O fastio do ‘homem moderno’

Gravura Melencolia I, de Albrecht Dürer (1514)

A sujeição da linguagem

Há uma passagem de um livro de R. Barthes em que ele discute o “fascismo da língua”. Segundo ele, fascismo não é impedir de dizer, mas sim obrigar a dizer. Quando falo, o simples ato de usar a língua já me insere no poder. Assim, para Barthes, falar não seria tão somente um ato de comunicar algo, mas de se sujeitar. Quando falo já estou a me submeter nas estruturas esperadas contidas na minha língua. Soma-se, de um lado, a autoridade de quem faz uma asserção e, de outro, o gregarismo de quem a repete.

A característica do gregarismo da língua estaria já contida nos signos de que é composta. Um signo precisa ser reconhecido. O outro que me ouve precisa validar o que estou dizendo: não apenas o conteúdo, mas igualmente a forma. Sem isso, não se fecha o circuito cotidiano da compreensão.

E o mais interessante é que a sujeição se aplica mesmo quando “falamos com nós mesmos”, dentro de nossas cabeças, no monólogo interminável de nossos fluxos de pensamento, da nossa consciência. Mesmo ali, na intimidade, nos sujeitamos. Há, internamente, uma “autoridade” que profere um determinado discurso (o “eu”?), e outra que o reconhece, dando-lhe alguma verosimilhança. Isso pode ganhar contornos de obsessão, paranóia, neurose (para a qual a repetição é uma característica importante).

Portanto, para tentar escapar da sujeição, duas possibilidades: experimentar ou ficar calado. De fato, ficar em silêncio é uma forma de evitar entrar nas camisas-de-força embutidas na linguagem, nas suas estruturas de poder e reconhecimento (pelo outro). Seria o silêncio (interno e externo) uma forma de resistência? A experimentação, por sua vez, é atuar nas franjas, nas bordas, nas fronteiras de discursos institucionalizados.

O vento vai nos carregar

Desta vez gostaria de comentar um filme do diretor Abbas Kiarostami, conhecido pela trilogia Koker. Mas o filme em questão aqui é The wind will carry us.

Um grupo de amigos, que depois sabemos serem cineastas, vão até uma aldeia curda incrustrada no alto de uma planície para filmar um ritual local em torno da morte. O plot é simples assim. E “nada” ocorre em 118 minutos em que acompanhamos, quase que na mesma temporalidade do personagem, a estadia desses cineastas, em especial de um, Behzad. Exceto pura poesia.

Cena do filme The wind will carry us (1999)

A matéria do filme é o cotidiano. O transcorrer comezino da vida – nascer; alimentar-se; assear-se; trabalhar; morrer. E a presença majestosa da natureza. Uma natureza que, a julgar pelo modo como se comportam os habitantes do lugar, é parte intrínseca de sua recepção da vida. E isso chega a ser quase um incômodo para alguém que pense pela lógica do sujeito-objeto, do humano como de alguma maneira apartado da natureza. Para quem a morte é sempre um acontecimento assustador, como se estivesse à parte da vida e a negasse.

Por exemplo, Behzad, o personagem central (aliás, o único ator profissional no filme), quando sobe sobre uma colina para pegar o sinal do celular, acaba, acidentalmente, encontrando um fêmur humano. O local era uma espécie de cemitério. Ele pega o fêmur e o compara com sua própria perna. E depois o coloca sobre o painel de seu carro como se fosse um objeto – um isqueiro, um copo. Ninguém se chocou por ele fazer isso. Nem ele. Esse mesmo osso é, mais à frente, jogado sobre o fio de um riacho, em volta do qual pastam algumas cabras. E vemos o osso sendo carregado pela água — a morte integrada com os vivos, numa harmonia que aparenta resignada, indiferente.

