Experimentos mentais, 5: a panela

Ele trabalhava fazia algum tempo numa siderúrgica. Era responsável pela limpeza da divisão de alto forno da usina. Era um trabalho extremamente exigente, pois além de conviver em um ambiente com alta temperatura, ainda tinha o barulho, a poluição visual e outros imensos riscos ocupacionais. Tinha de tomar muito cuidado. Já fazia esse tipo de trabalho há quase duas décadas. Portanto, não era mais um novato, nem em idade nem em experiência laboral. Ao longo desse tempo, porém, sua vida havia mudado muito. Não só fora da usina, mas internamente, no seu coração. Ele não sabia explicar muito bem quando, como nem por que começou a sentir um peso enorme dentro de si. Quando começou nesse ramo de atividade, a despeito das agressivas condições de trabalho, ele se sentia leve, ágil, capaz de identificar quaisquer problemas e de se antecipar em sua solução. Não era um empregado absolutamente exemplar, nem brilhante. Mas também não era dos piores. No início, tinha certeza de que, mesmo não sendo reconhecido como gostaria, ele estava fazendo sua parte. Mantinha seu setor o mais limpo e organizado quanto possível. Também no início, tinha um tipo de frio na barriga quando chegava ao trabalho. A siderúrgica, embora fosse um lugar inerentemente hostil, despertava certo temor nele. Não sabia explicar, mas era uma sensação de entrar dentro de um monstro, e de se sentir pequeno em relação a ele. Sentia-se ao mesmo tempo fascinado e amedrontado por esse monstro. Bom, na prática, havia motivos para amedrontar-se. Ao longo de seus anos de trabalho havia testemunhado muitos acidentes. Alguns fatais. Bom, mas isso já faz tempo. Agora, nada disso parecia importar muito mais. Tinha algo mais sério para se preocupar, esse peso interno cada vez maior dentro si. Não entendia a razão desse peso crescente. Não havia mudado nada em sua rotina diária. Mas era óbvio para si mesmo que algo estava muito fora do lugar. Ele era movido pela energia de seus músculos, que por sua vez ele sabia que vinha dos alimentos que, mesmo sem vontade, tinha de comer todo dia. Mas só isso. Quanto ao resto, ele sentia como se não fosse mais senhor de si mesmo. É engraçado, ele pensa. Pois realmente não conseguia identificar nada de extraordinário. Nada tinha ocorrido de diferente com ele. Mesmo assim, o peso foi surgindo como a sombra do fim de um dia – você está deitado na cama, diante da janela, meio acordado, meio adormecido. Num momento está claro, noutro já há uma penumbra. Entre um cochilo e outro, quando você de fato recupera a consciência já está noite. Foi assim com ele. E o peso gera mais peso. Há uma inércia, um momento nesse peso: ele tende a se retroalimentar. Nunca chegou a falar disso para ninguém. Não era casado, não tinha filhos, e era de muito poucos amigos. Tinha um ou outro colega com quem esporadicamente trocava umas palavras. Quando não estava no trabalho, costumava ficar em casa deitado num sofá. Até receber entregadores do supermercado havia se tornado uma tarefa penosa para ele. Pensava o tempo todo nesse peso, mas sem pensar. Quer dizer, ele sabia que estava pensando sobre o peso, mas pensava em termos do peso, por assim dizer. Pensava com o peso. Então, ele não se separava do problema. E o peso aumentando mais e mais. No trabalho, já não conseguia fixar a atenção em algo fora de si. Seu corpo, por sua vez, continuava fazendo o serviço de sempre. No fundo, sabia que isso era um imenso risco para ele naquela ocupação. Afinal, há limites para o automatismo do corpo na execução de uma tarefa. Em certa ocasião, sem falar exatamente desse peso obscuro, comentou com um colega que não se sentia mais tão empolgado sobre o trabalho. Esse colega lhe sugeriu que participasse de uma reunião do sindicato. Acabou indo em uma. Ouviu, mas era como se não estivesse presente. Ele não era uma pessoa de confrontos. Nem de embates, tampouco alguém apaixonado por alguma ideia ou por alguma luta coletiva. Saiu da reunião ainda mais pesado. E foi então que, durante um expediente como muitos outros, sentiu algo tão absurdo, um insight tão cortante, que involuntariamente até deu um recuo para trás no ar. Caiu como um raio sobre ele a certeza de que ele era um bloco de minério! Afinal, ele estava numa siderúrgica, então, a metáfora veio como algo natural. E assim, do nada, tudo começou a fazer sentido. Ele havia se dado conta de que se metamorfoseara num pedaço de ferro gusa. Nunca havia testemunhado em si uma epifania tão avassaladora como essa. Toda a dúvida e os desarranjos de sua vida interior caíram no lugar. Exceto por um detalhe: o ferro gusa deveria estar dentro da panela de gusa, onde então o ferro seria separado das impurezas pelo fogo inescrutável. E foi assim que ele desapareceu na panela, sem deixar o menor traço, sendo logo mais incorporado para sempre numa placa pura de ferro.

