Lealdade

Assisti novamente ao curta que postei aqui, intitulado Adam and Dog. Sua essência é o tema da lealdade, da gratidão, retribuição, algo que lembra o conceito de ‘graça’ discutido por Marcel Mauss. Na configuração da graça, o que recebo do outro gera entre mim e ele uma dívida simbólica que é alheia à axiologia econômica. Em outras palavras: há um processo de doação de si que transcende a lógica econômica.

O cão é leal a Adão, mesmo este tendo sido expulso do paraíso. O cão é grato a Adão por este tê-lo acolhido antes, com carinho e alimento. Enquanto todos abandonaram Adão (e Eva), inclusive os animais do Paraíso, o cão, praticamente sem titubear, volta à floresta, retoma o graveto que havia guardado de suas diversões com Adão, e segue este último.

É desoladora a imagem de Adão e Eva saindo do paraíso. Sozinhos. Desamparados. O cão, na animação citada, reata, religa, resgata o princípio da graça e da dádiva inerentes na própria concepção de Paraíso. Ele não deixa o primeiro casal sozinho. Com seu gesto, mantém um elo entre homem e animal que está na origem da Criação.

Em que consiste a lealdade nos dias atuais? A que ou a quem sou leal?

Talvez um nietzschiano diria que a lealdade comporta algo de passivo, de submissivo: sou leal ao mestre, ao amo (na estória do Senhor e do Escravo de Hegel). O escravo precisa do senhor para manter sua própria identidade cativa, ao passo que o senhor se alimenta do escravo, numa perspectiva dialética, para que seu próprio ser tenha sentido. Pode ser, claro, que o cão precisasse do homem (Adão) para manter sua própria posição submissa (antes a submissão do que o abandono, o desamparo).

Mas a lealdade, e novamente remeto ao vídeo, contém algo de corajoso, de audaz. É uma retribuição que funda uma ética da troca, da solidariedade, da companhia. O companheiro retribui, gerando em quem dá o ensejo da re-retribuição. Fecha-se o elo da parceria, da amizade. Neste tipo de amizade, cada membro é reconhecido em seu papel alternado: quem doa e quem recebe; quem recebe e quem doa. O dom, neste caso, não pertence a nenhum dos dois, mas à relação.

É isso. Lealdade. Amizade. Retribuição. Dívida. Graça.

O turista e a ambivalência espaço-lugar

Um lado de ser turista é chato. Aborrecedor. Arrumar, desarrumar malas, ir de hotel em hotel, frequentar o transporte público (trens e avião, no meu caso recente), verificar a todo instante se os documentos essenciais estão consigo, ocupar-se da conversão de moedas e da troca de línguas e dialetos. Também é chato, ao ser turista, participar (por diversos motivos que vão desde logísticos a financeiros…) de um certo reducionismo que consiste em enquadrar um lugar (uma cidade, por exemplo) a paisagens turísticas: quando na cidade A, visite os locais A1, A2…; quando na B, os B1, B2, B3, e assim por diante. Nesse sentido reducionista, o turista pode ter a sensação estranha de que não está saindo do lugar: apenas está trocando as imagens, vendo-as do mesmo ponto.

Garçons falam inglês na Itália, em Praga; falam francês em Londres, italiano em Portugal. E não têm problemas com isso, pois, no fundo, estão dentro de um mesmo gênero de linguagem: o de atender turistas (o que há de tão variável na atividade de servir uma bebida?). Você sempre pode comprar um souvenir, em geral made in China – um telefone ao estilo inglês para usar como “cofre”; um quadro de algum pintor famoso da cidade; a foto da rua em que certo outro escritor ilustre nasceu (compra-se a réplica da placa da rua…). Nesses momentos, você está participando da redução da cidade e do lugar. As galerias de souvenirs aos pés do Vaticano só são diferentes das de Praga ou Lisboa na medida em mudam-se os objetos a serem representados. Como disse, aqui se tem a impressão de que nada está efetivamente mudando

O turismo movimenta bilhões de dólares todos os anos: hotéis, restaurantes, empresas de máquinas fotográficas (!), agências de turismo, prefeituras…uma legião de agentes econômicos capitalizando cada pedaço das cidades. É o reino (usando linguagem recente) das indústrias criativas.