Claro que não se trata de poetizar a penúria. Possivelmente, viver numa comunidade como a retratada no filme, uma comunidade rural, deve ser uma tarefa repleta de dificuldades. Não se trata de bucolismo burguês, de uma visão de alguém que vem de fora. Se pensar bem, nossas sociedades altamente tecnológicas, repletas de conforto e atalhos, não se furtam da mesma verdade final, de que a vida passa, a morte chega…havendo novamente uma reciclagem e o ressurgimento (reciclagem) da vida. É um ciclo infinito e, aparentemente, sem qualquer propósito intrínseco. A diferença é que temos mais subterfúgios, racionalizações, mediações e, como resultado, distanciamento (até mesmo no sentido de ruptura) da natureza. E, portanto, da morte. Nem nascemos mais em casa; tampouco morremos em casa. Nascemos e morremos em hospitais. Vemos os médicos como gente diferente de nós. Fetichizamos a ciência. Podemos até criticá-la, mas na hora do desespero, na “hora H do dia D”, é a ela que recorremos, como cordeirinhos arrependidos e assustados. Desamparados em busca de milagres.

O filme, ao introduzir a poesia no “deserto do real”, chama a atenção para o privilégio que é estar vivo. Se o ciclo do nascimento-procriação-morte não tem propósito intrínseco, por outro lado só os vivos conseguem contemplar a beleza da natureza. Nesse sentido, um dos melhores momentos do filme para mim foi quando Behzad encontra-se com o médico da vila, que lhe dá uma carona na sua moto (fotos). No diálogo, quando questionado se “o outro mundo” não seria mais bonito (após a morte), o médico, placida e serenamente, diz: Ninguém voltou de lá para nos dizer como é. O que sabemos como um fato é que, ao fecharmos nossos olhos pela última vez, não haverá mais volta para cada um de nós, individualmente: todas as maravilhas e belezas da natureza se apagarão para nós. É isso que “perdemos” ao morrer. A morte, diz o médico, é muito pior que a pior das doenças.

Assim, ao longo de uma conversa de duas pessoas numa moto, a “premissa” do filme se revela em forma de poesia. Espanta pela casualidade e até mesmo humor com que verdades profundas são colocadas. Aliás, são semeadas ao vento. Voam e, quem sabe, podem germinar em algum outro lugar. Entre a vida e a morte, fica a ideia bem capturada por um de nossos ditados: Melhor um pássaro na mão do que dois voando. Na linguagem usada pelo médico, temos:

“Dizem que ela é linda como
uma huri do céu!
Mas eu digo…
que o suco da vinha é melhor.
Prefira o presente a
estas belas promessas.
Mesmo um tambor parece
melodioso à distância
Prefira o presente”

Cena do filme The wind will carry us (1999)

Fragmentos dispersos, 9

Vácuo de sentido. Não me recordo se tenha sido Aristóteles a dizer que a natureza não suporta o vácuo, o nada. Aproveito aqui da ideia. Quando seu trabalho não tem sentido, temos aí um vácuo. E ele precisa ser preenchido. Alguns trabalhos são tão absurdos que não há, afetivamente, nenhuma possibilidade de lhe atribuir sentido. A menos que a pessoa se rebaixe. Ou que ela racionalize. Invente estórias para ela mesma. Mas não creio que isso dure muito. Outra possibilidade, diante do vácuo do sentido, é recorrer a drogas. Não à toa elas estão em contínua ascensão. Drogas que tornam o trabalho possível, suportável; ou drogas que incrementam sua performance para, justamente, continuar a ser dominado pelo frenezi de alguns setores ou ramos profissionais. Agora pense na seguinte situação: um trabalhador que mal consegue ganhar para sustentar sua família é obrigado, em seu trabalho, a subir em torres de alta tensão, sozinho — no máximo, com um colega lá embaixo. Todo dia. Todo o momento lidando com a altura e com a eletricidade. Um corpo pendurado num cabo, frágil como uma pena num redemoínho; suspenso. Você até pode se esforçar para achar sentido (i.e., ressonância afetiva, além do reconhecimento social) nisso. Mas tal esforço não resiste ao passar do tempo. À repetição. E aí ela aparece: a pinguinha. Antes de subir. Estratégia para suportar. Drummond dizia que “todo mundo tem sua cachaça”. É. Por vezes, literalmente.

