O eterno e o efêmero

Na vida humana há um entrelçamento fantástico entre o eterno e o efêmero. Entre a vida cotidiana, com suas banalidades, e a vida longa, a vida plena, onde as grandes decisões e os grandes acontecimentos se dão.

A vida cotidiana, banal, é a vida da ida ao supermercado, da troca de uma lâmpada queimada; a vida eterna, sem conotações religiosas (embora pudesse também haver!), é a vida que imaginamos para nós no futuro, nossos sonhos, o nascimento de grandes projetos, incluindo filhos, em suma, a vida eterna abarca o campo do sentido (na acepção de propósito [por quê] e direção [para onde]).

Tenho a sensação de que, para cada esfera de nossa vida, há um binômio, um par, um duplo, uma simbiose entre o efêmero e o eterno, a vida se dando entre a leveza e despretensiosidade de uma pluma e a seriedade, a dramaticidade, de um evento vital decisivo (o nascimento, a morte, a doença, um casamento, uma separação, um acidente, ou meramente uma inspiração, um desprender-se momentâneo em direção ao sublime – seja ele religioso ou não).

Por exemplo, na vida profissional. Ora, você deve, seja qual for seu campo de atuação (tomo sempre o meu próprio como referência, pois é nele que está vinculada toda minha experiência de vida), viver no interjogo de um duplo: de um lado, você tem de participar de reuniões, sentado em cadeiras desconfortáveis, em salas deprimentes (verdadeiros não-lugares), com pessoas com certo desânimo de ali estar ouvindo sobre critérios e normas de produtividade do seu Programa de Pós-graduação. De outro, você tem o conhecimento, a amplitude que ele supostamente lhe dá, a super-visão que ele te oferece, o gosto e o sabor elevado de grandes ideias, grandes feitos, grandes mudanças promovidas no cotidiano, seu e de outros – e, claro, “a fama” (palavra pouco usada no metiê acadêmico… talvez seja mais polido falar de “reconhecimento”).

Outro exemplo: nosso próprio corpo. Mal nos damos conta, mas a cada dia a vida vai jogando a duplicidade de sua essência, banal e eterna, de modo irreversível. Nosso corpo, aliás, é a prova viva, a materialização definitiva, de uma fusão de milhares de anos, pela qual somos, simultaneamente, nulidades e talvez uma das espécies mais brilhantes deste planeta – independente de você pensar que isso é um tipo de “especismo” (tendência de julgar uma espécie superior à outra, no caso, a humana). Deságua em nosso corpo as forças profundas e irrefreáveis da ontogênese e da filogênese, a sensação da singularidade (e sua manifestação objetiva) com o atravessamento anônimo, cego, despótico e indiferente da “vida genérica” da espécie.

Nossa vida, nosso corpo, é a manifestação do enlace entre o eterno e o efêmero.

Basicamente, há três modos de o eterno se colocar no nível da vida-corpo: primeiro, como disse, pelo próprio substrato da espécie (nosso DNA – já pensou o que “ele” teve de passar para chegar a esse estágio de programação e execução?); segundo, pelas nossas obras, e aqui penso em amplos conjuntos de atividades humanas, da arte à arquitetura, passando pela literatura, pela ciência, mesmo pelas ideias religiosas transmitidas de geração a geração; em terceiro lugar, a eternidade se manifesta em um filho, réplica mitológica do “À imagem e semelhança de…” (Deus, do pai, da mãe, em suma, daquela sepa específica pela qual se diferenciaram as diversas “linhagens” humanas: a família). Para a grande maioria dos humanos, ter um filho é o modo mais visceral, mais concreto, ao mesmo tempo mais metafísico, de lidar com o efêmero e o eterno, com a sensação de que se é absolutamente essencial (para criar o filho e no seu amor, depois de grande), e, ao mesmo tempo, radicalmente dispensável – e, mesmo quando se sabendo dispensável, narcisicamente feliz por ter “contribuído e deixado sua parte”. Um filho, lógico, jamais suplantará seu pai e sua mãe, nesse sentido mais profundamente “ontológico”.

Há outras formas de vivenciar a eternidade, embora essas possam se dar como engodo. Por exemplo, o próprio consumo é uma forma de viver o eterno e o efêmero, com este último se passando, na consciência do sujeito, pelo primeiro (isto é, o efêmero do consumo sendo interpretado como eterno). Num comercial de carro, você é, como consumidor, levado a “viajar” em ideias de liberdade, de perfeição, de potência, de força, de design, de beleza… mas, em dois ou três anos, você se vê com um produto que já precisa ser trocado, tamanha a “efemeridade” com que suas peças e seu conjunto é feito. A própria propaganda, aliás, lhe dará novamente o insumo para julgar que seu atual carro está, na verdade, ultrapassado, que precisa ser trocado – você vive, nesse momento, a consciência (falsa, mas profundamente conectada com as sensações e às ideias que até parece verdade!) do efêmero, mas não se atém a isso, não se delonga nessa sensação, pois ela é logo engolfada por um novo carro, pelo “cheirinho” de novo…

A arte soube captar a relação entre o eterno e o efêmero. A arte, inclusive, já foi deveras criticada por supostamente ter, em várias de suas correntes, abandonado a miragem do eterno e ter se voltado, perigosa e arriscadamente, para o efêmero (o que dizer, digamos, da chamada “art pop”?). Mas há muitos movimentos que sugerem o inverso na arte, e isso, penso, praticamente desde seu nascimento. A arte eterniza o efêmero. A pintura de uma mera paisagem, ou de uma folha, o minimalismo obsessivo de certos pintores ou ainda escritores, institucionaliza a passagem do efêmero, da plumagem da vida cotidiana, digamos assim, para o eterno, para uma “forma ideal” – para, faceiramente, citar uma conhecida colocação de Platão.