Mas há um outro lado do “ser turista” que é bem interessante. Em particular, gostaria de falar da ambiguidade ou ambivalência que essa “atividade” despertou em mim no que diz respeito à relação espaço-lugar.

O espaço é disposição “natural” de coisas. Circula-se pelo espaço. Passa-se um tempo num espaço. O espaço é impessoal. Em contrapartida, o lugar é investido afetiva, social, culturalmente. O turista está em contato com o espaço, mesmo que esteja diante de um monumento ou coisa do tipo “repleto de história”! O nativo, por seu turno, vive num lugar, mesmo que não se circunscreva a ele (lógico que, mesmo sendo habitante, ele viaja, se desloca de um canto a outro, etc.). O lugar compõe sua identidade, dá-lhe estabilidade.

Viver em trânsito em diversos espaços (por exemplo, sair de seu país e ficar um tempo “viajando” por aí) tem seu limite. Não creio que alguém consiga ter sanidade mental simplesmente não parando em lugar algum, vivendo como se fosse um turista permanente. Por outro lado, a relação com o lugar pode ser asfixiante, pode nos levar ao desespero. Obviamente, o lugar depende de um espaço; mas depende também de uma narrativa, de uma história, de um “dizer” sobre o espaço. Por mais que falemos de globalização, a verdade é que os lugares têm sua marca própria. E ela frequentemente absorve os nativos. E o ser humano tem a impressionante característica de viver o local como se ele fosse o limite último de todas as coisas (mesmo que, conscientemente, ele saiba da “imensidão” do espaço que “existe por aí”…). Para captar e viver a narrativa que circula pelos lugares de pertencimento é preciso tempo, exposição e, claro, domínio da língua (num nível que vai muito além da linguagem do garçom, recepcionista etc.).

Então, o turista vive uma situação indefinida, entre o espaço e o lugar. Como turista, tento observar e “entender” o que os nativos estão fazendo. Pelo fato de ser ocidental, de ter sempre vivido em cultura ocidental, consigo reconhecer certos sinais que me dão alguma orientação (quem não reconhece um McDonald’s, independentemente do lugar em que está?). Em outros casos, é difícil entender – e, se tentar observar com um nível cada vez maior de detalhes, menos consigo entender, apreender. Por exemplo, um vendedor de souvenirs de Roma pensa a mesma coisa sobre sua atividade como o faz o vendedor de souvenirs em Londres? Na verdade, como turista, temos de fazer imensas generalizações; não conseguimos olhar no detalhe. Não conseguimos apreender o lugar e suas narrativas. Isso é desconcertante e agoniante.

[To be continued…]

Grupo de referência: miopia necessária?

Uma rápida reflexão, de passagem mesmo, sobre a importância, por vezes implícita, de nossos grupos de referência. Um grupo dessa natureza é, segundo a psicologia, aquele a cujos padrões recorremos para medir nossas próprias conquistas, nosso próprio comportamento, também nossos ideais (valorizamos aquilo que nosso grupo de referência valoriza). Contrariamente, tememos ou desmerecemos aquilo que nosso grupo de referência desmerece ou não valoriza.

Um grupo de referência está ligado à nossa socialização primária – não se refere à “sociedade” mais amplamente falando. Conhecemos as pessoas de nosso grupo de referência, muitas vezes convivemos, no dia-a-dia, com elas. Um exemplo pode ocorrer no trabalho: as pessoas com quem trabalhamos por vezes tornam-se nosso grupo de referência, mas pode também ser nossos amigos, acho que até mesmo nossos familiares.

Se, em meu grupo de referência, as pessoas valorizam certos “outputs”, a tendência é que eu também o faça. Existe certa pressão de grupo para isso, mas também certa identificação de nossa própria parte: voluntariamente, digamos, nós aspiramos coisas semelhantes, e, mais importante, nos comparamos – eis aí um mecanismo psicológico-chave na nossa relação com nossos grupos de referência! Esse mecanismo tem um efeito interessante: ele faz com que nós e nosso grupo de referência nos tornemos, ao mesmo tempo, similares e diferentes. Seria mais ou menos a mesma coisa que acontece em nosso processo de constituição identitária – somos iguais/semelhantes a certas pessoas, e diferentes de outras.