O que é uma tese. Quem atua no mundo acadêmico precisa sair-se com uma o tempo todo. Uma tese é uma espécie de marcha-a-ré: você pensa em algo inverso ou ao contrário do que se acredita no cotidiano. Por exemplo. Uma pergunta desse tipo foi feita por um psicanalista do trabalho famoso na França e no Brasil (C. Dejours). Em vez de se perguntar por que as pessoas adoecem no trabalho, ele inverteu a lógica: por que as pessoas não adoecem no trabalho (com tanta razão para isso)? Et voilà. De uma pergunta dessa nasce uma nova disciplina de estudos sobre os efeitos do modo como o trabalho é organizado sobre a saúde mental. Considere algumas décadas atrás. Imagine alguém sacando a pergunta: Fumar não estaria associado ao câncer de pulmão? Hoje, é claro, tal pergunta é banal. Mas lá atrás, não. Pelo contrário. Ela criava um corte, uma ruptura no fluxo do conhecimento comum. Com o tempo, nas ciências humanas, em especial no Brasil, passamos a ser mais modestos. Nossas perguntas se voltam para o “como” — por exemplo: como é ser mulher no trabalho etc.? Esse “como” não comporta nada senão uma curiosidade sobre “vivências”. É o trunfo da fenomenologia. Importante, sem dúvida. Afinal, o universal se manifesta no singular. Porém, quando isso entra na engranagem da indústria do saber (i.e., nossas universidades), então eu acho que tal postura traz consigo um enfraquecimento do espírito, uma covardia resignada, ou uma incrível chatice.

Perguntas sem resposta. Creio que tenha sido Lacan quem sugeriu que o sujeito se estrutura em torno de uma pergunta. Uma inquietação que ele endereça ao Outro. Ou algo assim. Então, qual sua pergunta? Ela pode ser inconsciente. Claro. Talvez ela só se revele como vestígio, como metonímia. Ou como angústia, sofrimento, tédio, resignação, ressentimento. Talvez, após você polir muito a prata, você comece a ver o sinal do metal. Por debaixo de tanta camada de oxidação, uma penumbra escondendo o essencial, o valor genúino. Muito do que ouvimos durante um dia é como essa fina camada escura sobre a prata. Toca em você, mas não é bem o toque que você gostaria de sentir. Você percebe que há alguma deturpação ali. Que algo está turvo. Opaco. Você besbilhota sobre frestas e orifícios para tentar enxergar o que realmente está atrás de cada acobertamento. Há quem diga que não há nada atrás de nada. Eu discordo. Achava também que não havia nada, tudo sendo senão interpretações, versões do possível. Não. Há uma pergunta. Disse a meus alunos de pós-graduação estes dias: já pensaram se, num mundo ideal, sua tese fosse exatamente a consciência e a abertura para essa pergunta? Vale para nossa vida singular, mas vale também, muito provavelmente, para qualquer fenômeno científico de “interesse”.

A imperfeição humana

Ultimamente tenho assistido os filmes do diretor Robert Bresson. Dois deles me foram absolutamente impactantes. O primeiro, Au hasard Balthazar. O segundo, sobre o qual falarei algumas coisas aqui, é Mouchette (que é baseado num livro).

Mouchette é uma criança-adolescente que não encontra nenhuma esperança ao seu redor. Sua situação é bem captada pela música pela qual é humilhada a cantar durante uma aula, música que teria sido escrita, em forma de poesia é claro, pelo navegador Cristóvão Colombo: Vous qui n’avez plus d’espoir. Sur l’immensité profonde. Ses yeux s’ouvraient pour le voir. Aqueles sem esperança, lançados na imensão profunda do oceano, moldado por um horizonte que parece não ter fim. Só três dias, pede Colombo à sua desconsolada tripulação. Três dias para que os olhos, se estiverem bem abertos, sejam contemplados com a vista do novo mundo, da terra firme a lhes resgatar do vazio do oceano, o mesmo oceano que se espelha num céu tão profundo e inescrutável quanto ele próprio.

Mas Mouchette não encontra a terra firme.