Por fim, podemos optar por viver no efêmero. Podemos optar por, digamos, viver “em festa”, em celebração. Podemos abrir mão da busca pelo eterno, pela inscrição de nosso nome num grande e relativamente estável gênero (profissional, cultural, etc.). Podemos, simplesmente, “deixar rolar”, deixar ser. Claro que não conseguiremos fazer isso de modo profundo, a menos que, de fato, façamos nossa vida algo “insustentavelmente leve”. Digo que talvez não possamos, pois, como disse no início, sempre estaremos no interior de um enlace, de um duplo. Até podemos correr para a primeira igreja da esquina, ou então nos voltarmos para nossa própria espiritualidade; podemos, sim, podemos. Ali, numa simples casa-igreja (ou mesmo num suntuoso templo), teremos contato, de modo imediato e quase “pop”, à imensa fragilidade e, paradoxalmente, à insuperável “consistência” de nossa vida como espécie. Se a pessoa não se deixar alienar (pois, acredite, o mero pensamento da finitude e da fragilidade huamana serve para nos tornar susceptíveis e imbecis), ela terá ali um momento de contemplação do sublime.

Mas contemplar o sublime, muitas vezes, não é suficiente para fazer você voltar à realidade, ao cotidiano, a seu movimento miúdo, a sua “corriqueiralidade”. Você tem de ser forte para, digamos, vislumbrar o sublime no âmago, no interior mesmo, do cotidiano. Só um exemplo para terminar. Imagine o trabalho, o emprego: ambos poderiam ser muito mais do que eles efetivamente são. Muitas vezes, a pessoa passa horas, dias, semanas, anos, décadas… a vida toda, fazendo a mesma coisa (ou coisas diferentes, não importa…). Se você parar para pensar, por mais que lhe digam que seu trabalho é “profundamente cheio de sentido”, ele é efêmero: o melhor presidente de empresa será, logo mais, substituído; a empresa mais sólida e orgulhosa de sua marca pode (e, provavelmente, será) vendida, mudada de nome, dividida, fragmentada, tratada como um pedacinho de ações numa bolsa de valores qualquer. Mas ele também poderia ser sublime, não? Como? É impossível responder a isto se pensarmos como indivíduos, como seres singulares, “especiais”, diferenciados; só responderemos a esta questão se, paradoxalmente, esquecermos de quem somos, se nos abrirmos para uma anônima e inexplicável impessoalidade. Talvez seja isso. Talvez, para encerrar, o sublime seja exatamente isso: a impessoalidade, o anonimato, a insignificância ao nível do indivíduo com nome X ou Y, identidade A ou Z.

Como pode ser potente, o anonimato.

Improdutivismo acadêmico

Faz tempo que tenho evitado entrar na discussão sobre o produtivismo exacerbado que vivemos hoje na ciência brasileira (mundial, claro), mais particularmente nas ciências humanas, e na psicologia – onde me insiro.

A tese, por mais que haja variações, é de que nos preocupamos muito mais com a quantidade de artigos em nosso currículo do que com a qualidade, o conteúdo. A resposta do “sistema” não demorou a aparecer, e temos hoje uma “métrica” que avalia também (quantitativamente, diga-se de passagem) a “qualidade”.

Mas os argumentos vão ainda mais longe. Graças ao produtivismo, diz-se, estamos sacrificando o ensino, a extensão. Estamos “fatiando” pesquisas que ganhariam em complexidade se articuladas na sua totalidade, e tudo para produzir mais, tirar mais “leite de pedra”, como se diz popularmente. Estamos (professores-pesquisadores) adoecendo. Estamos criando um circuito psicossocial tóxico: concorrência por recursos, por bolsas, por status/prestígio, o que muitas vezes culmina até mesmo em atitudes ilícitas, como plágio, auto-plágio e assim por diante…O produtivismo leva ainda culpa por matar a inovação – se, por exemplo, cruzarmos número de artigos publicados e patentes registradas, a distância é lunar, para não dizer do amontoado de lixo virtual que vamos produzindo agora que não se precisa mais derrubar árvores para fazer o papel em que se materializaria o famigerado “paper”…

No fundo, me pergunto: a quem interessa o tal produtivismo? Mas ocorreu-me que um modo talvez mais criativo de pensar seja perguntando o inverso: a quem interessa o improdutivismo, se é que, de fato, uma coisa é o inverso da outra?