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Diálogos, 1

Você tem alguma certeza?

Sim. A primeira: não sou mestre de mim mesmo; não estou no controle. A segunda: posso morrer a qualquer momento. E minha última certeza: não falta nada no mundo.

Mas o fato de todos nós morrermos um dia depende de termos certeza? Faria alguma diferença?

No desfecho final, nenhuma diferença, óbvio. Mas faz diferença para mim mesmo. Ter certeza da minha mortalidade. Pois somente quem não ama é que deseja viver. Quem não ama se apega à vida.

Então você está me dizendo que aceitar a morte depende de ser capaz de amar?

Todo mundo pensa que, ao amar alguém ou algo, não vamos jamais querer morrer. Uma filha, por exemplo, te faz se apegar a vida, certo? Uma carreira reconhecida? Uma obra exuberante? Não faz sentido para a maioria das pessoas dizer o inverso. Porém, o amor causa um adensamento imprevisível da existência. Não dá para se apegar mais à existência, pelo menos não em seu sentido corriqueiro. Amar é, pois, morrer. Pelo menos uma parte de você morre. Por isso, pessoas que não amam têm a liberdade mental suficiente para investirem tempo e energia em simplesmente continuarem vivendo. A vida é fácil para elas. Podem ser grandes executivas, empreendedoras, e sobretudo políticas e burocratas.

Então você acha que não falta nada no mundo? Essa é tua outra certeza?

Não, não falta nada. Pelo menos quando consideramos tudo o que é espontâneo no mundo – e não as coisas humanas, necessariamente. Cada detalhe do mundo, não importa onde nem o que, é perfeito em sua própria natureza. Pois pense: todas as obras e manifestações mais sublimes do espírito humano já estavam contidos no mundo. Mas somos disciplinados a pensar na vida humana como falta. Há mesmo uma estética da falta atravessando muitas perspectivas, por exemplo a psicanálise. O ser é definido com relação ao que lhe falta, e pelo que ele se põe em movimento. Cada detalhe de coisas que estão diante da pessoa é comparado e julgado contra um padrão ideal, sempre gerando um hiato de sofrimento e alienação em relação ao presente. Esse tipo de postura criou uma versão diminuída do ser humano, e de quebra ainda ajuda a promover a economia.

Não considera que tudo isso que está dizendo, essas tuas ‘certezas’, possa estar simplesmente na tua cabeça?

Se você abrir e ler todos os livros do mundo, ou se conseguir conversar com todos os sábios ainda vivos, e ao cabo disso tudo vier para mim e disser que encontrou algo que contradiga o que estou te dizendo, ainda assim não mudarei minha opinião. E te digo o motivo: a realidade não é fixa. Ela é uma versão provisória do real. Pois o real propriamente dito será sempre inacessível para nós humanos, por mais que você me mostre meu cérebro iluminando em uma ressonância magnética. Você não vai extrair dali nada de mais real do que as palavras que estou usando para criar minhas certezas.

Você não estaria tomando a realidade pelas tuas palavras, palavras essas pelas quais você expressa essas tuas certezas?