A jovem é cercada por desgraça. Sua mãe, de quem cuida, está às portas da morte na cama. Seu pequeno irmãozinho, ainda um bebê, depende de seus cuidados – sem fósforo para acender o gás para esquentar o leite, ela tenta remediar esquentando o leite em seu próprio corpo. Enquanto isso, enxuga as lágrimas de uma violação sexual (a ponta do iceberg) de que foi vítima poucos momentos antes. Lágrimas que são enxugadas no pano que serve de fralda para o pequeno bebê em choro de desespero (fome, frio, medo, ou porque estava encharcado em seus próprios dejetos). Seu pai é um alcoólatra e lhe bate. Seu corpo é maltratado: sujo, com roupas sem lavar – entre outras coisas que lhe fazem ser praticamente um outcast onde vive, “cara de rato”, como diziam os meninos.

Quando a mãe morre, a princípio, parece receber alguma ‘atenção’ dos vizinhos (uma vila encrustrada na França profunda, rural, conservadora). Mas a aparente benevolência não resistia diante das reais intenções – para uns, Mouchette era “uma vadia”; para outros, uma imprestável. Não. Não havia qualquer lugar de esperança para Mouchette. As badaladas do sino da capela da vila é um dos únicos sinais de que temos sobre a passagem cruel do tempo. Cada batida do sino, confesso, algo dentro de mim tremia, como um pássaro negro bicando minha carne em uma noite sombria.

Estou sendo vago, propositalmente, na descrição do filme. Para entender o fluxo de emoções que ele desperta, só mesmo assistindo por você mesmo.

Cena final do filme Mouchette (1967)

Ambos Mouchette e Balthazar terminam como “animais sacrificiais” para a própria audiência. Como Pôncios Pilatos, fingimos que não é conosco, mas o diretor nos envolve irremediavelmente na trama em que o mal é destilado em detalhes, magnificado pelo minimalismo dos cenários e de seus personagens. Tanto Mouchette quando Balthazar são as testemunhas do débâcle humano, com a diferença de que, no caso da primeira, ela ainda tenta exercer alguma agência, mesmo que na forma de violência reversa. Mas a violência/revolta de Mouchette é, proporcionalmente, como pétalas de rosa em comparação às balas de canhão de que é alvo.

Cena final de Au hasard Balthazar (1966)

Sinceramente, nem sei mais o que dizer. Qual sentimento seria ‘coerente’ quando você se sente colocado e esmagado entre uma imanência árida, um vale de lágrimas, de lamentações e de manifestação concreta do mal (expresso por ações e, sobretudo, por inações), e a transcendência que só nós, seres vivos (independente de sencientes ou não), somos capazes de contemplar, como uma graça infinita que nos é simplesmente revelada?