1. Não nego que talvez os que critiquem com tanta veemência o atual sistema de produção acadêmica sejam seres com uma visão profunda das coisas, do conhecimento, alguém que enxerga para além da burocracia weberiana do mundo acadêmico – não seria, aliás, por isso que se alastrou certa tendência a usar ganhadores de Prêmio Nobel para criticar o sistema de produção acadêmica atual? (Ora, se eles, que são tão iluminados, dizem que não seriam “nada” pelas métricas vigentes, então algo deve realmente estar errado com o produtivismo…);

2. Mas também não podemos deixar de conjecturar que o sujeito “improdutivo”, e que critica o “produtivo” (nessa dicotomia aqui usada apenas para efeito didático), talvez tenha uma concepção mais rasa do conhecimento do que pensamos. Fico me questionando: em qual momento da história não havia algum tipo de pressão para que as pessoas provassem a que vieram no trabalho? Lembro-me aqui da tese de A classe ociosa, de Thorstein Veblen. Acadêmicos alegam que precisam de tempo e condições para pensar. Concordo. Mas, assim como o produtivismo debanda para o insano, esse tipo de visão sobre o “improdutivismo” também não poderia nos levar a uma situação inversa, em que produzimos apenas e quando isso nos bate nas ventas, se é que isso acontece? Pois pode haver um professor improdutivo, que não prepara aulas, que repete as mesmas coisas sempre, que simplesmente vai na universidade (se ela for pública) para “dar carga horária mínima” e pegar o resto do tempo para cultivar bonsais em casa ou então ler seus livros, suas poesias ou o que quer que deseje. Pode haver extremos dos dois lados, não?

>> Adendo 1: certas pessoas acham que a “boa produção” é aquele livro escrito após 20 anos debruçado sobre os papéis, e que, quando lançado, revoluciona o mundo. Não há como negar certo viés “aristrocrático” na crítica ao produtivismo, pois qualquer um, desde que tenha as condições mínimas, pode publicar um artigo;

>> Adendo 2: Muitos dos que criticam o produtivismo não revelam, mas eles falam de algum lugar. Por exemplo, alguns falam do lugar de quem olha para isso tudo e diz, de sua “superioridade”: bando de imbecis. Em geral, usam como argumento, explícito ou (na maioria das vezes, implícito), que os clássicos viam muito além do pontinho que representa um artigo, como se este artigo não fosse mais do que poeira cósmica. É a crítica feita da posiçao da arrogância.

3. Acho que existe uma moral no improdutivismo (um tipo de ethos). Num sentido, o improdutivismo, como na antiga ideia de O direito à preguiça, de Paul Lafargue, nos lembra que o trabalho não é tudo. Que o trabalho não é uma atividade que se restrinja ou se plasme, pura e simplesmente, à métrica da produção (quantas peças, quantos botões produzidos, quantos carros vendidos, quantos artigos aceitos para publicação, etc.). Ou então que o trabalho pode ser muito mais do que, neste exemplo, o produto “artigo”. Seja como for, não há trabalho sem um produto, sem algo gerado, uma obra, um serviço, qualquer coisa. O ciclo do trabalho não se fecha se inexistir alguma “produtividade” (no sentido amplo de um sujeito que aje sobre o mundo e o transforma);

>>Adendo 3: Isso significa que, muitas vezes, a crítica ao produtivismo confunde coisas absolutamente diferentes: a produção do conhecimento com sua forma de divulgação. Acho lamentável que muitos transmitam a ideia de que precisamos “produzir artigos” (publish or perish) como se isso fosse a forma par excellence de produzir conhecimento (ou que o fato de “está publicado = conhecimento”). Porém, divulgar críticas ao produtivismo, do jeito que muitas são feitas hoje, leva nossos alunos a desenvolver um trauma sobre a vida acadêmica, a ver com desgosto e antipatia a arte de produzir um artigo – um artigo pode ser bom, pode ser ótimo, pode ser muito inovador, e pode, sim, produzir conhecimento…

Para não me alongar mais (isto é um post, não um ensaio!), quero dizer o que penso sobre tudo isso:

1) Se o produtivismo está nos levando à imbecilização, o improdutivismo implício nas críticas geralmente feitas deveria ser, a meu ver, explicitado, numa relação de gente adulta: de que tipo deveria, então, ser a vida acadêmica? Deveríamos ser mais improdutivos (no sentido já aludido, de ócio, de direito à preguiça, de direito a fazer as coisas do nosso jeito, no nosso tempo)? O que entendemos por “improdutivo”?

2) A improdutividade significa, para além de tudo o que eu disse acima, variabilidade. Tanto é assim que podemos facilmente dizer quem é produtivo (pela métrica), mas definir alguém “improdutivo” é mais difuso, por mais que você pense que não, que seja fácil. Pois uma pessoa pode ser improdutiva para uma coisa, mas muito produtiva para outra;

3) Repetindo: produzir muito, academicamente, não é privilégio de nossa época. Pegue grandes tratados de filosofia, por exemplo, e você não vai encontrar ali poucas páginas. O leitor pode argumentar que, digamos, 3 mil páginas escritas por Espinoza são muito mais duráveis historicamente do que 100 artigos Qualis A1. Aí temos um critério de valor. Mas não há como negar que o trabalho acadêmico gera sofrimento, gera angústia, gera dilemas sobre a relação com o saber, e não há saber sem que este seja passado, materializado, objetivado num “produto” (pode ser um artigo, um livro, um aluno formado, etc. etc.);

4) A questão-chave para mim é a seguinte: se há a “liberdade individual”, se uma pessoa não pode ser impedida de NÃO publicar, se há, como diria Adam Smith, uma mão cega a guiar nosso egoísmo (ação moral), o ponto é: quais as consequências para o coletivo de uma série (homogênea/convergente) de ações individuais (no caso, tudo mundo correndo e se atropelando para publicar nos mesmos lugares, das mesmas formas, com os mesmos objetivos)? Quais “distorções” geram os comportamentos individuais não limitados (pois, de fato, não estamos numa ditadura)? E o inverso: que consequências surgem se deixarmos as pessoas em sua própria dinâmica, no seu próprio ritmo, na sua própria concepção sobre o que seja o mundo acadêmico e aquilo que ela deve dar em troca? No fundo, a velha luta entre o prescrito e o real…

Prefiro ouvir a falar (#38)

Mais uma vez, saindo do estilo de minhas indicações (majoritariamente, dos anos 80s). Mas vale a pena a interpretação. De onde tirei? Cena final de Defiance (s1e5).

