O abismo e o sublime

Ultimamente tenho assistido os filmes do diretor Robert Bresson. Dois deles me foram absolutamente impactantes. O primeiro, Au hasard Balthazar. O segundo, sobre o qual falarei algumas coisas aqui, é Mouchette (que é baseado num livro).

Mouchette é uma criança-adolescente que não encontra esperança ao seu redor. Sua situação é encapsulada de forma simbólica pela música que é forçada a cantar durante uma aula, uma composição atribuída, poeticamente, a Cristóvão Colombo: Vous qui n’avez plus d’espoir. Sur l’immensité profonde. Ses yeux s’ouvraient pour le voir.

Aqueles sem esperança, lançados na imensidão profunda do oceano, moldados por um horizonte infinito. Colombo suplica à sua tripulação desolada: apenas três dias. Três dias para que, com olhos bem abertos, possam contemplar a promessa de um novo mundo, de uma terra firme que os resgataria do vazio do oceano — o mesmo oceano que reflete um céu tão profundo e inescrutável quanto ele próprio.

Mas Mouchette nunca encontra terra firme.

A jovem é cercada pela desgraça. Sua mãe, à beira da morte, jaz na cama sob seus cuidados. Seu irmãozinho, ainda um bebê, depende completamente dela. Sem fósforos para acender o fogão e aquecer o leite, Mouchette improvisa, tentando aquecê-lo com o próprio corpo. Enquanto isso, enxuga as lágrimas de uma violência sexual recente (apenas a ponta do iceberg de sua miséria). Lágrimas que ela seca com o mesmo pano que serve de fralda para o bebê, este em prantos — de fome, frio, medo, ou simplesmente por estar encharcado de seus próprios dejetos.

Seu pai, alcoólatra, a agride. Seu corpo carrega as marcas do descaso: sujo, vestido com roupas desgastadas e sem lavar, ela é praticamente uma pária em sua comunidade. “Cara de rato”, dizem os meninos.

Quando sua mãe morre, Mouchette, a princípio, parece receber alguma atenção dos vizinhos daquela vila rural, conservadora, situada na França profunda. Mas a aparência de benevolência logo se desfaz, revelando as intenções reais. Para uns, Mouchette não passava de “uma vadia”; para outros, era uma imprestável. Não havia lugar para esperança em sua vida.

As badaladas do sino da capela, marcando a passagem cruel do tempo, são um dos poucos sons que permeiam sua jornada. Cada batida do sino, confesso, reverberava como um pássaro negro bicando minha carne em uma noite sombria.

Estou sendo vago, propositalmente, na descrição do filme. Para captar o fluxo de emoções que ele evoca, só mesmo assistindo por você mesmo.

Cena final do filme Mouchette (1967)

Tanto Mouchette quanto Balthazar se configuram como “animais sacrificiais” perante o público. Como modernos Pôncios Pilatos, fingimos que não é conosco, mas o diretor nos envolve irremediavelmente em uma trama onde o mal é destilado em detalhes — sua força ampliada pelo minimalismo dos cenários e pela crueza dos personagens.

Ambos protagonizam uma espécie de testemunho do colapso humano. Contudo, enquanto Balthazar permanece passivo, aceitando o peso de sua condição, Mouchette ainda tenta exercer algum tipo de agência, mesmo que limitada e dolorosamente expressa na forma de uma violência reversa.

Essa tentativa de reação, porém, é tragicamente desproporcional. A revolta de Mouchette, em comparação às forças esmagadoras que a cercam, é como pétalas de rosa diante das balas de canhão que a atingem incessantemente.

Cena final de Au hasard Balthazar (1966)

O sentimento mais coerente, se é que podemos usar essa palavra em algo tão profundamente contraditório, talvez seja a perplexidade — uma espécie de reverência ambivalente diante da coexistência do abismo e do sublime. Sentir-se esmagado entre a aridez da imanência, com suas lágrimas e crueldades, e a vastidão da transcendência, que só um olhar vivo pode alcançar, é habitar um paradoxo essencial.

É a tensão entre a finitude e o infinito que nos define como humanos. Podemos ser consumidos pela desesperança ao encarar a imanência brutal do mal — tanto na ação quanto na omissão — ou, paradoxalmente, nos maravilharmos com a revelação de algo maior, algo que insiste em surgir mesmo na escuridão mais densa.

Talvez o sentimento seja o da angústia sagrada, uma dor que não quer fugir, mas que também não se resigna. É o reconhecimento da graça e da tragédia coexistindo, como se o mesmo gesto que cria pudesse, ao mesmo tempo, destruir. Afinal, viver é ser lançado nesse entrelugar — onde contemplamos o belo e somos feridos pelo feio, onde buscamos sentido no vazio.

A coerência aqui, se houver alguma, talvez esteja em acolher o desconforto como parte do mistério, aceitando que não há resposta simples para a dualidade que nos atravessa. Em última instância, só o ato de perguntar já nos faz dignos dessa transcendência que somos capazes de entrever.


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