Em situações de ambiguidade, tendemos, mais do que habitualmente, a recorrer à visão, à métrica, oferecida por nosso grupo de referência (ou aquela que imaginamos/percebemos).

Bom, eu disse tudo isso para completar agora: ao mesmo tempo em que é importante se fixar em certos padrões de grupos de referência, a certas balizas, especialmente afetivas, representadas por esses grupos, também representam um risco à individualidade. Nesse sentido, sigo aprofundando meu post anterior, no qual discuto a “incapacidade de ficar só”. Pois grupos de referência, além de instáveis, podem nos desviar de nossos próprios projetos.

Nos grupos de referência, ao sermos acolhidos ou ao nos espelharmos, visamos a algum tipo de reconhecimento. Porém, grande projetos de vida nascem do interior, nascem da solidão interior: eles miram paisagens mais distantes; desejam altitudes mais elevadas, onde o ar é mais rarefeito e onde não há muitas outras “formas de vida” em que se inspirar. Esse mergulho interior é, na verdade, uma reelaboração criativa do que recebemos do mundo.

Claro que tal projeto não “nasce da cabeça” do indivíduo; mas há uma certa dinâmica, segundo a qual, do mergulho em si, e da visada beyond ou au-delà de nossos grupos de referência, nascem obras significativas para si e para o mundo. Só para fechar com um exemplo de Nietzsche: ele dizia (mais ou menos, estou escrevendo só de memória) que precisamos tirar, no mínimo, 300 anos de pele histórica de cima de nós (haja acúmulo de “outros significativos”, de legados de grupos de referência…) para podermos enxergar as coisas com mais clareza. Ou então que precisamos subir em alta altitude, ver de cima, com o olhar das aves de rapina (que, até onde sei, não costumam “andar” em bandos)…

 

A incapacidade de estar só

Um amigo, que é religioso (mas racional), me disse, em uma visita que me fez neste final de semana, que uma boa descrição do inferno é quando não se sente a presença de Deus, ou se sabe que Ele não está presente. Metaforicamente, o inferno é a condensação de escuridão viva, vazia, a solidão absoluta – uma forma suprema de desamparo.

Gostaria de refletir um pouco sobre isso. Não de uma perspectiva teológica, sobre a qual nada mais conheço desde que abandonei o seminário, mas psicológica.

O desamparo, e a solidão em que ele está envolto, pode ser apresentado como a mais pura percepção da consciência sobre sua própria finitude. O desamparo, portanto, é corolário de perceber-se indivíduo, “desligado” de alguma “totalidade” – o inverso do pensamento oceânico discutido por Freud. Religião, como se diz, implica em re-ligar, em repactuação constante em torno de Deus unitário (ou em torno da Santíssima Trindade, para os cristãos). Não estranha, portanto, que diversas comunidades religiosas vivam, ainda hoje, um sentimento comunitário, uma espécie de fogueira a aquecer na escuridão e no frio do atomismo social, da serialização individual.

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Não é à toa também que, na ausência da religião (ou como seu sucedâneo), haja a presença da República. Para mim, que não sou erudito o suficiente, tenho como exemplo disto a França, onde a República assumiu, em sua história, um papel de fiador social muito poderoso. Na ausência da República ou de uma religião forte, resta aos indivíduos o Estado. Sem este, a barbárie, como se sabe após séculos de pensamento político (filosofia política).

Uma forma perigosa (em termos psíquicos) de desamparo é quando a consciência “desampara-se de si mesma”. Quando não encontra, em si mesma, o estofo  necessário para uma vida significativa (com sentido). Esta situação seria o equivalente do “inferno sem Deus” que meu amigo me descreveu. O inferno dentro de si – isto é, a escuridão interior. Claro que falo de uma escuridão em sentido metafórico.

A solidão, o desamparo da consciência (a descrença em si, a incapacidade ontológica de identificar um solo em que pisar, com “objetos bons” internalizados, como diria M. Klein), reflete na incapacidade de estar só. Para fazer face ao vazio interior, diversos “recursos” estão à disposição da consciência: fluxos fantasiosos de pensamento; imaginação megalomaníaca ou então auto-punições severas; adicção; ansiedade [por definição, um medo sem objeto, difuso]; etc. E não necessariamente estamos falando de psicopatologia – quando muito, de uma psicopatologia não severa. O indivíduo, incapaz de ficar só, luta como pode para adaptar-se ao ambiente.