Dia 23

Gosto de muitas coisas no mês de junho, em especial no Nordeste brasileiro, onde vivo no momento. A começar pelo fato de que é nesse mês, precisamente dia 23, hoje, que faço aniversário. Fazer aniversário é sempre algo magnífico. Já ao acordar você se sente agraciado. Dia desses uma aluna, em uma aula sobre a visão do cristianismo/protestantismo sobre o trabalho (primeiro, Santo Agostinho, depois, na Refoma, com Lutero e Calvino), lembrou-nos sobre a “teoria” da Graça. Para começo de conversa, não merecemos nada; Deus nos dá numa espécie de “voto de confiança”. Gosto dessa idéia. Gosto profundamente da ideia de que somos absolutamente nada, como seres humanos, apenas salvos pela Graça e recuperados pela Fé. Não sou mais religioso (já fui seminarista); mas isso ainda me afeta. Então, no dia de nosso aniversário, somos confrontados com esse fato metafísico: somos uma nulidade viva, podendo, no momento ao menos, desfrutar (não há palavra melhor!) a vida em sua simples ocorrência (não precisa de nada: festa, bebida, simbólico: é um fato que se impõe no silêncio mais absoluto: a vida).

Depois, há algo que gosto tanto quanto: vésperas do feriado (no Nordeste) de S. João. As maravilhosas festas juninas e, mais especialmente ainda, as fogueiras de S. João. Se você já esteve aqui no Nordeste nesse período, vai perceber. O cheiro de pinho queimado é simplesmente… indescritível. Não sei explicar ao certo de onde vem essa minha fascinação. E o cenário hoje é impecável, de meu ponto de vista: chuva e um cheiro de fumaça no ar – fraco, infelizmente, mas perceptível. O suficiente para me deixar extasiado. O cheiro me lembra algo de colonial, de rural, de campestre. Talvez tenha a ver com minha infância (sempre!), pois nasci e fui criado, até os 11 anos, no campo. O cheiro de madeira queimada, sob a noite disforme da cidade, me lembra de onde eu vim, de minha origem, por assim dizer. O campo é, para mim, sinônimo de retorno, de religação com algo absolutamente superior a mim. O campo é o retorno à natureza, o retorno ao barro de que sou feito. Para mim, o feriado de S. João é a coisa mais sublime, aquele momento esperado do ano. Mesmo que eu não vá (e não vou) às festas típicas aqui da região (bem diferentes das festas juninas do interior de SP, em geral, nas paróquias….que saudades!), eu vivo plenamente o “espírito da coisa”.

O cheiro das fogueiras entrando casa a dentro… sinto-me como se tivesse voltado a ser criança, quando o mundo era, paradoxalmente, pantanosamente complicado, opaco, um tijolo caindo na minha cabeça, mas repleto de possibilidades. Aliás, acho que só percebemos as possibilidades quando avançamos na vida, quando já optamos por muitas coisas, deixando, consequentemente, muitas outras para trás. O cheiro das fogueiras me lembra de certo ponto de centramento que perdi em alguma curva monótona da vida.

A madeira, a chuva, o fogo, a destruição ardente. O fogo é fantástico: ele transforma, ele engole, ele é uma força entrópica que nasce e morre em si mesma. Do fogo, de sua provação, nasce algum tipo de “virtude”. A destruição pelo fogo é, exceto nos casos lamentáveis de trajédias, sublime: o fogo nos mostra (junto a muitas outras ‘oportunidades’) que tudo é volátil, destrutível, provisório, leve, supérfluo. Por que o fogo é prova de virtude? Por que quem passa por ele alcança algum tipo de graça? Por que fênix ressuscita das cinzas? Renasce do fogo? O fogo é um portal, um meio de a energia sair de um estado para outro. O fogo é movimento. Transformação.

A verdade é que, dia 23, meu aniversário, às vésperas do dia de S. João, com as fogueiras a queimar, a chuva a cair, a sensação é de … felicidade.

A vida é democrática?

Pois uma coisa é você dizer que alguém morreu porque tinha de acontecer, porque não temos controle sobre a natureza, e porque, no fundo, somos seres frágeis e a ciência (a medicina, neste caso) chegou até um ponto fantástico de desenvolvimento, mas jamais vai conseguir impedir a morte. De gente e de bichos (no caso dos bichos, como já falei aqui, a situação é ainda mais esdrúxula).

Outra coisa é alguém morrer, ou um bicho, porque não houve atenção. Erro humano? Uma possibilidade. Limite tecnológico? Outra. Mas as coisas não param por aí.

Em certos lugares, morre-se mais que em outros. Se houvesse alguma estatística refinada (na verdade, deve haver), com certeza os dados mostrariam isso. Causalmente, devem haver muitos fatores: humanos, tecnológicos e, claro, fatores relacionados “à coisa em si” que é, em muitos sentidos, o corpo vivo.

Mas seria a vida democrática? Quero dizer, Deus, quando criou este mundo, distribuiu a morte equitativamente? Ora, dizer que, ao final, todos vão morrer, ricos, pobres, brancos, negros, asiáticos e brasileiros, enfim, tentar, a partir da morte, criar uma espécie de crivo metafísico para aliviar as coisas, é um absurdo ético.

