O problema surge quando nos deparamos com um “ponto de não-retorno”, aquele momento em que permanecemos por tanto tempo no caminho de uma escolha passada, baseada em um desejo que talvez também pertença ao passado. Quanto mais avançamos nessa trajetória, mais, em teoria, sentimos que há algo a perder caso optemos por desistir. Por vezes, toda uma vida é construída sobre essa escolha, consolidada até o ponto em que algo essencial dentro de nós se extingue – algo que antes dava sustentação orgânica à nossa existência. Nesse momento, resta apenas a forma, o invólucro de um desejo que já não nos serve, como um casulo abandonado.
É como caminhar por uma estreita ponte de madeira e, de repente, perceber que os degraus terminaram. Sem suporte, começamos a cair, e a sensação é de um precipício infinito, onde só existe a queda. Frente a esse vazio, uma estratégia possível – e paradoxal – é não fazer nada: apenas continuar. O lado positivo de uma trajetória construída é sua própria inércia. É como desligar o motor de um carro no alto de uma colina; a energia potencial acumulada é suficiente para fazê-lo deslizar por bons quilômetros, mesmo sem engatar a marcha. Então, você simplesmente deixa o carro seguir.
É evidente que essa “estratégia” de enfrentamento não é das mais saudáveis. Em algum momento, ela transforma a pessoa por dentro, silenciosa e gradualmente. Imagine esta cena: você é um recipiente vazio. Alguém, ou algo, começa a despejar concreto dentro de você. O processo é lento, iniciando pelos pés. Demora muito, mas, com o tempo, o concreto alcança o coração. E continua a subir. Devagar. Sem que você perceba totalmente, embora consiga sentir de alguma forma, acaba completamente tomado – transformado em pedra. Firme, sólida, absolutamente “certa” de si mesma. Terrivelmente persistente.
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Snow Storm: Steam-Boat off a Harbour’s Mouth, 1842, J. M. W. Turner
Persistir na adversidade. Eis uma verdade cultural quase universal. Se você adiciona a isso uma conotação religiosa, então chega à conclusão de que persistir na adversidade não é algo fortuito, mas, sim, uma provação divina, como ocorre com o personagem bíblico Jó. Deus nos sustenta enquanto atravessamos uma intempérie. Quando era seminarista, lembro-me de ter um santinho no qual uma trilha na areia começava com duas pegadas e terminava com quatro. Nos momentos difíceis, sem perceber, Jesus caminhava ao seu lado. Ou algo assim. Na essência, a ideia era de que não estamos sozinhos ou abandonados quando acreditamos que tudo está perdido.
Tenho plena consciência da força que uma crença como essa imprime em uma alma atribulada. Em versões seculares, a mesma moral é repetida incessantemente, como nos filmes de Hollywood. Acredito que a cultura americana seja o melhor exemplo de uma versão secularizada da história de Jó. Por lá, a subjetividade é tão pressionada a persistir, tão enclausurada em uma ideia espartana de força e coragem — de jamais jogar a toalha — que a única válvula de escape para racionalizar a desistência é a linguagem da patologia mental. Fulano não conseguiu “vencer na vida” (leia-se: persistir, resistir) porque sofria de depressão, crises de ansiedade, problemas de atenção, e assim por diante. Como toda cultura, a americana — e, por extensão, sua projeção no imaginário global via filmes hollywoodianos — é um espartilho tão apertado que se confunde com a própria carne.
Ao homem, como gênero, é legado o triste destino de uma virilidade constantemente posta à prova. Ao menor sinal de intenção de desistir de algo, a acusação logo vem em forma de questionamento do caráter masculino. Às mulheres, como gênero, é atribuída a preferência pelo “macho alfa”, uma aberração de indivíduo completamente doutrinado na cartilha da persistência, do “enduring”, das criativas e infindáveis estratégias de “coping” para continuar na luta, como um gladiador. Não há lugar para homens considerados fracos em uma cultura de pedra como essa — de resto, algo que também se observa em muitas outras culturas ocidentais, especialmente naquelas com uma história marcadamente ascético-religiosa.