Experimentos mentais, 5: a panela

Ele trabalhava fazia algum tempo numa siderúrgica. Era responsável pela limpeza da divisão de alto forno da usina. Era um trabalho extremamente exigente, pois além de conviver em um ambiente com alta temperatura, ainda tinha o barulho, a poluição visual e outros imensos riscos ocupacionais. Tinha de tomar muito cuidado. Já fazia esse tipo de trabalho há quase duas décadas. Portanto, não era mais um novato, nem em idade nem em experiência laboral. Ao longo desse tempo, porém, sua vida havia mudado muito. Não só fora da usina, mas internamente, no seu coração. Ele não sabia explicar muito bem quando, como nem por que começou a sentir um peso enorme dentro de si. Quando começou nesse ramo de atividade, a despeito das agressivas condições de trabalho, ele se sentia leve, ágil, capaz de identificar quaisquer problemas e de se antecipar em sua solução. Não era um empregado absolutamente exemplar, nem brilhante. Mas também não era dos piores. No início, tinha certeza de que, mesmo não sendo reconhecido como gostaria, ele estava fazendo sua parte. Mantinha seu setor o mais limpo e organizado quanto possível. Também no início, tinha um tipo de frio na barriga quando chegava ao trabalho. A siderúrgica, embora fosse um lugar inerentemente hostil, despertava certo temor nele. Não sabia explicar, mas era uma sensação de entrar dentro de um monstro, e de se sentir pequeno em relação a ele. Sentia-se ao mesmo tempo fascinado e amedrontado por esse monstro. Bom, na prática, havia motivos para amedrontar-se. Ao longo de seus anos de trabalho havia testemunhado muitos acidentes. Alguns fatais. Bom, mas isso já faz tempo. Agora, nada disso parecia importar muito mais. Tinha algo mais sério para se preocupar, esse peso interno cada vez maior dentro si. Não entendia a razão desse peso crescente. Não havia mudado nada em sua rotina diária. Mas era óbvio para si mesmo que algo estava muito fora do lugar. Ele era movido pela energia de seus músculos, que por sua vez ele sabia que vinha dos alimentos que, mesmo sem vontade, tinha de comer todo dia. Mas só isso. Quanto ao resto, ele sentia como se não fosse mais senhor de si mesmo. É engraçado, ele pensa. Pois realmente não conseguia identificar nada de extraordinário. Nada tinha ocorrido de diferente com ele. Mesmo assim, o peso foi surgindo como a sombra do fim de um dia – você está deitado na cama, diante da janela, meio acordado, meio adormecido. Num momento está claro, noutro já há uma penumbra. Entre um cochilo e outro, quando você de fato recupera a consciência já está noite. Foi assim com ele. E o peso gera mais peso. Há uma inércia, um momento nesse peso: ele tende a se retroalimentar. Nunca chegou a falar disso para ninguém. Não era casado, não tinha filhos, e era de muito poucos amigos. Tinha um ou outro colega com quem esporadicamente trocava umas palavras. Quando não estava no trabalho, costumava ficar em casa deitado num sofá. Até receber entregadores do supermercado havia se tornado uma tarefa penosa para ele. Pensava o tempo todo nesse peso, mas sem pensar. Quer dizer, ele sabia que estava pensando sobre o peso, mas pensava em termos do peso, por assim dizer. Pensava com o peso. Então, ele não se separava do problema. E o peso aumentando mais e mais. No trabalho, já não conseguia fixar a atenção em algo fora de si. Seu corpo, por sua vez, continuava fazendo o serviço de sempre. No fundo, sabia que isso era um imenso risco para ele naquela ocupação. Afinal, há limites para o automatismo do corpo na execução de uma tarefa. Em certa ocasião, sem falar exatamente desse peso obscuro, comentou com um colega que não se sentia mais tão empolgado sobre o trabalho. Esse colega lhe sugeriu que participasse de uma reunião do sindicato. Acabou indo em uma. Ouviu, mas era como se não estivesse presente. Ele não era uma pessoa de confrontos. Nem de embates, tampouco alguém apaixonado por alguma ideia ou por alguma luta coletiva. Saiu da reunião ainda mais pesado. E foi então que, durante um expediente como muitos outros, sentiu algo tão absurdo, um insight tão cortante, que involuntariamente até deu um recuo para trás no ar. Caiu como um raio sobre ele a certeza de que ele era um bloco de minério! Afinal, ele estava numa siderúrgica, então, a metáfora veio como algo natural. E assim, do nada, tudo começou a fazer sentido. Ele havia se dado conta de que se metamorfoseara num pedaço de ferro gusa. Nunca havia testemunhado em si uma epifania tão avassaladora como essa. Toda a dúvida e os desarranjos de sua vida interior caíram no lugar. Exceto por um detalhe: o ferro gusa deveria estar dentro da panela de gusa, onde então o ferro seria separado das impurezas pelo fogo inescrutável. E foi assim que ele desapareceu na panela, sem deixar o menor traço, sendo logo mais incorporado para sempre numa placa pura de ferro.

Crédito da imagem aqui

Diálogos, 1

Você tem alguma certeza?

Sim. A primeira: não sou mestre de mim mesmo; não estou no controle. A segunda: posso morrer a qualquer momento. E minha última certeza: não falta nada no mundo.

Mas o fato de todos nós morrermos um dia depende de termos certeza? Faria alguma diferença?

No desfecho final, nenhuma diferença, óbvio. Mas faz diferença para mim mesmo. Ter certeza da minha mortalidade. Pois somente quem não ama é que deseja viver. Quem não ama se apega à vida.

Então você está me dizendo que aceitar a morte depende de ser capaz de amar?