Pois a vida não é democrática, e, apesar de as pessoas, “ao final”, morrerem, sabe-se que algumas morrem bem mais cedo, e em condições muito piores, do que outras.

A vida depende de duas coisas: do corpo e sua própria dinâmica (e cada corpo, humanos e não-humanos, têm sua singularidade e responsividade – por exemplo, a tratamentos); e de atenção. Atenção da parte do próprio “ser” de cuja vida se trata, como também, e principalmente, do outro.

Esse “outro”, na sociedade industrial e de extrema divisão e especialização do trabalho, é, frequentemente, o médico. Um médico bom não é aquele que tem à sua mercê uma infinidade de exames possíveis e imagináveis. Mas é aquele que consegue perceber, notar, identificar, o que se passa. Para isso, precisa tocar, pensar muito a respeito, consultar, estudar, comparar, etc.

Em que situações um médico fará isso que eu acabo de dizer? Há variações, claro; mas, em geral, quando houver dinheiro. Muito dinheiro significa que a outra pessoa, o profissional, aceita investir e dedicar todo seu corpo e mente a entender o que aquele corpo diante de si está “dizendo”. Envolve comprometimento: não apenas com um senso de “trabalho bem feito”, como se diz em algumas teorias de psicologia do trabalho, mas praticamente uma entrega, uma doação. Doar-se ao outro, seja ele um humano ou um não-humano, que é, como você que me acompanha, o assunto dessa última sequencia de posts.

A relação do corpo com o outro que cuida é uma relação mediada pelo dinheiro e pelo “gênero profissional”, uma espécie de cultura de cada profissão. O saber que aquela profissão, ao longo do tempo, foi colocando à disposição do profissional. Eu, hoje, estou mais crítico e, portanto, mais convencido de que o dinheiro é um importante marcador, um divisor de águas entre a vida entregue ao “silêncio dos órgãos”, como diziam Guatarri e Deleuze, e a vida que simplesmente pede para ser escutada.

De novo, para não perder meu argumento: a situação no caso da medicina veterinária é surreal. Primeiro, pois a “vida” não “fala” (em sentido literal). Daí a necessidade de uma capacidade de “empatia” quase metafísica. Depois, porque essa vida, em si, como disse a dois posts atrás, é mercadoria.

Ausência: um duplo sentido

É como se eu tivesse aprendido ontem que existe a perda e o luto. Como se isso fosse alguma coisa que, de repente, não fizesse parte do ser vivo, mas de um despertar tardio de minha consciência. A natureza, suas regras, suas contingências nasceram ontem, e deve ser por isso que nunca me dei conta de que se vive e se morre.

Freud dizia que o inconsciente não conhece a morte, não sabe nada sobre o tempo. A morte não tem lugar no inconsciente, e então deve ser por isso que nos comportamos como se nunca houvesse a perda, o fim. Nem o nosso, nem talvez o dos outros.

Quanto mais inflado nosso eu, mais auto-rotacionados nossos pensamentos, mais ego-centradas nossas preocupações, aspirações, medos, desejos, parece que menos somos capazes de perceber a morte. Narcisismo e morte. Aí, quando ela ocorre, nos sentimos como se fôssemos um convidado que chega muito atrasado em uma festa, arrependido do que perdeu.

Mas é paradoxal. Pois ao mesmo tempo em que a inflação do eu nos desvia da atenção ao outro, esse outro está desde sempre ali. Explico: quando um ente está a nosso redor, por mais que não lhe dediquemos muita atenção, sua falta denuncia que ele ali estava, à disposição, à-mão (como em algum lugar, sobre outra coisa, falou alguma vez Heidegger). Ausência na presença.

Mas existe presença na ausência? Num primeiro estágio do luto, provavelmente não. Quando estamos em luto, a “presença ausente” do ente desaparecido revela que o ente não está mais à-mão, não está mais ali. Essa ausência nos mostra que, no fundo, a presença subentendida do ente, quando vivo, nos era importante, por vezes vital. Mas não conseguimos, na plenitude, nos dar conta disso no momento em que poderíamos – parece que só o fazemos depois, quando já não há volta. Daí vem a culpa.

A morte de um ente altera nossa percepção, fazendo-nos realçar as características positivas do ente morto. Por que fazemos isso? Vou falar por mim, pelo que sinto. Porque o ente era importante, para alguma coisa ele era importante, senão essencial. Mas, no cotidiano da convivência, no cotidiano da “ausência na presença”, não nos damos conta, pois estamos muitas vezes às voltas com nosso próprio eu e seu cinturão de objetos, dejetos, todos eles circulando ao redor da gravidade egóica. Mas lá estava o ente, à-mão, à-disposição. Com a morte, não mais. Nesse sentido, a morte do ente tem relação direta com o narcisismo. Uma culpa narcísica. E não uma culpa relacionada à perda do objeto de amor (e a consequente necessidade de reorganizar os investimentos egóicos).

Winnicott tem um texto genial, “A incapacidade de ficar só”. Porém, como quase tudo nesse autor, a interpretação não é a que logo nos ocorre, de que uma pessoa (no caso, ele falava de crianças) não consegue ficar sozinha. E pronto. É isso, mas é também outra coisa: a criança, em seu processo de maturação, vai progressivamente aprendendo a ficar só – porém, na presença da mãe. Isto é, na presença de um outro que protege, ou que meramente ali está, na “presença ausente”. A criança fica entretida com alguma coisa enquanto a mãe está ali perto, passando roupa por exemplo. Com o tempo, a mãe vai se transformando em outra coisa, em outras pessoas, em outros objetos, outros entes.