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O desamparo, mesmo sem recorrermos a uma linguagem religiosa, é, em suma, a necessidade de ter de viver uma vida na finitude de um corpo e nas restrições impostas, contingentemente, pelo mundo. É a agonia, a percepção do tempo que passa e a incapacidade da consciência ligar-se a objetos externos, e de ligar objetivos externos.

Para encerrar, e voltando à metáfora de meu amigo, acho que não precisamos ir muito longe, na teologia ou algo assim, para compreender o que é o “inferno”, esta construção enigmática que, entre outras coisas, simboliza a incapacidade de estarmos sós, com nossas consciências, e “desligados” de outra realidade/objetos/pessoas.

Níveis de existência

Escrevo aqui de algum ponto abstrato no espaço. Não vou lhes dizer em que ponto estou, exatamente. Hoje gostaria de fazer uma rápida reflexão sobre os níveis em que podemos estar confinados em nossa existência.

O nível mais básico é o fisiológico. Cada vez mais me convenço de que é a fisiologia, como um sistema autônomo (ou quase) e integrador de diversos sub-sistemas, que governa nossa vida. Há, basicamente, a fisiologia (entendida aqui, genericamente, como um macro-sistema), o cérebro e a cerebralidade (cultura, signos, sentidos, etc.), e o ambiente (físico). A fisiologia é o corpo primitivo: o sistema cárdio-respiratório, cárdio-vascular, digestivo, etc. Mesmo as partes “primitivas” do cérebro, cujo valor é de auto-regulação fisiológica.

A existência, no nível fisiológico, é governada por leis e quase-leis. No primeiro caso, temos as associações e correlações entre propriedades, substâncias, “entidades” – e que podem ser (e o são, mesmo com certa margem de erro e arbitrariedade) explicadas pelas ciências médicas e biológicas (e físico-químicas) em geral. No segundo caso, o das “quase-leis”, estamos em áreas fronteiriças, áreas ambiguas, reversíveis e etc.: na área da mente, dos sistemas influenciados por esta – em suma, estamos no campo das interpretações (e fantasias) do cérebro.

Portanto, um outro nível de existência é justamente o que se deriva, ou está associado, à área regulada pelas quase-leis. Alguns filósofos denominam este campo como aquele regulado pelas razões (diferentemente das leis, mencionadas a pouco). Trata-se de um nível no qual podemos inferir influências recíprocas entre ambos: o macro-sistema fisiológico e o sistema mental (neurológico, se se quiser). Aqui ainda estamos num campo em que há elos de compromisso entre os vários níveis.

Mas há um terceiro nível (haveria muitos outros a descrever, conforme o sistema linguístico escolhido), e o denomino de nível da pura arbitrariedade do signo. Já falei disto aqui, em outro momento. Bom, nesse nível o que encontramos são elaborações muitas vezes desprovidas de qualquer base empírica (e há, contra amadores de plantão, sim, uma base empírica – a fisiologia está aí para nos confrontar exatamente com isso!), mas que, indiretamente, podem mesmo levar a arranjos empíricos. Um exemplo deste nível pode ser encontrado na publicidade, na vida quase “paralela” em que vivem “astros e estrelas” de televisão, ou mesmo muitos de nossos conhecidos, até mesmo nosso vizinho ao lado!

Esse terceiro nível pode, no limite, levar a imensas zonas de sombras, verdadeiros bunkers no meio da vida social. Vulgarmente, tais zonas podem ser confundidas com processos alienantes, embora “alienação” seja uma palavra metafísica demais para o propósito descritivo aqui. Alguns antropólogos ou sociólogos (ou mesmo psicólogos) poderiam denominar este nível de existência como nível cultural, de classe, de grupo, de sociedade, etc. Acho, honestamente, esse um dos mais complicados níveis de existência, pois ele não tem nenhum referente fora de si mesmo que possa, de modo ad hoc, firmar sua “verdade”. É a prostituição do signo, ligada ao campo do jogo de forças e da potência entre indivíduos e/ou grupos sociais. É neste nível que são afirmadas algumas verdades prêt-à-porter, e que nos dispõem os recursos heurísticos mais banais, no sentido de vida cotidiana.