Todo mundo pensa que, ao amar alguém ou algo, não vamos jamais querer morrer. Uma filha, por exemplo, te faz se apegar a vida, certo? Uma carreira reconhecida? Uma obra exuberante? Não faz sentido para a maioria das pessoas dizer o inverso. Porém, o amor causa um adensamento imprevisível da existência. Não dá para se apegar mais à existência, pelo menos não em seu sentido corriqueiro. Amar é, pois, morrer. Pelo menos uma parte de você morre. Por isso, pessoas que não amam têm a liberdade mental suficiente para investirem tempo e energia em simplesmente continuarem vivendo. A vida é fácil para elas. Podem ser grandes executivas, empreendedoras, e sobretudo políticas e burocratas.

Então você acha que não falta nada no mundo? Essa é tua outra certeza?

Não, não falta nada. Pelo menos quando consideramos tudo o que é espontâneo no mundo – e não as coisas humanas, necessariamente. Cada detalhe do mundo, não importa onde nem o que, é perfeito em sua própria natureza. Pois pense: todas as obras e manifestações mais sublimes do espírito humano já estavam contidos no mundo. Mas somos disciplinados a pensar na vida humana como falta. Há mesmo uma estética da falta atravessando muitas perspectivas, por exemplo a psicanálise. O ser é definido com relação ao que lhe falta, e pelo que ele se põe em movimento. Cada detalhe de coisas que estão diante da pessoa é comparado e julgado contra um padrão ideal, sempre gerando um hiato de sofrimento e alienação em relação ao presente. Esse tipo de postura criou uma versão diminuída do ser humano, e de quebra ainda ajuda a promover a economia.

Não considera que tudo isso que está dizendo, essas tuas ‘certezas’, possa estar simplesmente na tua cabeça?

Se você abrir e ler todos os livros do mundo, ou se conseguir conversar com todos os sábios ainda vivos, e ao cabo disso tudo vier para mim e disser que encontrou algo que contradiga o que estou te dizendo, ainda assim não mudarei minha opinião. E te digo o motivo: a realidade não é fixa. Ela é uma versão provisória do real. Pois o real propriamente dito será sempre inacessível para nós humanos, por mais que você me mostre meu cérebro iluminando em uma ressonância magnética. Você não vai extrair dali nada de mais real do que as palavras que estou usando para criar minhas certezas.

Você não estaria tomando a realidade pelas tuas palavras, palavras essas pelas quais você expressa essas tuas certezas?

As palavras, especialmente as bem articuladas, são âncoras provisórias em que nos agarramos para não ficarmos totalmente à deriva. Tome tudo de uma pessoa. Se ela ainda tiver uma ou outra palavra para costurar seu disforme caos interno, então ela estará relativamente protegida da escuridão, do fracasso, da perda de tudo e de todos. Palavras são como as folhas secas sobre as quais formigas atravessam um rio. O desafio, porém, é se você realmente acredita nelas. Se não acreditar de verdade nelas, então nem como folhas elas te servirão. Vão se tornar cascas vazias onde você vai se esconder como um covarde armado.

O ovo que chocou

O que é uma pessoa? Esta é uma pergunta que só na aparência é banal. Uma pessoa é, claro, um ser vivo. Um corpo. A materialidade desta última é obviamente inegável e, por si só, é condição necessária, embora não suficiente, para haver uma pessoa. Primeiro, pois esse corpo precisa ser “montado”. Refiro-me a “montar” no sentido de um cavaleiro que monta sobre um cavalo. Há, nesse gesto, o assumir controle sobre o cavalo. Sei que esta metáfora pode ser capciosa, pois de algum modo poderia sugerir que nosso corpo precisa ser dominado (mente dominando o corpo etc.). Mas considere a metáfora de outra forma. Montar é assumir. Como uma modelo numa passarela: ela precisa incorporar, vestir, empossar-se, tomar conta de um personagem do qual seu corpo será um veículo, um signo.

Segundo, o corpo precisa ser colocado em situações, precisa interferir sobre, agir sobre, coexistir com, mas essencialmente pôr-se em contato com, partes do mundo físico e social. Quer dizer, o corpo e por extensão a pessoa é um meio de ação, uma forma de mediação com a realidade. Interessantemente, nosso corpo é um duplo, mediação de um “eu” com relação ao mundo mas também mediação do sujeito, do “eu”, com o “mim” – como em: “Eu me vejo”. Quem é esse eu que vê? Ele vê o me (o mim). Mas o que/quem é esse me/mim? O eu vê o me num espelho, digamos. Nosso corpo é o que gostaríamos de ver? Por que nem sempre conseguimos assumir o corpo que “temos”? Em outras palavras, por que não conseguimos “montar” nosso corpo? Por que o eu estaria em oposição ao me/mim? Enxergamos uma coisa (um objeto real no mundo, nosso corpo) mas vemos outra no lugar. Meu ponto: tais exemplos mostram a duplicidade da experiência da pessoa na sua própria corporiedade. Mas não se limita a ela, obviamente.