Nesse post, usei a palavra “ente”. Sabe por que estou falando assim? Por que, se você leu meu post anterior, sabe de que perda estou falando. Essa perda, entre outras coisas, me fez ver a relação que mantemos com entes, não necessariamente pessoas. Aliás, entes não-humanos, quando a eles nos apegamos e daí os perdemos, dizem talvez muito mais sobre nós, nossos investimentos e dinâmicas egóicas, do que nossas relações com entes humanos. Em termos históricos, esses entes saíram de uma posição indiferenciada (“objetos” da natureza) e se tornaram “seres” para os “seres humanos”. Mas se tornaram seres como coisas à-mão. A relação que humanos com eles estabelecem mostra, talvez, apenas um capítulo dos mecanismos e processos mais amplos de vínculo e apego. Ou podem mostrar novas dinâmicas subjetivas, relacionadas à perda.

Encerro: quando choramos a perda de um ente, pode ser porque choremos aquela parte nossa que morreu com o ente. Ou podemos chorar aquela parte que gostaríamos de ter explorado melhor, ou seja, choramos pelas possibilidades não realizadas. Podemos chorar pelo abandono do ente em relação a nós, como se, para começar, esse ente tivesse vindo ao mundo por causa de nós! Ou podemos chorar por uma coisa bem mais profunda: podemos chorar pelo vazio, pela escuridão, pelo non-sense de que, no fundo, é constituída nossa vida. Podemos chorar de angústia, não de culpa. Então, é nisto que acredito: hoje eu choro pelo vazio.

Perda e revolta (fases do luto ou indignação?)

Na linguagem corrente, quando falamos em perder, sempre associamos a “perder alguém”. É incomum, embora isso, felizmente, esteja sendo revertido, falarmos que perdemos um animal querido, não-humano. Pois perdi um animal querido, uma cachorrinha de estimação, que esteve comigo durante 13 anos. Não vou aqui falar do meu vínculo com ela, do que ela representou para mim, do que mobilizou em mim. Gostaria de falar de uma coisa que esteve, o tempo todo, nos bastidores. Gostaria de falar do como transformamos animais em objetos de expropriação econômica, em mercadoria, e de como, no campo veterinário (falo da minha experiência), impera uma ganância, uma falsa preocupação e, pior, um amadorismo avassalador.

Sempre odiei posturas arrogantes. Posturas de quem acha que sabe, baseado em uma ou outra leitura de textos xerocados de universidade, ou numa “experiência profissional” repetitiva. De gente que não tem o espírito científico, capaz de levar a curiosidade, o interesse, a exploração até as últimas consequencias.

Mas como é que um veterinário pode se dedicar com a profundidade necessária à análise de um “caso”, se ele tem, diante de si, mil e um cachorros para tratar? Não pode. Ele trata genericamente, ele trata à distância, ele improvisa, e, sobretudo, o que mais irrita e magoa, ele trata baseado na crença de que compete ao animal “reagir”. Ensaio-e-erro. Em pleno 2014 estamos praticando uma medicina veterinária baseada em ensaio-e-erro!

Minha cachorra morreu em decorrência de um câncer (e de um tratamento quimioterápico não-responsivo, com sintomas secundários, mas fatais). Eu li tudo o que pude a respeito. Li e reli, e, confesso, não li como um leigo que imagina coisas, mas como um investigador interessado em entender o que estava se passando. Um veterinário que se pretende “oncologista” tem a obrigação de ler, de se informar, de entender (falo de minha experiência) que a medicina que se pratica fora do país é infinitamente muito mais avançada do que essas clínicas caça-níqueis espalhadas em cada esquina de nossas cidades, como se fossem “butecos” que sabe-Deus como permanecem abertos! Há muito para saber, aprender, se inspirar.

Poucos veterinários que conheci se dedicam a fazer uma veterinária que eu acho que seria a correta. Não falo de “atender bem o cliente” (o “dono” do animal), mas de fazer realmente uma medicina veterinária baseada em evidências, em ciência. Mal tocam nos cachorros. Mal vêem. Têm pouco interesse. Pensam nas contas a pagar no fim do mês. Pensam em qual remédio recomendar sem ao menos pensar se realmente são necessários. E, com sorte, vão progredindo. Mas, quando a realidade exige complexidade maior, eles não sabem como agir, embora aparentem para os “proprietários” que sabem.

Só Deus sabe o que se passa nessas clínicas veterinárias.

Minha cachorra morreria, um momento ou outro. Mas o que me deixa revoltado, impotente, é um “suposto-saber” desmascarado pelos fatos. O que me magoa profundamente são as conversas rápidas entre veterinário-proprietário, na qual “hipóteses” são lançadas como se lançam bolas no ar. Conversa mole, completamente insensível ao desespero, à angústia do proprietário. Ou então uma conversa mole, do tipo medicina-fetiche, linguagem empolada, um certo ar afetado, uma veterinária-merchandising.