As palavras, especialmente as bem articuladas, são âncoras provisórias em que nos agarramos para não ficarmos totalmente à deriva. Tome tudo de uma pessoa. Se ela ainda tiver uma ou outra palavra para costurar seu disforme caos interno, então ela estará relativamente protegida da escuridão, do fracasso, da perda de tudo e de todos. Palavras são como as folhas secas sobre as quais formigas atravessam um rio. O desafio, porém, é se você realmente acredita nelas. Se não acreditar de verdade nelas, então nem como folhas elas te servirão. Vão se tornar cascas vazias onde você vai se esconder como um covarde armado.

O ovo que chocou

O que é uma pessoa? Esta é uma pergunta que só na aparência é banal. Uma pessoa é, claro, um ser vivo. Um corpo. A materialidade desta última é obviamente inegável e, por si só, é condição necessária, embora não suficiente, para haver uma pessoa. Primeiro, pois esse corpo precisa ser “montado”. Refiro-me a “montar” no sentido de um cavaleiro que monta sobre um cavalo. Há, nesse gesto, o assumir controle sobre o cavalo. Sei que esta metáfora pode ser capciosa, pois de algum modo poderia sugerir que nosso corpo precisa ser dominado (mente dominando o corpo etc.). Mas considere a metáfora de outra forma. Montar é assumir. Como uma modelo numa passarela: ela precisa incorporar, vestir, empossar-se, tomar conta de um personagem do qual seu corpo será um veículo, um signo.

Segundo, o corpo precisa ser colocado em situações, precisa interferir sobre, agir sobre, coexistir com, mas essencialmente pôr-se em contato com, partes do mundo físico e social. Quer dizer, o corpo e por extensão a pessoa é um meio de ação, uma forma de mediação com a realidade. Interessantemente, nosso corpo é um duplo, mediação de um “eu” com relação ao mundo mas também mediação do sujeito, do “eu”, com o “mim” – como em: “Eu me vejo”. Quem é esse eu que vê? Ele vê o me (o mim). Mas o que/quem é esse me/mim? O eu vê o me num espelho, digamos. Nosso corpo é o que gostaríamos de ver? Por que nem sempre conseguimos assumir o corpo que “temos”? Em outras palavras, por que não conseguimos “montar” nosso corpo? Por que o eu estaria em oposição ao me/mim? Enxergamos uma coisa (um objeto real no mundo, nosso corpo) mas vemos outra no lugar. Meu ponto: tais exemplos mostram a duplicidade da experiência da pessoa na sua própria corporiedade. Mas não se limita a ela, obviamente.

Uma pessoa é também uma projeção. Uma projeção de inúmeras possibilidades a serem realizadas. A pessoa é uma potência. E é aqui onde eu gostaria de chegar. Uma pessoa pode ser uma cesta de inúmeros ovos que podem ou não chocar. A trajetória que escolhemos estar neste momento não é nada senão uma possiblidade realizada dentre tantas outras que não o foram (os muitos ovos que não chocaram) mas que ainda estão aí no cesto como potências. E o que ocorre quando o número de ovos não chocados fica tão grande que a pessoa prefere negar-se em vez de empreender em uma direção em particular? Ela deixaria de ser uma pessoa? Ou então quando ela diz para si mesma: “Bom, todos os ovos têm a mesma probabilidade de chocar. Além disso, um ovo é completamente intercambiável por outro. Qualquer um poderia ocorrer. Tanto faz”. E com pensamentos assim ela acaba concluindo que sua trajetória atual é tão aleatória e sem valor relativo que ela bem poderia não ter ocorrido de todo. O mundo de possibilidades torna-se um mundo niilista. Um mundo de indiferença.