Uma pessoa é também uma projeção. Uma projeção de inúmeras possibilidades a serem realizadas. A pessoa é uma potência. E é aqui onde eu gostaria de chegar. Uma pessoa pode ser uma cesta de inúmeros ovos que podem ou não chocar. A trajetória que escolhemos estar neste momento não é nada senão uma possiblidade realizada dentre tantas outras que não o foram (os muitos ovos que não chocaram) mas que ainda estão aí no cesto como potências. E o que ocorre quando o número de ovos não chocados fica tão grande que a pessoa prefere negar-se em vez de empreender em uma direção em particular? Ela deixaria de ser uma pessoa? Ou então quando ela diz para si mesma: “Bom, todos os ovos têm a mesma probabilidade de chocar. Além disso, um ovo é completamente intercambiável por outro. Qualquer um poderia ocorrer. Tanto faz”. E com pensamentos assim ela acaba concluindo que sua trajetória atual é tão aleatória e sem valor relativo que ela bem poderia não ter ocorrido de todo. O mundo de possibilidades torna-se um mundo niilista. Um mundo de indiferença.

Aqui fica uma reflexão. Se você está numa certa trajetória de vida, ela é com certeza um dos ovos que chocaram. Poderia ter ocorrido tudo diferente, incrivelmente diferente? Com certeza, e se examinar a fundo sua trajetória você vai descobrir que por detrás das “grandes decisões” de sua vida houve dezenas de outras pequenas decisões banais e impensadas (ou pensadas com justificativas duvidosas) que coalesceram nessa grande decisão. Você pode viver outras infinitas vidas? Aqui as coisas ficam mais complicadas. Primeiro, pois você talvez não tenha tempo suficiente, independente de sua idade cronológica. Ou energia, inclusive física. Segundo, pois a outra trajetória que viesse a escolher cairia no mesmo problema da anterior: poderia ter sido diferente. De um lado, o excesso de confiança em si como pessoa merece escrutínio. Pessoas assim podem estar escoradas em ideais e desejos de outros, nos quais se baseiam tão intensamente que essas pessoas acabam sendo por eles “montadas” (e não o inverso). Por outro lado, pessoas extremamente inquietas, auto-questionadoras e problematizadoras permanentes de si podem ser como apostadores frustrados: até sabiam que estavam fazendo uma aposta, e uma aposta poderia dar certo ou errado (probabilidades), mas quando de fato perdem (no nosso exemplo, quando materializam uma trajetória concreta), ficam inconformadas.

Uma cena do filme Our Sunhi, do diretor Hang Sang-soo, cujo diálogo entre esse dois personagens inspirou este post, especialmente os próximos parágrafos. Credito da imagem aqui.

Como descobrir quem você é? Pegue sua trajetória atual e vá fundo, cave fundo, vá até o fim, com tudo, com força. Se, nesse processo, você descobrir que algo deu errado, então você saberá quem você é, qual seu limite e o quão verdadeiramente “montado” você está nessa trajetória em particular, ou tão somente lançado nela como uma moeda jogada ao ar, dependente de pura aleatoriedade. Uma pessoa deveria ser mais que uma aleatoriedade. Mais que um mero acaso. Embora a vida seja exatamente isso: uma aleatoriedade que se materializou, deu certo e se firmou como algo que, retrospectivamente, dizemos que valeu a pena. Pois que se registre, só para efeitos de argumentação: se não houver eternidade, onde a pessoa viveria para sempre tal como ela é hoje, então é isso que temos: uma única vida.

