Experimentos mentais, 5: a panela
maio 29, 2024
Ele trabalhava fazia algum tempo numa siderúrgica. Era responsável pela limpeza da divisão de alto forno da usina. Era um trabalho extremamente exigente, pois além de conviver em um ambiente com alta temperatura, ainda tinha o barulho, a poluição visual e outros imensos riscos ocupacionais. Tinha de tomar muito cuidado. Já fazia esse tipo de trabalho há quase duas décadas. Portanto, não era mais um novato, nem em idade nem em experiência laboral. Ao longo desse tempo, porém, sua vida havia mudado muito. Não só fora da usina, mas internamente, no seu coração. Ele não sabia explicar muito bem quando, como nem por que começou a sentir um peso enorme dentro de si. Quando começou nesse ramo de atividade, a despeito das agressivas condições de trabalho, ele se sentia leve, ágil, capaz de identificar quaisquer problemas e de se antecipar em sua solução. Não era um empregado absolutamente exemplar, nem brilhante. Mas também não era dos piores. No início, tinha certeza de que, mesmo não sendo reconhecido como gostaria, ele estava fazendo sua parte. Mantinha seu setor o mais limpo e organizado quanto possível. Também no início, tinha um tipo de frio na barriga quando chegava ao trabalho. A siderúrgica, embora fosse um lugar inerentemente hostil, despertava certo temor nele. Não sabia explicar, mas era uma sensação de entrar dentro de um monstro, e de se sentir pequeno em relação a ele. Sentia-se ao mesmo tempo fascinado e amedrontado por esse monstro. Bom, na prática, havia motivos para amedrontar-se. Ao longo de seus anos de trabalho havia testemunhado muitos acidentes. Alguns fatais. Bom, mas isso já faz tempo. Agora, nada disso parecia importar muito mais. Tinha algo mais sério para se preocupar, esse peso interno cada vez maior dentro si. Não entendia a razão desse peso crescente. Não havia mudado nada em sua rotina diária. Mas era óbvio para si mesmo que algo estava muito fora do lugar. Ele era movido pela energia de seus músculos, que por sua vez ele sabia que vinha dos alimentos que, mesmo sem vontade, tinha de comer todo dia. Mas só isso. Quanto ao resto, ele sentia como se não fosse mais senhor de si mesmo. É engraçado, ele pensa. Pois realmente não conseguia identificar nada de extraordinário. Nada tinha ocorrido de diferente com ele. Mesmo assim, o peso foi surgindo como a sombra do fim de um dia – você está deitado na cama, diante da janela, meio acordado, meio adormecido. Num momento está claro, noutro já há uma penumbra. Entre um cochilo e outro, quando você de fato recupera a consciência já está noite. Foi assim com ele. E o peso gera mais peso. Há uma inércia, um momento nesse peso: ele tende a se retroalimentar. Nunca chegou a falar disso para ninguém. Não era casado, não tinha filhos, e era de muito poucos amigos. Tinha um ou outro colega com quem esporadicamente trocava umas palavras. Quando não estava no trabalho, costumava ficar em casa deitado num sofá. Até receber entregadores do supermercado havia se tornado uma tarefa penosa para ele. Pensava o tempo todo nesse peso, mas sem pensar. Quer dizer, ele sabia que estava pensando sobre o peso, mas pensava em termos do peso, por assim dizer. Pensava com o peso. Então, ele não se separava do problema. E o peso aumentando mais e mais. No trabalho, já não conseguia fixar a atenção em algo fora de si. Seu corpo, por sua vez, continuava fazendo o serviço de sempre. No fundo, sabia que isso era um imenso risco para ele naquela ocupação. Afinal, há limites para o automatismo do corpo na execução de uma tarefa. Em certa ocasião, sem falar exatamente desse peso obscuro, comentou com um colega que não se sentia mais tão empolgado sobre o trabalho. Esse colega lhe sugeriu que participasse de uma reunião do sindicato. Acabou indo em uma. Ouviu, mas era como se não estivesse presente. Ele não era uma pessoa de confrontos. Nem de embates, tampouco alguém apaixonado por alguma ideia ou por alguma luta coletiva. Saiu da reunião ainda mais pesado. E foi então que, durante um expediente como muitos outros, sentiu algo tão absurdo, um insight tão cortante, que involuntariamente até deu um recuo para trás no ar. Caiu como um raio sobre ele a certeza de que ele era um bloco de minério! Afinal, ele estava numa siderúrgica, então, a metáfora veio como algo natural. E assim, do nada, tudo começou a fazer sentido. Ele havia se dado conta de que se metamorfoseara num pedaço de ferro gusa. Nunca havia testemunhado em si uma epifania tão avassaladora como essa. Toda a dúvida e os desarranjos de sua vida interior caíram no lugar. Exceto por um detalhe: o ferro gusa deveria estar dentro da panela de gusa, onde então o ferro seria separado das impurezas pelo fogo inescrutável. E foi assim que ele desapareceu na panela, sem deixar o menor traço, sendo logo mais incorporado para sempre numa placa pura de ferro.