Sabe por que a medicina veterinária pode ser muito mais cruel que a medicina humana? Porque animais são tratados como mercadorias. Não há quase freios para isso. Se você não gostou do seu veterinário, você troca. Mas a essência continua: lida-se com vidas de modo quase inescrupuloso, mas “dentro das regras” e sob aparência de normalidade. Como um animal vive 10 a 15 anos, o raciocínio passa a ser perverso, e os prognósticos tratados com naturalidade cínica.

Escrevi um desabafo. É isso, um desabafo. Para entenderem um pouco mais de medicina veterinária oncológica, olhe para fora do seu quintal. Comece por aqui: https://www.wearethecure.org/

Para saber como veterinários poderiam ser diferentes, use sua própria consciência.

Post-scriptum

1) Este é um post-desabafo; portanto, repleto de generalizações. Não estou sendo “científico”, como defendo, mas, diante das circunstâncias, acho que me sinto justificado;

2) Não sou cínico: critico, mas admito que preciso e vou sempre precisar de veterinários, pois sempre terei animais; então, estarei sempre na “eterna busca” de uma pessoa que combine ética e eficiência científica, que defenda a manutenção vida, por mais que ela seja de meses ou 1 ou 2 anos.

Sobre o que eu queria dizer hoje

Eu gostaria de escrever sobre alguns assuntos, mas eu não consigo. Não foram poucas as tentativas. Na verdade, juro, tentei muito. Vários posts inacabados, todos destinados ao mesmo “move to trash” do WP. Bom, sobre o que eu gostaria de escrever hoje?

1) Sobre a mediocridade nossa de cada dia. Sobre a burrice nossa de cada dia. Sobre como a burrice, para além de um problema moral, está associada às posições rígidas;

2) Sobre a intolerância, sobre a agressividade nas comunicações humanas, sobre como Nietzsche estava certo quando dizia que o que rege o mundo, a moral mundana, por assim dizer, é a moral do mais fraco, da pessoa amedrontada, covarde;

3) Sobre o que é viver num contexto em que todos estão perseguindo agendas ocultas terrivelmente banais, repetitivas, conservadoras. Sobre como, no ambiente mais intelectual, encontramos as imbecilidade mais asfixiantes;

4) Sobre como nos enganamos, sobre como por vezes as coisas são sempre simplificadas, sobre o quanto abandonamos nossas ideias de excelência;

5) Sobre como o ambiente acadêmico é, a um só tempo, paradoxalmente, sublime e ridículo; sobre como brincamos de usar um determinado vocabulário; sobre como somos ignorantes e boçais de um discurso do qual nos pretendemos “entendedores”;

6) Queria escrever sobre a comédia da vida cotidiana; sobre como nosso ego é o mais insípido e o mais incrivelmente mesquinho; sobre como é fácil criticar e não fazer; sobre como é fácil não desejar e culpar, cinica e ridiculamente, aqueles que tentam.

Enfim, é mesmo muita coisa. Então, incapaz de escrever com dignidade intelectual sobre essas coisas, me resigno. Não sei por que, mas uma música, como que num contraste absurdo, ou numa ironia execrável, parece representar o que estou sentindo. Segue abaixo. Repito: ironicamente (para entender, e não sei explicar, não sei mesmo, é como se me sentisse como Antonio Salieri, no belíssimo Amadeus, o primeiro filme a seguir, antes da referida música). Será que você conseguiria me entender, meu caro leitor anônimo? Talvez eu esteja a lhe pedir muito…

Pensar grande

Chega um momento, em sua vida profissional, em que é preciso pensar grande. Não me refiro a isso que já virou um ditado do senso comum, certo puritanismo ascético de crescer, crescer e crescer, de sentir que se veio neste mundo para fazer a diferença, deixar sua contribuição, ser diferente da maioria dos outros, etc. Pode até ter um pouco disso, mas penso em algo diferente. Penso, em particular, no campo das ciências, ainda mais especificamente no campo das ciências humanas, no da psicologia, onde por fim atuo. O que é pensar grande aí?

Vou tentar uma resposta, menos por tê-la já pronta na cabeça, mas muito mais no sentido de que, enquanto escrevo, estou pensando e a desenvolvendo para mim mesmo. Então, por enquanto, ela pode não ser mais do que algunas intuições, impressões pessoais.

Sinto que vivemos hoje, talvez por conta dos excessos da cultura da produção acadêmica, uma situação de saturação. Até aqui, nenhuma novidade. Muitos de nossos alunos, nós mesmos (professores), colocamos alvos miúdos à nossa frente, e nos limitamos a alcançá-los. Muitos de nós pensam apenas no curto ou, no máximo, médio prazos. Outros, mais experientes, conhecem seu próprio centro de referência (seu projeto profissional, por exemplo, ou sua circunscrição teórico-metodológica…), e então acabam “espraiando” alguns tentáculos, o que se reflete em diversos projetos em rede (com alunos, outros colegas, etc.). E há, naturalmente, os que “atiram para todos os lados”, vivem ao sabor do momento, daquilo que pode repercutir em bom volume de produção. Vivem, nesse sentido, uma vida “rizomática”, para fazer um uso (espero que não-abusivo!) de uma ideia de G. Deleuze.

Mas, o que buscamos? Em que medida as demandas institucionais acabam nos atravessando e, de dentro de algum jargão, nos inflamos e causamos algum barulho? O que pensar grande nestes casos?