Aqui fica uma reflexão. Se você está numa certa trajetória de vida, ela é com certeza um dos ovos que chocaram. Poderia ter ocorrido tudo diferente, incrivelmente diferente? Com certeza, e se examinar a fundo sua trajetória você vai descobrir que por detrás das “grandes decisões” de sua vida houve dezenas de outras pequenas decisões banais e impensadas (ou pensadas com justificativas duvidosas) que coalesceram nessa grande decisão. Você pode viver outras infinitas vidas? Aqui as coisas ficam mais complicadas. Primeiro, pois você talvez não tenha tempo suficiente, independente de sua idade cronológica. Ou energia, inclusive física. Segundo, pois a outra trajetória que viesse a escolher cairia no mesmo problema da anterior: poderia ter sido diferente. De um lado, o excesso de confiança em si como pessoa merece escrutínio. Pessoas assim podem estar escoradas em ideais e desejos de outros, nos quais se baseiam tão intensamente que essas pessoas acabam sendo por eles “montadas” (e não o inverso). Por outro lado, pessoas extremamente inquietas, auto-questionadoras e problematizadoras permanentes de si podem ser como apostadores frustrados: até sabiam que estavam fazendo uma aposta, e uma aposta poderia dar certo ou errado (probabilidades), mas quando de fato perdem (no nosso exemplo, quando materializam uma trajetória concreta), ficam inconformadas.

Uma cena do filme Our Sunhi, do diretor Hang Sang-soo, cujo diálogo entre esse dois personagens inspirou este post, especialmente os próximos parágrafos. Credito da imagem aqui.

Como descobrir quem você é? Pegue sua trajetória atual e vá fundo, cave fundo, vá até o fim, com tudo, com força. Se, nesse processo, você descobrir que algo deu errado, então você saberá quem você é, qual seu limite e o quão verdadeiramente “montado” você está nessa trajetória em particular, ou tão somente lançado nela como uma moeda jogada ao ar, dependente de pura aleatoriedade. Uma pessoa deveria ser mais que uma aleatoriedade. Mais que um mero acaso. Embora a vida seja exatamente isso: uma aleatoriedade que se materializou, deu certo e se firmou como algo que, retrospectivamente, dizemos que valeu a pena. Pois que se registre, só para efeitos de argumentação: se não houver eternidade, onde a pessoa viveria para sempre tal como ela é hoje, então é isso que temos: uma única vida.

Agora pense: diante da última frase acima, de que só temos uma única vida, qual a recomendação padrão ou muito comum? Que devemos nos reinventar sempre. Que a mudança é a regra, a única coisa “permanente”. Aí, ao final da vida, com o intuito de justificar essa ontologia rasa e cacofônica, típica de uma época volátil como a nossa, a pessoa diz que “viveu intensamente, com muitas experiências”. Sabe o que acho? Que falta o oposto: gente que não fique querendo mudar o tempo todo, se reinventando, se “desconstruindo” etc. Gente que vá fundo em algo. Que se radicalize nesse algo, e se descubra verdadeiramente no processo. Não precisamos de infinitos ovos para fazermos uma saborosa e nutritiva omelete.

Experimentos mentais, 4: O penguim

Uma cena do documentário Encounters at the End of the World (2007), do magistral Werner Herzog