Acho o terceiro nível perigoso, em suma. Mais e mais tenho achado perigoso o fato de um conjunto cada vez mais amplo de seres humanos, bípedes sem penas dotados de linguagem, constituírem uma manada, cada um sendo uma espécie de “gerador de significados” a ventilar pelo mundo, graças às redes tecnológicas. Eu mesmo, que ironia, estou fazendo isso exatamente nesse momento!

Não misturemos! Um manifesto pela individualidade radical

Primeiro, vejam este vídeo – bem interessante, cuja “filosofia” é de não misturarmos certas coisas, pois não dariam nenhum pouco certo…

Agora, eu gostaria de completar com minha “lista de desejos” do que eu acho que não deveríamos misturar. A premissa básica é: eu sou eu, você é você. Sim, somos seres independentes, embora interligados de algum modo. Mesmo assim, ser independente quer dizer: a) que você, e só você, sente uma dor; b) que só você, e somente você, vai morrer do jeito que você vai morrer; c) que nada, nem com a melhor das filosofias exóticas, pode garantir que você sinta algo que o outro sente, e vice-versa; d) que apenas você sabe o que pensa, acredita nas coisas que acredita (embora viva imerso num mundo de significados compartilhados). Posto isso, passo à minha lista ou (arrisco dizer) “oração” (sim, pois são muito mais desejos do que práticas cotidianas…).

Não vamos juntar, não vamos confundir…

1) Seu fracasso com meu sucesso; ou meu fracasso com o seu sucesso, a menos que eu seja o explorador, ou que eu seja o explorado;

2) Suas experiências pessoais, sobre o que quer que seja, com minhas crenças e valores – por mais que estejamos numa mesma cultura ou sub-cultura, é problema seu aquilo em que você acredita;

3) O caso particular com o caso geral: as regras de sua vida não necessariamente se aplicam à minha; seus medos, suas angústias, sua maneira enviesada de ver a realidade, não necessariamente têm a ver com as mesmas coisas que ocorrem em mim;

4) O seu mundo com o meu, suas fraquezas com as minhas, suas forças com as minhas;

5) Seu delírio com o meu delírio;

6) Sua experiência de vida, sua “senioridade”, com a  minha experiência de vida; você fala de um lugar muito seu, de uma mesquinharia que é só sua, não minha; as minhas, delas cuido-as eu;

7) Seu desejo de agradar, de “ser legal” (para ganhar alguma coisa), com minha ousadia, meu desejo de te falar que “F.U., eu falo o que penso”;

8) Seu gozo com o meu (leiam Lacan para entender);

9) Seus critérios do justo, do certo, do bonito, do feio; suas ideias sobre o que é melhor ou pior – não generalize, indutivamente, a partir de si mesmo. Não se ache um “exemplar” da espécie – lute pela impessoalidade gritante, pelo “imperativo categórico”;

10) Sua hipocrisia com a minha.

Uma coisa eu te digo: como a vida é um grande e insidioso jogo de espelhos. Como nos confundimos, como nos projetamos, nos alienamos, nos “externalizamos” em supostas regras “coletivas”, “compartilhadas”.

Alguém conhece poder maior do que ser um indivíduo?

Ficções 2

Eis que encontro outros registros de R. Desta vez, ele relata estar indignado com o sorriso do espaço público, ou melhor, no espaço público. R. está convicto de que o sorriso, sob certas circunstâncias, é o inverso, o engodo, ou o malogro, da sinceridade. O sorriso é o cúmulo da parvice, na concepção de R. Quanto mais se sorri, e aqui o “sorriso” deve, segundo R., ser interpretado/tomado em sentido amplo (como um gesto de conveniência/conivência ao outro), menos se tem de controvérsia e sinceridade.

É histórico. Por detrás do sorriso elogioso, esconde-se a convicção, cínica, de que o outro é um boçal, mas de quem você precisa para alcançar seus objetivos mais “pançais” (de pança, segundo R., e em sintonia com post já publicado aqui sobre o tema). E o sorriso do “rosto”? Por exemplo, para Levinas, o rosto, o semblante, é o ícone da alteridade, do estranho. O rosto humano nos causa uma reação inevitável, nos interpela à alteridade. Mas, para R., tudo isso é literatura. Para R., o sorriso, sob certas circunstâncias, é puro ocaso.

