Diplomatas do vazio

No final dos anos 1950, o sociólogo William H. Whyte publicou The Organization Man. A ideia central do livro é que pessoas inseridas em organizações tendem a priorizar o pensamento grupal em detrimento do pensamento individual. Se pensarmos em comportamento organizacional, o argumento fundamental é que, ao participar da vida organizacional, o indivíduo passa a desenvolver certos padrões de conduta que são, em larga medida, moldados pela cultura da organização, pela interação continuada com outras pessoas ao longo do tempo, pela rotina compartilhada, pelas regras formais e informais, entre outros fatores.

Uma pessoa inserida na organização X terá, nesse sentido, parte de seu comportamento influenciada por características específicas dessa organização. Outra pessoa, na organização Y, apresentará outras particularidades comportamentais, uma vez que o ambiente, o contexto e a cultura da organização Y diferem daqueles da organização X. Evidentemente, existe uma faixa de comunalidade entre essas organizações (X, Y, Z, W…), seja pelo setor econômico em que se inserem, seja pelo fato de todas estarem atravessadas por elementos estruturantes do neocapitalismo contemporâneo: competição permanente, trabalho orientado a resultados, pressão por desempenho, risco constante de perda do emprego, entre outros.

Ainda assim, tendemos a minimizar a influência desses grupos institucionalizados sobre o nosso comportamento, sustentando (não sem certo grau de ilusão ou autoengano) a crença de que estamos plenamente no controle de nossas ações. Whyte criticou justamente aquilo que chamou de comportamento de manada, no qual a identidade pessoal é suplantada, muitas vezes de modo consentido, pela identidade social. Nesse registro, a pergunta “Onde você trabalha?” passa a definir mais profundamente um indivíduo do que questões como “No que você acredita?”.

Eu expandiria a noção de homem-organização não apenas para compreender comportamentos compartilhados, mas também patologias compartilhadas. Trata-se de um movimento já explorado por Christophe Dejours, no campo da psicodinâmica do trabalho, ao analisar o que ele denomina estratégias defensivas coletivas: formas de funcionamento psíquico e relacional que um coletivo desenvolve para lidar com as exigências, sofrimentos e contradições de um determinado métier. Desenvolverei melhor este ponto mais adiante.

Tomemos, como exemplo, o ambiente universitário: como qualquer outro ambiente organizacional (afinal, uma instituição de ensino também é uma organização – não apenas por possuir CNPJ, mas porque envolve divisão do trabalho, metas a serem alcançadas e uma lógica de gestão cada vez mais próxima da gestão privada), este favorece a emergência do que chamarei aqui de “espécies exóticas”. Há uma diversidade dessas espécies; para efeitos de reflexão preliminar, contudo, limitarei a análise a apenas uma delas.

Refiro-me à figura do “diplomata do vazio”. Muitos rituais universitários são essencialmente performáticos. Tomemos como exemplo uma banca de qualificação ou de defesa de dissertação ou tese. O objetivo formal é avaliar o trabalho escrito de um estudante. No entanto, se aplicássemos critérios universais e abstratos de rigor intelectual, grande parte dos pareceres poderia assumir um tom bastante crítico. Isso porque há uma relativa homogeneidade na qualidade desses trabalhos – homogeneidade que raramente aponta para rupturas teóricas, inovação substantiva do conhecimento ou mesmo sofisticação de linguagem e clareza estilística (aliás, o mesmo poderia ser tranquilamente dito do trabalho de muitos professores também!). Pelo contrário, muitos textos são medianos e, não raro, aquém disso.

Ainda assim, nesses contextos, uma crítica contundente tende a ser socialmente inapropriada. Em nome do estímulo ao desenvolvimento intelectual do aluno e, muitas vezes, da preservação do próprio ritual, o professor costuma tecer elogios e apresentar “melhorias”, cuidadosamente formuladas como sugestões. Não raramente, faz questão de enfatizar que aquilo que está dizendo “não deve ser entendido como crítica”. O resultado é uma diplomacia discursiva que preserva as formas, mas esvazia o conteúdo crítico: uma negociação simbólica permanente entre o que se pensa, o que se diz e o que efetivamente se pode dizer naquele espaço.

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A figura do “diplomata do vazio” não deve ser lida apenas como um tipo comportamental ou moral, mas como um sintoma. Mais especificamente, como a expressão de uma forma particular de sofrimento psíquico produzida pela organização do trabalho universitário contemporâneo. Não se trata de patologia individual, tampouco de traço de personalidade, mas de um efeito subjetivo recorrente de um certo modo de funcionamento institucional.

Essa leitura encontra um antecedente importante nos trabalhos de Louis Le Guillant, um dos pioneiros da psicopatologia do trabalho. Ao estudar determinadas categorias profissionais, Le Guillant mostrou que o sofrimento psíquico pode ser diretamente produzido pelas condições e pela organização do trabalho. A analogia ajuda a pensar o diplomata do vazio. Qual é o traço psicopatológico que ele deixa como rastro? Minha hipótese é que ele produz algo próximo de traços depressivos. Não no sentido clínico estrito, mas como um empobrecimento progressivo da experiência de sentido associada ao trabalho.

O diplomata do vazio opera em um regime permanente de dissociação. Ele pensa mais do que pode dizer; avalia mais do que pode expressar; percebe mais do que pode sustentar publicamente. Para manter-se funcional no sistema, aprende a modular sua fala, a neutralizar a crítica, a administrar expectativas. Esse exercício constante de contenção tende a manter o status quo, mas às custas de um potencial esvaziamento subjetivo.

O núcleo do sofrimento parece estar, ao menos em parte, na fissura entre o ideal e o real. Muitos ingressam na universidade movidos por uma imagem – ainda que idealizada – de um espaço dedicado ao pensamento crítico, à criação intelectual, à ousadia conceitual e à autonomia do saber. Quando a experiência cotidiana se organiza em torno de rituais performáticos, validações recíprocas e produtividade formal, essa imagem não se desfaz abruptamente; ela se torna um ponto de comparação silencioso, permanente. É dessa comparação que emerge o desgaste.

O efeito subjetivo não é, em geral, um “colapso” clássico, mas um estado difuso de desânimo produtivo, cinismo leve, perda de entusiasmo, redução do investimento libidinal no trabalho. O sujeito continua funcionando, produzindo, participando – mas com menor vitalidade psíquica e com uma dissonância crescendo dentro dele. O trabalho segue sendo feito (mesmo bem-feito), porém já não alimenta integralmente a identidade; ao contrário, pode passar a drená-la. É nesse sentido que o diplomata do vazio pode ser lido como portador de uma psicopatologia do sentido: o trabalho deixa de operar como fonte de significação e passa a ser vivido como um circuito fechado de reprodução institucional.

À maneira de Le Guillant, não se trata de perguntar “o que há de errado com esse sujeito?”, mas “o que há na organização do trabalho que produz, de modo recorrente, esse tipo de adaptação subjetiva?”. O diplomata do vazio denuncia, assim, não uma falha individual, mas uma forma de adoecimento discreto, socialmente aceitável e, justamente por isso, amplamente disseminada. Um adoecimento que não paralisa, mas esvazia, primeiro, aos poucos, e então cronicamente; que não destroi totalmente, mas apaga lentamente a experiência de sentido do trabalho intelectual.


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