Naquela manhã, como em muitas outras, ele havia acordado no meio de outros pinguins. Mal podia se mexer e logo esbarrava no companheiro do lado. Na verdade, jamais se poderia determinar quem havia se mexido primeiro. Dava no mesmo, no fim. Um mexe aqui, outro é mexido lá. Vice-versa. Uma grande massa que, se pudesse ser vista de cima, seria confundida com uma poça de petróleo. Quando o sol começa a despontar no horizonte antártico, nem parecia o sol todo majestoso que, na altura do equador, é tão voraz que parece querer engolir a Terra. Em fez disso, ali era um sol tão vestigial que mais parecia uma luzinha de poucos watts sofrendo para vencer a invasão da noite escura com tênues penumbras de clareza. Graças à mecânica dos corpos, ao frio que se torna menos frio, e à luz pálida que é logo refletida pela neve infinita, os pinguins começam a se mover. A massa preta vai se transformando em pontos pretos, que então vão se espalhando e se espalhando a ponto de a neve ficar parecida com a pele de um dálmata. A dinâmica toda é acionada pelo estômago, como sempre ocorre nesses casos. O estômago sincronizado desses pinguins faz pernas e barbatanas logo entrarem em ação. Os pontos pretos seguem um vetor predominante rumo a um penhasco, do qual pulam e se lançam como balas de canhão no mar revolto. Hora de arranjar comida. E assim essas aves, com a rapidez com a qual transitam da terra para o mar, tornam-se peixes ágeis e graciosos, cortando a água como lâminas. Mas ele não fez nada disso. Não, não. Inicialmente, ficou parado no mesmo ponto onde havia estado a noite toda. Na correria, foi chacoalhado um pouco para frente e para o lado, mas se recompôs. Tinha os pés firmes e bem posicionados na neve, a esse ponto já meio derretida em volta deles. Seus olhos ovais, combinando um preto com marrom, fitam perdidos a paisagem à sua frente. Uma paisagem hoje idêntica à de ontem, e de muitos dias antes. E, provavelmente, idêntica a de muitos dias a porvir. Branco à direita, à esquerda, na frente e atrás dele. Com um detalhe: lá à distância, atrás dele, a neve transita em declive, sendo então possível vislumbrar os contornos de uma linha de montanhas. De resto, o branco triste, frio, estéril e vazio. Ele fica olhando o nada por quase uma hora. Aqui e ali, mexe um pouco as barbatanas, como se estivesse imaginando o mar, ou combatendo algum inseto. Do nada, se vira no sentido oposto àquele trilhado pelos companheiros logo mais cedo – ou seja, o sentido das montanhas. E começa a andar. Simples assim: anda, anda, anda e, ao fazê-lo, vai balançando as barbatanas para se equilibrar, como se estivesse conversando em voz alta e gesticulando contra os próprios pensamentos. O corpo, embora siga mais ou menos em linha reta, oscila em torno de seu eixo, parecendo mais uma marcha do que uma caminhada. De passos curtos e rápidos vai seguindo pelo manto branco de neve. Segue em direção às montanhas. Vai num caminho sem volta, sozinho, longe para sempre de seus companheiros. Um caminho em cujo fim certamente encontrará a morte. Torna-se, irrevogavelmente, um simples pontinho na imensidão do cenário. Um simples pinguim, ora andando, ora dando barrigadas na neve para acelerar o ritmo, rumo ao branco profundo, ao silêncio, ao esquecimento.

Experimentos mentais, 3: O pequeno animal

Estava sobre a margem de um rio. Caiu ali. O organismo estava sendo dominado por uma infecção. Ele havia passado, há alguns dias atrás, por um galho molhado caído no chão. As folhas desse galho formavam um tipo de prancha, tão lisa que o desfecho inevitável era que escorregasse e fosse lançado contra uma pedra. Só que essa pedra em particular tinha uma estrutura irregular, como um diamante cinza com várias quinas pontiagudas formadas por ângulos esculpidos. A carne do animal é rasgada no encontro seco e direto com um desses ângulos. Estímulos extremamente caóticos são disparados na região do tecido violado. À velocidade da luz, eles percorrem as vias nervosas periféricas, indo desaguar no rudimentar centro nervoso do animal. O resultado surge na forma de um grito estridente, profundo e contínuo, jorrando pelo ar da mesma forma como o sangue estava jorrando do tecido perfurado. O grito se espalha na redoma formada por um enclave na floresta, de onde rodopia pelo ar e se dissipa para o além. Nada nem ninguém podia vir em socorro. A chuva recomeça a cair, e o sangue da ferida é diluído pela água, formando no chão um pequeno redemoinho num decrescente de vermelho, começando bem vivo e vibrante, passando por um rosado, depois por um rosa-alaranjado, até por fim, lá embaixo na trilha em que seguiu bailando com a água, tornar-se quase transparente. A floresta parecia estar diluindo o pequeno animal, primeiro seu grito, depois seu sangue, em poucos dias seu corpo inteiro. Assim, sozinho e frágil, o pequeno animal se tornou presa do predador mais poderoso, impiedoso, do qual era impossível escapar, o predador que existe dentro de qualquer ser vivo, seja do pequeno ou do grande animal. Um predador que fica o tempo todo à espreita, aguardando o menor sinal de fraqueza, uma brecha pela qual ele possa atacar. E uma vez ele lance suas garras sobre sua vítima, então nada mais ela poderia fazer. Nosso pequeno animal fez sua última jornada sobre a Terra primitiva com muito esforço. E é assim que o encontramos na margem desse rio que lhe oferta uma água fresca e límpida para um último gole, sua última interação visceral com a mãe terra. O pequeno animal se estira na margem, onde pequenas pedras polidas por séculos formam uma cama em volta de seu corpo. O dia estava lindo e radiante, com uma fina trilha de neblia à distância, indicando os últimos vestígios da manhã. Do ponto onde está o pequeno animal, a água segue seu curso independente pela floresta. Ao longo de seu caminho, vai refletindo as copas das árvores do Triássico. Parece uma serpente verde ondulando rumo ao infinito. Quem sabe quantos outros animais, como este que acaba de se extinguir, ela vai beijar pelo caminho.

