Ainda no campo da teatralidade da vida social, destaco a ideia de folie à deux, ou “loucura a dois”. Penso ser possível estender o fenômeno para delírios coletivos. Na essência, a folie à deux captura a situação em que duas pessoas – ou um grupo – encontram-se deslocadas da realidade sem o perceber. E não percebem justamente porque cada uma reforça e confirma a loucura da outra. Se o reconhecimento do outro funciona como espelho para validar quem somos ou o que fazemos, então o simples ato de um par endossar nossa conduta tende a criar a sensação de que realmente correspondemos ao que está sendo validado.
A ruptura dessa loucura a dois ocorre quando um “terceiro” intervém nesse circuito encapsulado, furando a bolha de retroalimentação. Esse terceiro pode assumir formas diversas. Em um casal, por exemplo, muitas vezes o nascimento de um filho exerce esse papel disruptivo: ele insere uma referência externa, desloca a simetria e interrompe a circularidade afetiva.
Mas há um terceiro que, na vida social mais ampla, especialmente quando pensamos em grupos, ocupa esse lugar de maneira estrutural: a dimensão institucional. Em tese, a instituição deveria garantir pontos de contato com um real externo, funcionando como uma voz terceira capaz de impedir a formação de uma redoma autoreferente.
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La Casa de Locos, Goya [1808/12]. Fonte.
Entretanto, paradoxalmente, a própria dimensão institucional pode produzir as condições da loucura a dois que deveria combater. Tomemos uma universidade pública como exemplo. Embora variem os arranjos conforme a área, o fenômeno tende a convergir: ao invés de fomentar diversidade e controvérsia (isto é, anti-bolhas), agentes universitários frequentemente recorrem a dispositivos que reforçam enclausuramentos. Um exemplo são os subgrupos organizados por “afinidades teórico-metodológicas”. Eles participam dos mesmos congressos, partilham jargões, referenciam-se mutuamente, orientam estudantes que logo reproduzem o mesmo circuito, publicam nos mesmos periódicos (muitas vezes criados exatamente para desovar a produção do grupo) e integram associações nacionais que consolidam essa redoma.
Mais intrigante, porém, é quando a instituição cria rituais impessoais, supostamente neutros, que deveriam regular a vida acadêmica, mas que acabam alimentando a mesma circularidade. A ideia de que “pares julgam pares”, um princípio salutar, pode se converter em terreno fértil para a folie à deux, pois os critérios, embora formalmente objetivos, são operacionalizados segundo a mentalidade particular de subgrupos.
Pessoalmente, vejo que a loucura a dois ganha força sobretudo no terreno dos afetos. Elogios cruzados, expressões infladas de reconhecimento, metáforas afetivas e platitudes constituem dispositivos de blindagem: bloqueiam o acesso de terceiros, impedem tensões críticas e produzem uma realidade circular cuja principal evidência é “o que os corpos sentem ali”. Se há corpos sentindo algo, então há validação. Quanto mais corpos, maior a sensação implícita, ou mesmo explícita, de realismo.
Uma nota essencial: é perfeitamente possível criar circularidades não apenas afetivas, mas também baseadas em critérios supostamente objetivos, especialmente no universo universitário. Falarei mais sobre isso abaixo.
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E como romper a circularidade retro-alimentada?
Uma forma de furar o círculo seria restituir o impessoal – não a burocracia, mas um critério universal de avaliação que ainda não existe. A história é repleta de exemplos de sujeitos considerados loucos, excêntricos ou marginais que, somente depois, foram reconhecidos. Romper com os círculos de loucura a dois implica romper com uma segurança ontológica falsa. Implica viver como um pária – alguém que não se encaixa, que recebe poucos elogios, pouca ancoragem afetiva. Mas, para isso é preciso ter algo, uma obra que realmente exceda o círculo. Sem obra, a situação fica mais precária. Não falo de genialidade transcendental, mas de singularidades que produzam efeitos para além dos fenômenos imediatos.
Uma outra estratégia, menos fecunda, seria tornar-se um cínico: um denunciador sistemático da teatralidade, das platitudes, das condecorações mútuas. Ou ainda a indiferença niilista, recusando o jogo por inteiro.
No contexto universitário, o cínico é aquele que se recusa a integrar grupos por afinidades teórico-metodológicas e se abriga na “pluralidade de perspectivas” – ou mesmo na ausência de qualquer base teórica única. Mas, para não naufragar, esses solitários institucionais frequentemente aderem ao produtivismo, como se a validação pelos pares distantes – citações anônimas ao redor do mundo ou similares – pudesse funcionar como antídoto para a validação afetiva que não recebem (ou que deliberadamente recusam) no âmbito local. Ou a chancela de uma agência de fomento corporativista, que cria escalas de produtividade e importância, colocando como que um “selinho” de qualidade nos currículos desses indivíduos. Num gesto paradoxal, o esforço de se distanciar da loucura a dois termina, ele próprio, jogando o cínico produtivista de volta à loucura coletiva que a própria instituição ajudou a instaurar: o produtivismo vazio.
Há ainda aqueles que respondem ao mesmo dilema dobrando a aposta no polo afetivo, só que agora deslocando-o para outra direção: os alunos. Trata-se do professor que decide investir, quase que exclusivamente, na faceta docente para além da relação transacional – ensinar, corrigir, avaliar – e passa a depender profundamente da própria performance em sala e da busca pelo amor dos estudantes. Nesse caso, o reconhecimento assume a forma de “paraninfo”, “patrono”, placas esquecidas em corredores, homenagens que alimentam a sensação de missão cumprida, de contribuição à sociedade, de formar futuros profissionais que levarão adiante a chama do saber. Aqui, a loucura a dois não se circunscreve ao círculo de pares acadêmicos, mas emerge entre professor e audiência estudantil, numa retroalimentação afetiva que também se fecha sobre si mesma.
No limite, tanto uns quanto outros, mas muito mais o cínico produtivista, acabam por aprofundar sua loucura a dois – agora não mais com um indivíduo, mas com o próprio sistema. Afirmam que seu valor reside nos indicadores de impacto, como se a ausência de reconhecimento em subgrupos afetivos pudesse ser compensada por citações maquínicas, que muitas vezes sequer implicam a leitura real do que produziram. É a loucura a dois em escala industrial: uma engrenagem de autovalidação que funciona através de números, métricas e afetos regimentados, todos obedecendo à mesma lógica circular que pretendiam superar.