O cavalo, até onde sei, é um símbolo de potência. No passado, sua imagem corresponderia, mutatis mutandis, ao que hoje atribuímos a um automóvel: potência nas mãos de alguém. Pela mesma razão, um automóvel é associado à liberdade – a possibilidade de ir para onde seu condutor quiser. Ele está no comando. O jóquei, por sua vez, é o profissional que justamente doma o cavalo, ou melhor, que produz uma espécie de simbiose em que potência e “razão” se combinam para atingir um objetivo: vencer uma disputa. Na filosofia (Platão), houve quem associasse razão e emoção a dois cavalos, cabendo ao sujeito equilibrá-los na “corrida” da existência.

O Jockey Perdido (Le jockey perdu, 1940), de René Magritte. Fonte
Por isso, O Jóquei Perdido evocou em mim, tão logo vi a imagem, a sensação de potência e razão desgovernadas, sem caminho. Uma potência em estado puro, disponível, e uma razão em seu mais alto nível de aperfeiçoamento e técnica, ambas dirigidas a nada, em um universo distópico e surreal. O jóquei já não é capaz de orientar a energia, de fazê-la trabalhar ou convergir para um objetivo útil. Evidentemente, essa interpretação tem um viés iluminista: atribui-se à razão o papel de domar as forças vitais, as paixões, os impulsos – na metáfora freudiana, o Eu manejando permanentemente as pulsões do Id.
Na imagem, porém, o jóquei, mesmo perdido, parece estar em movimento; e, a julgar pela postura do corpo (firme, investido no gesto), ele atua como se estivesse de fato numa competição. Mas ele não está. O restante da composição indica isso. Estaria ele determinado a reencontrar o caminho? Não sabemos. O que a figura nos mostra é um cenário de desolação, indeterminação, suspensão de referências: signos deslocados, como os “troncos” estilizados, criam um ambiente labiríntico que intensifica a perda de orientação. Trata-se de um espaço sem coordenadas, sem horizonte, sem finalidade discernível.
Em um nível mais amplo, toda a situação é enquadrada como uma encenação teatral. Isso parece colocar em xeque o próprio sentido de ter um propósito (o jóquei domando o cavalo) e uma direção. Nesse sentido, o jóquei está perdido dentro de um cenário que já é artificial, arbitrário, uma mise-en-scène. Vale a pena orientar-se, reencontrar o caminho, se tudo não passa de um teatro? Perdido onde? Perdido em relação a quê? Indo para onde, se o próprio “mundo” da imagem é uma representação construída, feita por alguém e para alguém que observa? Em certo sentido, isso pode até ser algo cômico; ou, a depender, trágico.
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Cômico, caso o jóquei, de fato, esteja tentando se achar, ou acredite estar fazendo algo de útil (a determinação de seu corpo e a envergadura do cavalo podem sugerir isso), quando, na verdade, está em um plano fictício, uma cena, um teatro. A imagem permite reinterpretar todas essas pessoas “determinadas” ao nosso redor. O capitalismo é, no fundo, um regime de determinação: tempo é dinheiro, não há espaço para desperdício. A vida deve ser administrada, regulada, orientada por utilidade. Na carreira, o indivíduo mede seu sucesso pelo quanto avança rumo às posições que ele, e as instituições à sua volta, ratificam como melhores ou piores.
É a figura do empreendedor de si: auto-orientado, ambicioso, que cuida de seu corpo (o “cavalo”) para sustentar uma vida produtiva; e que cuida de sua mente para, novamente, garantir produtividade. O preguiçoso, o “perdido”, o blasé, converte-se no anti-herói da modernidade. Pela via do cômico, tudo isso poderia não passar de um Dom Quixote lutando contra moinhos de vento: a morte, a impermanência, a doença, a fragilidade. Um imenso esforço humano para produzir mercadorias que, tão logo surgem, terminam na lata de lixo. Incontáveis recursos, humanos e naturais, mobilizados em nome do progresso, que de fato elevou nossa qualidade de vida, mas ao custo de sofrimentos, desigualdades, exclusões e… poluição.
Trágico, porém, caso admitamos que, embora saibamos que se trata de um teatro, ainda assim precisamos continuar a agir. Negar essa teatralidade pode desaguar no niilismo mais paralisante: tudo é impermanente, tudo é um jogo viciado a favor de alguns poucos afortunados, então: para que lutar? Se a morte é o que esteve antes de nós por bilhões de anos e persistirá por trilhões após nosso desaparecimento individual, que diferença faz agir para um indivíduo singular? A via niilista é perigosa e, em nível subjetivo, pode manifestar-se como depressão, vazio, apatia. O cavalo fica à deriva, e o jóquei sequer precisa fingir que está indo a algum lugar.
Mas há outro desdobramento possível – não o niilismo, mas aquilo que Camus tentou mostrar: a via da indignação. O sujeito, mesmo sabendo que tudo não passa de um artifício, recusa-se a entregar os pontos. Ele resiste. Ele reage. Ele se revolta contra o nada. A subjetividade, nesse registro, nasce justamente dessa recusa, dessa inconformidade. Foi nessa linha que Camus reinterpretou o destino de Sísifo. Contra a intuição comum que o vê como um miserável condenado, Camus o enxerga como alguém que exerce agência ao aceitar sua condição (uma espécie de amor fati sem resignação), persistindo nela. A força não está em escapar do absurdo, mas em enfrentá-lo. Sísifo, afinal, não seria punido caso simplesmente abandonasse a pedra; é justamente o atuar, o insistir, que funda sua dignidade trágica. Outras figuras culturais expressam essa lógica da determinação incessante – talvez nenhuma de modo tão emblemático quanto a Fênix, que encarna a ideia de um renascimento perpétuo, de uma força que se recompõe infinitamente a partir da própria ruína.