Cena do filme A árvore da vida (2011). Detalhe no canto direito da figura.

Experimentos mentais, 2: Embaixo da carroça

Era uma manha chuvosa. Ele estava quase meio corpo enterrado na lama. Estava de quatro. Suas pernas e braços com certeza estavam na lama. Disso ele tinha certeza. Além da chuva havia neblina. Seus dentes também tinham um pouco de lama, ele agora pensava. Estava com fome. Sim, era em parte pela fome e em parte pela chuva que ele estava ali embaixo daquela carroça. O cavalo ao qual a carroça estava atachada era um animal maltratado. Não que isso fosse relevante para sua presente situação. Aliás, ele nem achava que cavalos deviam ser bem tratados, estar vistosos. Pelo menos não os cavalos dos plebeus. Sim, ele era um plebeu. Na verdade, na sua mente, ele era alguém que não vivia no castelo. Só isso que ele sabia com certeza. Sua condição não era um tema de reflexão. Até porque, o que sabia ele? Ele nem sabia que podia saber algo. Ou que havia algo para se saber. O sol nascia, ele tinha fome, buscava comida, como agora, e voltava para o monte de palha cheia de merda de galinha na qual dormia. Ele tem vontade de abrir a boca. E abre a boca bem aberta, torcendo a cabeça para cima, revelando para o teto de madeira da carroça seus dentes destroçados. Podres. Um podre obsceno. Ele olha para o teto da carroça e, sem saber o porquê, imagina que houvesse ali um espelho. E no espelho ele vê um espectro, uma figura disforme, uma coisa que, mesmo não tendo consciência de si, parece perguntar ‘O que é isso?’ E fica entretido por algum tempo nessa penumbra fantasmagórica de um espelho que não existe, de uma pessoa que não existe para além das fronteiras da fome. A fome. Essa dor estranha no meio do corpo. Era mais desconfortável que a lama misturada com estrume na qual estava banhado. Olha pelos vãos da roda da carroça. Olha para o céu, e uma gota graúda de chuva lhe acerta bem um dos olhos. Leva a mão enlameada em ato involuntário até eles. Só piora o estado de um dos olhos. Mas que importa. Ajusta o olho que ainda está aberto e enxergando e o direciona para o pequeno público que perambula por ali. Ele está à espera do fim da feira. Era uma feira medieval. Rudimentar e agrária como poderia ser uma feira medieval. E uma feira de um burgo pobre e desgraçado. Ainda por cima, ele tinha nascido ali. Sempre esperava até o fim da feira, e sempre achava um pedaço de nabo quebrado, sujo e duro. Ou um caule perdido de alguma cenoura há muito já longe dali. Hoje com essa chuva, pensa ele, o caule estaria completamente empapado. Mas ele comeria mesmo assim. E é isso mesmo o que no fim acaba acontecendo. Agora sentado embaixo da carroça e não mais de quatro, come os talos de nabos e cenouras. Não é muito. Mas o suficiente para acalmar essa dor que aparece umas duas vezes ao dia e que desaparece assim que ele come coisas como caules e talos. E assim passa mais uma manhã. Como essa, mais umas duas ou três, antes de ele ser esmagado pelas rodas de outra carroça num dia sem chuva.

