos que prosseguem? Volto à pergunta: treino, perseverança, ousadia, acreditar em si mesmo, talento?

Arriscar. Talvez seja isso. Pena que o filme não explora os dilemas do personagem, nem as contradições envolvidas nesse jogo de ser o melhor, de fracassar, de desistir, ou de seguir adiante. Neste ponto, o filme, a meu ver, perde densidade, fica rarefeito. Mas o objetivo desse meu post não é fazer uma crítica profissional do filme (de críticos ‘profissionais’ há muito por aí e você pode facilmente achá-los).

Meu ponto é outro, justamente esse de questionar em que medida nos separamos da mediocridade. A mim, um diagnóstico parece acertado deste filme (embora por razões diferentes das apresentadas): um amolecimento generalizado, a começar nas escolas, desde os “jardins da infância” (ou sei lá o nome dado hoje a essa etapa da alfabetização) até, sobretudo, à universidade, tem distorcido muita coisa. Para começar, muitos de nós não somos mais capazes de nos confrontar conosco mesmos e com nossos próprios ideais. Em algum nível, talvez seja porque temos medo de encontrar algo de que não queremos ter notícia. Dentro de nós! Algo que nos diz que, “…ah, puxa, a vida é assim mesmo, para que sonhar tão alto? Isso é para os adolescentes…eu prefiro o pé-no-chão, o feijão-com-arroz do meu emprego e da minha vida atual…isso é que é ser adulto…”. E vamos nos levando com racionalizações “verdadeiras”. Depois, esse amolecimento, como o próprio nome diz, está nos levando, sobretudo a nossos jovens, à perniciosa ideia de que não é preciso se esforçar para conseguir as coisas. Quando muito, algum esforço calculado, pois, novamente como defesa ou sei lá o que, a gente cria a ideia de que “…ah, como estou trabalhando, como estou estressado…preciso relaxar…”. Não é paradoxal que cada vez mais cresça a tal geração “nem-nem”: nem trabalho, nem estudo? Seria só por falta de oportunidades, de um capitalismo selvagem que engole a todos, sem dó nem piedade, pois só o que importa é o seleto grupo dos melhores? E, nessa mesma direção, vemos novamente a criança ir embora com a água, ao dizer que é o “capitalismo” que implanta na nossa cabeça a ideia de que temos de nos superar e sermos os melhores…sim, o capitalismo (deve ser o capitalismo que faz com que músicos queiram atingir o sublime e a perfeição…sim, o capitalismo). Irrita-me essa lama de bobagens.

(…)

Mas, para não me alongar mais, pois teria de mostrar e fundar minha ‘indignação’, e para não parecer superficial, encerro à francesa: recomendo o filme. Afinal, é bem melhor ver esse clima de “exército” tendo, como pano de fundo, o jazz, do que aqueles filmes com recrutas descerebralizados… Melhor filme do ano para mim!

Estética como ética

Assisti ao filme A grande beleza, de Paolo Sorrentino. Há muitas críticas sobre o filme disponíveis na internet, boa parte das quais enfatizando a semelhança do filme com  A Doce Vida, de Federico Fellini. Em ambos os casos, o cenário é Roma. Em ambos os casos, supostamente, a incapacidade de o personagem principal (no caso de A grande beleza, Jep Gambardella [Toni Servillo]) adaptar-se ao mundo ao redor, à mundanidade. Na Roma de 2013, a mundanidade resum-se ao consumo e às excentricidades da classe abastada.

Sem me desviar muito do eixo das críticas, inclusive da que, para mim, fez mais sentido (a de Calligaris na Folha de quinta, 26), queria registrar algumas impressões.

1) O vazio sentido por Jep em meio, paradoxalmente, à abundância, ao exagero das cenas e imagens – um contraste fantástico entre um barroco (romano), repleto de obras de arte, e o vazio. Nossa vida resume-se ao espaço delimitado por um parênteses, uma suspensão, entre a dor e momentos fugazes de prazer inesquecíveis (ou, como diria a “santa” Maria do filme, “as raízes”);

2) A estética como um modo de estar no mundo, de tornar a vida suportável. Não se trata de futilidade, como muitos críticos observaram: a futilidade de uma Roma submersa no consumismo, no desfrute, no gozo sem qualquer “seriedade” (como se algum gozo tivesse seriedade, não é?!). Trata-se de fluência: a fluência da vida, dentro do parênteses que a delimita, no fluxo da ilusão;

3) A ilusão tem um destaque fundamental no filme, a meu ver. E é sempre importante lembrar que ilusão não é sinônimo de mentira, de engodo, o avesso da realidade: no filme de Sorrentino, a ilusão é o próprio líquido amniótico da existência. Uma espécie de estética da ilusão, o sincronismo das imagens perfeitas;

4) O vazio do filme não tem a ver apenas com um passado feliz que não pôde se realizar no presente (Jep tem um amor de juventude, e, logo no início do filme, é comunicado de que ela havia acabado de morrer); tem a ver com o que fazer enquanto “esperamos” a morte. Sim, não adianta fugir; não há para onde correr – a morte é como tudo termina, é “o outro lado” comentado por Jep ao final. Mas, antes da morte, há “o lado de cá”, e, neste, o que fazer? Trabalhar? Ser uma pessoa séria, respeitada, proeminente? Criar e cuidar dos filhos? Do lado de cá, na visão de Jep, existe apenas uma coisa: momentos felizes soterrados sobre um monte de blá, blá, blá; e momentos de medo e dor, também eles sedimentados sobre um monte de blá, blá, blá (sic). E a ética de Jep é, justamente, a ética da estética, a ética da ilusão.

5) Talvez os críticos do “consumismo” e da mundanidade não consigam enxergar isso: de que não é possível haver uma posição isenta, uma perspectiva a-temporal que nos diga, com certeza doutrinal, de que certas ações, certos rituais, são “fúteis”. Ora, qual seria o inverso da futilidade? A penitência? A vida regrada, ordenada, “certinha”? A vida pequeno-burguêsa, ou, ao inverso, a vida modesta? O que quero dizer, e que acho que é uma leitura possível do filme, é que, no conteúdo encerrado pelo parênteses da vida, só nos resta a ilusão, e, nesta, a estética.

Malária


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