Agora pense: diante da última frase acima, de que só temos uma única vida, qual a recomendação padrão ou muito comum? Que devemos nos reinventar sempre. Que a mudança é a regra, a única coisa “permanente”. Aí, ao final da vida, com o intuito de justificar essa ontologia rasa e cacofônica, típica de uma época volátil como a nossa, a pessoa diz que “viveu intensamente, com muitas experiências”. Sabe o que acho? Que falta o oposto: gente que não fique querendo mudar o tempo todo, se reinventando, se “desconstruindo” etc. Gente que vá fundo em algo. Que se radicalize nesse algo, e se descubra verdadeiramente no processo. Não precisamos de infinitos ovos para fazermos uma saborosa e nutritiva omelete.

Feminilidade

Ultimamente, quando possível, tenho tentado assistir a filmografia do diretor sul-coreano Hong Sang-soo. Em algum lugar, vi que ele é chamado de o novo Ozu. Não sei se isso faz sentido, exceto que cheguei até ele por conta dessa associação, já que gosto muito do Ozu.

Até aqui, os filmes que assisti me causaram grande impacto, mas nenhum deles chegou perto de Virgin stripped naked by her bachelors (2000). Possivelmente, isso se deve à atuação da personagem central, em torno da qual a narrativa é estruturada – quer dizer, o filme ocorre da perspectiva da mulher. O mesmo ocorre em outros filmes igualmente brilhantes do diretor, em particular Nobody’s Daughter Haewon (2013), no qual a protagonista se envolve com um homem inseguro, incapaz de sustentar seu desejo.

Cena do filme Virgin stripped naked by her bachelors (2000)

Mas é com Virgin stripped… que gostaria de deixar algumas impressões. Como disse, a atuação de Lee Eun-ju é excepcional, aqui no papel de Soo-jung. Tarde foi quando descobri que ela havia se suicidado aos 24 anos, e isso já faz exatos vinte anos. Muito triste.

Em termos bem resumidos, Soo-jung é uma roteirista para uma TV a cabo local. Ela é muito próxima de um produtor, a cujo amigo, rico e dono de uma galeria de arte, Soo-jung é apresentada. Esse amigo, que no filme se chama Jae-hoon, fica muito atraído pela garota. Tão atraído que expressa seus sentimentos por ela. Ocorre que Soo-jung também nutria alguns sentimentos pelo produtor Young-soo. E então temos um triângulo amoroso contado a partir de um recurso muito usado pelo diretor: a repetição de cenas, gerando perspectivas diferentes para eventos similares.

Soo-jung é uma moça delicada, sensível e madura quando comparada aos homens que a circundam (além dos dois já mencionados, há também seu irmão e um antigo amigo). Existe nela uma profunda feminilidade. Uma estética feminina. Claro que isso depende de interpretação, que por sua vez depende das infinitudes internas de quem assiste. Por exemplo, no momento em que estava na cama com Jae-hoon, este, que era um “mulherengo”, inadvertidamente a chama pelo nome de outra mulher. Como era de se esperar, ela fica pasmada e vai embora. O homem sai deseperado à procura dela, e o vemos perdido entre as ruas cinzas de uma cidade indiferente, desolado e em choque. Porém, na mesma cena ela o reencontra e termina por lhe pegar na mão. Nesse momento, é como se o homem houvesse sido ressuscitado, resgatado de um precipício em que havia caído por sua própria alienação em relação ao amor. Foi a mulher que viu algo nele e lhe deu a chance de uma redenção, o resgatou da paisagem cinzenta e morta.

Os homens no filme, mesmo que não intencionalmente, são protagonistas de violência em relação a ela, como no exemplo acima. Não violência física, mas violência oriunda de indivíduos perdidos em si mesmos. Homens crescem fisicamente, tornam-se fortes (fisicamente), obtêm status etc. mas nada disso, paradoxalmente, os impede de ser inseguros. A insegurança parece residir no coração do homem. Nos filmes de Hong, homens incertos são sempre confrontrados com mulheres resolutas. As mulheres são o futuro do homem (Woman is the future of man), como se lê em outro de seus filmes. A feminilidade aparece serena na atuação de Soo-jung, de bússula e guia num nevoeiro de uma masculinidade indecisa, taciturna e inebriada, pois homens parecem precisar de muita bebida para operarem social e afetivamente.


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