Experimentos mentais, 1: a bala

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Estavam bem no momento de transição entre a noite fria e a manhã ainda em compactos de neblina. O comum entre eles era que ambos estavam na floresta. A diferença entre ambos é que um tinha um revólver e o outro tinha um crânio prestes a ser perfurado. Mas a diferença mais radical entre ambos era que um teria um dia (talvez semanas, anos) a mais para se perceber como pessoa no mundo, e o outro não tinha mais do que alguns poucos minutos. De fato, mal esse pensamento se formou e logo ele estava de joelhos, costas voltadas contra o outro, nuca contra o cano da arma. Ele poderia estar com os olhos abertos, ou poderia estar com os olhos fechados. Qual maneira seria melhor de terminar? Com os olhos abertos, a última lembrança seria a da floresta: a imagem de árvores, folhas, um verde transitando para o azul infinito do céu, novamente sendo aspergido de luz pelo sol. De olhos abertos, talvez ele ficasse simplesmente mesmerizado, como se estivesse num navio, olhando por uma janela, e vendo uma ilha passar, antes de rumar novamente para o infinito do mar. Com os olhos fechados, poderia ver aquele ponto vermelho formado quando a luz atravessa a pele que cobre os olhos, refletindo nos minúsculos capilares, irrigando tudo de vermelho. Se está vermelho, pensaria ele, então ele ainda estava vivo. Com os olhos fechados, talvez predominassem as lembranças de seu passado, suas memórias. Mas ainda havia seu corpo. Ele poderia, seja com olhos abertos ou fechados, sentir a neblina pela última vez, ou pela primeira vez, tão distante tinha estado de simplesmente sentir as coisas a seu redor, como costumava fazer na infância. A bala atravessa seu crânio, desarranjando tudo que encontra pelo caminho, cortando pele, osso, membranas, primeiro dizimando sua capacidade de ver (lobo ocipital), depois destruindo toda a misteriosa e complexa arquitetura do órgão supremo, seus ventrículos, suas dobras, as fibras que encabeiam e conectam toda a estrutura e suas partes, sua intrincada rede de vazos, finalmente saindo pela frente, obliterando para sempre seu senso de self, sua capacidade de pensar e se separar do mundo, mesmo nunca deixando o mundo. A descrição foi em câmera lenta, como se a bala fosse passando de compartimento em compartimento, como alguém saindo de um cômodo da casa para outro, apagando as luzes no caminho. Na verdade, tudo se apagou num instante de uma violência atroz e estúpida. Um pedaço de chumbo e um pedaço de carne envolta num casulo calcificado. A partir desse momento, nada mais importa para esse ex-ser. Toda a beleza, todo o potencial de descobertas, toda a curiosidade permanentemente insuflada pelos enigmas do mundo desaparecem por completo. O tempo, para esse ex-ser, não tem mais nenhum sentido. O tempo continuará a ser o que sempre foi e será: infinito.

What is important?

Do you really know what is important in life? Life itself? Beloved Ones? Health? Wealth? Knowledge? Vanity? Self? The body itself (as Schopenhauer once [indirectly] said)? What about career (of course, a successful one [joking])?

What if … some ‘futile’ detail is, in fact, something of paramount importance to you? I couldn’t, unfortunately, explain to you exactly what I’m thinking. I have the image, but I am not able to convey it in language (at least, not easily).

Ok, that doesn’t make sense. After all, if I have a blog, it is because I think I should materialize my ideas in this tiny post, right?

Well, yes. So, here you go: to grasp what is really important, you, paradoxically, has to go beyond your own [fantastic] self. Yes, the self is pure (necessary) illusion: time within brackets. It appears to me that the only thing that really matters is the “body” [by contrast to self-as-an-imaginary-instance] and, by consequence, the ‘here-and-now’.