Pensar grande é, em alguma medida, retomar certa perspectiva holística da realidade, certa visão total dos fenômenos. Há muitos que dizem não ser isso possível, pois um fenômeno só se revela a partir de algum recorte. Mas a cultura do recorte (travestida de uma roupagem “epistemológica”) nos afasta da apreensão mais ampla dos fenômenos, e nos torna absurdamente especialistas. Então, pensar grande implica, nalguma medida, em sair de um jogo disciplinar específico (digo, de alguma abordagem / faceta particularista dentro do campo do saber). Mas, pode-se argumentar, isso nos deixaria como a personagem Ryan do filme Gravidade (em cartaz): à deriva? E, definitivamente, ficar à deriva não é bem uma “qualidade” apreciada no contexto universitário. Então, temos aí um paradoxo.

Sem alongar demais, e como eu me dei a liberdade de simplesmente ir expondo alguns pontos aqui, eu perguntaria ainda o seguinte. E quando não conseguimos pensar grande, quando somos, por muitos motivos, impedidos de fazer isso? O que nos resta? Bom, restam algumas opções (sempre pensando no pequeno-mundo acadêmico, minha realidade): primeiro, inflar-se em torno de um ponto miúdo, ou seja, fazer muito (barulho – ex.: artigos) com pouco (conteúdo). Segundo, paralizar-se: diante do “pensamento pequeno”, prefere-se não falar nada. Neste caso, é uma estratégia curiosa: quem pouco produz tem, a seu favor, a prerrogativa de que não produz porque prefere esperar o momento certo da “manifestação do pensamento grande”. É uma opção, e temos de colocar assim. Há ainda os cínicos, que jogam o jogo – por exemplo, produzem porque sabem que no “mundo artificial” da ciência, as coisas são assim, de modo que preferem entrar no jogo a questioná-lo. Estes, em geral, vão muito bem, pois estão integrados na lógica que estrutura o funcionamento das coisas. Mas podem vir a ser, em qualquer momento, cobrados perante a consciência, esse tribunal impiedoso do sentido.

Não assino embaixo de nenhuma opção acima. Ainda seguirei por aqui, um pouco frustrado, porque ainda não sei bem em que consiste “pensar grande”… nesse mundo tão pequeno chamado ciência, ciências humanas, psicologia.

Fracasso

O que acontece quando fracassamos? Numa cultura supostamente meritocrática como a nossa, vencer ou fracassar depende de desempenho, cuja proficiência se mede com critérios contingentes de valor e também de aspectos comparativos. Portanto, um desempenho é bem-sucedido se atingir certos padrões estipulados como ideais (ou próximos do ideal), quando uma pessoa (seu desempenho) é comparado ao de outra, e quando, subjacente a tudo isso, comparece um elemento qualquer de sorte. De fato, não há como negar a presença dela!

Mas há uma “química” na vida cotidiana que nos leva, sempre quando diante de algum fracasso, a jogar a culpa em nós mesmos – exatamente no desempenho. Nessa direção, fracassar traz consigo um componente de culpa, de auto-flagelo, de vergonha, e, por que não, de dúvida sobre si mesmo (no caso de, como diria Freud, sermos bons neuróticos).

Quando o outro nos nega o acesso àquilo que alcançaríamos se fôssemos bem-sucedidos, há um remanejamento perceptivo em que o nos vemos como a parte com alguma falta, com alguma insuficiência. Desencadeia-se um processo de deslegitimação. Naturalmente, esse processo não é (não deveria!) extensível à personalidade como um todo, ao conjunto da vida de uma pessoa. Tanto é verdade que, quando fracassamos, aqueles que nos trazem de volta à realidade (a um sentimento de legitimidade), são nossos amigos, pessoas que nos vêem a partir de outros critérios que não o estrito desempenho em áreas estritas da vida social/burocrática (no sentido Weberiano). Amigos nos acolhem, nos colocam de volta nas trocas simbólicas fundamentais a nosso senso de identidade. Eles nos reconhecem.

Haveria como, mesmo diante de um fracasso, contarmos com nós próprios, nossas crenças, algum substrato de nosso ser capaz de ficar imune à recusa do outro (fracasso)? Tenho dúvidas sobre isso, mas penso que contar consigo mesmo, num fracasso, é a situação mais realista. Um exemplo bastante simples. Quando fracassamos, isto sempre ocorre no plano simbólico (por exemplo, não conseguir um emprego desejado, num lugar desejado). Fracassar, no plano concreto, é morrer, literalmente. Então, quando fracassamos, o que nos resta, do ponto de vista estritamente concreto? Nosso corpo – antes mesmo de nosso ego!

Nosso corpo é, afora o plano obviamente sensório-motor, físico, intelectual, energético, a única garantia que temos de que, quando tudo no campo simbólico desmorona, ele ainda estará lá. Não nossa vida – que é estrita e indiscutivelmente física, mas sim nossa vida e nosso potencial. Nosso corpo, marca suprema de nossa identidade e de nossas possibilidades, é o único suporte que temos para instituir novas formas simbólicas, para avançarmos na vida, para avançarmos sobre as resistências de todos os tipos.

O que quero dizer é que, diante de um fracasso, não é apenas no campo simbólico, interpessoal ou intersubjetivo que temos de reencontrar o sentido e o suspiro necessário para superar a situação. É no plano de nosso corpo, aqui entendido semioticamente – como uma matéria (uma coisa-em-si), mas como uma forma de mediação entre “nós” (ilusão absurda, necessária para nossa sobrevivência psíquica, mas uma invenção absurda, tanto no sentido positivo como negativo) e o mundo. Para mim, em suma, diante do fracasso, só há uma saída: a coragem física!


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