O vento vai nos carregar
julho 27, 2024
Desta vez gostaria de comentar um filme do diretor Abbas Kiarostami, conhecido pela trilogia Koker. Mas o filme em questão aqui é The wind will carry us.
Um grupo de amigos, que depois sabemos serem cineastas, vão até uma aldeia curda incrustrada no alto de uma planície para filmar um ritual local em torno da morte. O plot é simples assim. E “nada” ocorre em 118 minutos em que acompanhamos, quase que na mesma temporalidade do personagem, a estadia desses cineastas, em especial de um, Behzad. Exceto pura poesia.
Cena do filme The wind will carry us (1999)
A matéria do filme é o cotidiano. O transcorrer comezino da vida – nascer; alimentar-se; assear-se; trabalhar; morrer. E a presença majestosa da natureza. Uma natureza que, a julgar pelo modo como se comportam os habitantes do lugar, é parte intrínseca de sua recepção da vida. E isso chega a ser quase um incômodo para alguém que pense pela lógica do sujeito-objeto, do humano como de alguma maneira apartado da natureza. Para quem a morte é sempre um acontecimento assustador, como se estivesse à parte da vida e a negasse.
Por exemplo, Behzad, o personagem central (aliás, o único ator profissional no filme), quando sobe sobre uma colina para pegar o sinal do celular, acaba, acidentalmente, encontrando um fêmur humano. O local era uma espécie de cemitério. Ele pega o fêmur e o compara com sua própria perna. E depois o coloca sobre o painel de seu carro como se fosse um objeto – um isqueiro, um copo. Ninguém se chocou por ele fazer isso. Nem ele. Esse mesmo osso é, mais à frente, jogado sobre o fio de um riacho, em volta do qual pastam algumas cabras. E vemos o osso sendo carregado pela água — a morte integrada com os vivos, numa harmonia que aparenta resignada, indiferente.
Claro que não se trata de poetizar a penúria. Possivelmente, viver numa comunidade como a retratada no filme, uma comunidade rural, deve ser uma tarefa repleta de dificuldades. Não se trata de bucolismo burguês, de uma visão de alguém que vem de fora. Se pensar bem, nossas sociedades altamente tecnológicas, repletas de conforto e atalhos, não se furtam da mesma verdade final, de que a vida passa, a morte chega…havendo novamente uma reciclagem e o ressurgimento (reciclagem) da vida. É um ciclo infinito e, aparentemente, sem qualquer propósito intrínseco. A diferença é que temos mais subterfúgios, racionalizações, mediações e, como resultado, distanciamento (até mesmo no sentido de ruptura) da natureza. E, portanto, da morte. Nem nascemos mais em casa; tampouco morremos em casa. Nascemos e morremos em hospitais. Vemos os médicos como gente diferente de nós. Fetichizamos a ciência. Podemos até criticá-la, mas na hora do desespero, na “hora H do dia D”, é a ela que recorremos, como cordeirinhos arrependidos e assustados. Desamparados em busca de milagres.
O filme, ao introduzir a poesia no “deserto do real”, chama a atenção para o privilégio que é estar vivo. Se o ciclo do nascimento-procriação-morte não tem propósito intrínseco, por outro lado só os vivos conseguem contemplar a beleza da natureza. Nesse sentido, um dos melhores momentos do filme para mim foi quando Behzad encontra-se com o médico da vila, que lhe dá uma carona na sua moto (fotos). No diálogo, quando questionado se “o outro mundo” não seria mais bonito (após a morte), o médico, placida e serenamente, diz: Ninguém voltou de lá para nos dizer como é. O que sabemos como um fato é que, ao fecharmos nossos olhos pela última vez, não haverá mais volta para cada um de nós, individualmente: todas as maravilhas e belezas da natureza se apagarão para nós. É isso que “perdemos” ao morrer. A morte, diz o médico, é muito pior que a pior das doenças.
Assim, ao longo de uma conversa de duas pessoas numa moto, a “premissa” do filme se revela em forma de poesia. Espanta pela casualidade e até mesmo humor com que verdades profundas são colocadas. Aliás, são semeadas ao vento. Voam e, quem sabe, podem germinar em algum outro lugar. Entre a vida e a morte, fica a ideia bem capturada por um de nossos ditados: Melhor um pássaro na mão do que dois voando. Na linguagem usada pelo médico, temos:
“Dizem que ela é linda como
uma huri do céu!
Mas eu digo…
que o suco da vinha é melhor.
Prefira o presente a
estas belas promessas.
Mesmo um tambor parece
melodioso à distância
Prefira o presente”
Cena do filme The wind will carry us (1999)