Yeap. Whenever we, by means of your ‘mind’ (its power), transcend the actual life we’re having, then we are losing ground, and reaching, so to speak, the helm of the imaginary, the domain of what should be important (or should have been important [as fantasy]).

Two days ago my oldest dog had a collapse. I thought she had passed away. At that very moment, I had no ideas or images in my mind, only her (supposedly) dead body. At that exact moment, that body was the only thing really important, material, to me. Everything else, all the illusions of my self, were sent to the back of my mind. All of the sudden, they stop tormenting me. Do you see? The “événement” – something like “the event”. It took my breath away. The self, in that particular, singular and irreversible moment, was nothing. Three or so minutes later, my dog “came back to life”. I had no idea she was having ‘only’ a collapse (she has an early heart failure insufficiency), and not going to die. Then, life went back to its track, but this episode led me to think about what is important in life…

Capiche?

Six nonsensical and extemporaneous assertions

1. Speaking English is a sign of ‘intelligence’? Don’t be an idiot. This is only a question of where you’ve born. “English native speakers” are such a regular person as you.

2. You have a body, right? Of course, you have. Ok, so let’s take a geographic perspective. The ground is the reference point, ok? Then, from bottom-up, we have, (1) shit (your stomach and so forth), and … (2) your brain.

3. Around one “smart guy” (basically, someone that has managed to deal with valuable symbolical resources, because he or she is a professional hoax), there are always a lot of other “small guys” trying to benefit or be as “smart” as their “master.” As Rorty once said: only one or two are really innovative (intellectually speaking). The rest is only trying to copy and find some justification to fill the space between their foot and their brain (I mean: that thick layer of shit).

4. What if the cynism was the best (or the only) way to deal with the nonsensical conditions of modern (and, especially, academic) life?

5. Your life would be completely different if you could listen to music, take wine and, then (and only then), was able to use what is located above the shit-deposit I’ve mentioned before (of course, doing everything at once). The “raw” life is too much tough and meaningless to support.

6. Marx, I bet, is laughing in his grave. Because we think we are free spirits walking around the world. When you come to realize that you only need to render account to those who pays your bills, your feeling of being free (or captive) would much be more realistic.

***Final remark: we speak more than we should. Have you already realized how noisily the world is? I´m doing my part…

Plastic

Plastic is, probably, one of the most ingenious discoveries of our advanced, scientific and industrial era. We depend heavily on plastic to the well-functioning of our daily life – a toothpaste tube, a medicine bottle, all the pieces that compound the computer I’m now using to type this post, plastic bags we use to pack our stuff – there are so many applications to plastic-made objects that would be hard to sum up here. In a word: I can’t imagine our life without plastic.

But is well-known that plastic can be, at the same time, one of the worst enemies of nature. Plastic is difficult to degrade. And if we add to this characteristic the fact people are sometimes irresponsible in the way they throw out their no more useful plastic objects, then we can imagine the problem. Indeed, each year, tons of plastic debris are simply dumped into the ocean – the natural habitat of many species of seabirds.

One of these birds is the Laysan albatrosses. What a gracious creature!

These birds have a long wingspan, and they fly vast distances without flapping their wings. They can also spend years without touching land, living for more than half century. As if were not enough all the threats we human beings are causing to their environment (breaking the balance of their habitats), now they face a new menace: tons and tons of plastic that are dropped into the ocean every year. The problem? A recent study shows that this plastic is confused as their natural prey. This happens due to a chemical process that misleads these birds – the plastic debris generates a dimethyl sulfide signature that is the same trace these birds use to identify their ‘food.’ The result: they swallow this debris and then…. they die as a consequence. The photographer Chris Jordan has captured this tragic outcome in images like the next one.

chrisjordan1

I know. I know. While this is happening, you are concerned with your life. What is the value of the Albatrosses’ life? Your son is infinitely more important. The paper I’m struggling to publish right now is more important. Even what I’m going to eat next is more important. Who, in the so-called “First World” is concerned with the destiny of the plastic waste they produce? Most of the people have a shit for that. And so we in the “developing countries”.


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