Não era minha intenção; não gostaria de “questionar” os registros de R. Mesmo assim, eu lhe dirigiria, mesmo que a posteriori, um questionamento: e então, R., devemos, todos, nos tornar, nos assumir, carrancudos? É difícil de responder a isso apenas com os registros póstumos de R. E nem acho que o próprio R. teria uma resposta trivial para a questão. Porém, o ato de ser “carrancudo” pode denunciar, sim, vis-à-vis os registro de R., um desencaixe. Primeiro, um desencaixe egoísta de si com a situação. Quanto a isto, pode ser que se explique porque certas pessoas simplesmente não conseguem “fazer-se” com outras, no aqui-e-agora: elas vivem num tempo atemporal (R. pede desculpas pela contradição!).

Não viver na temporalidade cotidiana implica em certa ignorância, em uma forma de alienação. Quem assim vive, prefere encontrar a energia em si mesmo, e vê a vida cotidiana como um pálido reflexo do instinto de sobrevivência, da eterna recriação, pela Vontade, de cenários fantasiosos em que nos enganamos, de forma “necessária”, na convivência e na estética das interações.

Quem vive para si, diz R. (no sentido acima aludido), é um metafísico. Essa pessoa impõe uma verticalidade nas situações, um eixo magnético, carregado em sentido inverso, que expele, a partir de si, tudo o mais como supérfluo. A verticalidade, o mergulho “no si”, é, metafisicamente, superior ao viver na horizontalidade, na orgia da vida cotidiana. É assim que pensa R.

A segunda forma de desencaixe é entre o sujeito e o ator, entre o eu e seu papel. Para R., representar é, por definição, uma forma de corrupção. Mas o representar pode ser, questiono-te R., uma forma de verdade. A verdade por contingência. A verdade histórica. A verdade tecida pela pele secular que se interpõe entre nós e o outro num determinado momento desta vida na terra.

A discussão, com certeza, seguira para bem alhures, no caso de eu continuar a descrever os relatos de R. quanto ao tópico. Vou parar por aqui. E com um desafio: e o que dizer do rosto “carrancudo” motivado por uma dor de barriga? Por que esta forma de egoísmo é tão atávica, anímica, e, ao mesmo tempo, tão socialmente “palatável”?

*** Eu, proprietário deste blog, apenas relatei o que tinha aqui escrito em algumas anotações antigas, referentes à minha convivência com R. Em Ficções, vou revelar a vocês outras coisas bem estranhas de R., um grande amigo meu da infância e adolescência.

“Viver para a pança”

É uma frase do colossal Anna Kariênina, de Tolstói. “Viver para a pança” significa viver conforme suas próprias necessidades, isto é, conforme o que é bom para mim. Outra forma de falar de egoísmo? Talvez. O personagem, quando diz isso, contrapunha ao ‘viver da pança’ o viver para o ‘espírito’, para o ‘outro’, para Deus.

Viver para a pança é viver conforme a imanência, conforme o acordar-trabalhar-gozar-dormir. O “gozar”, aqui, pode ser uma ironia, embora, para alguns poucos, sublimar seja possível e a “pança” fique em segundo lugar ou em outro lugar que não no centro do coração.

Viver para a transcendência, e o que isto significa? Claro que falar em Deus, no contexto da obra mencionada de Tolstói, talvez não seja em sentido figurado – talvez seja, realmente, Deus. Para Tolstói. Para nós, e tentando não incorrer num egoísmo metafísico (que substituiu Deus/vocação por … uma profissão, como dizia Weber), Deus é o não-eu. Mas é muito complicado porque, muitas vezes, pensamos em Deus-não-eu como um conjunto “dialético” com o eu: ainda aceitamos o eu, ainda o reconhecemos em sua singularidade e valor.

O não-eu não é, obviamente, a loucura. Talvez seja o inconsciente, para alguns; ou então outras versões de inconsciente, que, embora não metabolizado na linguagem da psicanálise, refere-se a tudo aquilo que é o não-eu e que, não obstante, “tem de” ser lidado no âmbito do eu.

Paradoxalmente, o não-eu é “condição” para o eu, ao menos em nossa subjetividade/cultura moderna.

***

Post scriptum: Freud, Marx, os grandes “pensadores”; os templos magníficos, as torres e castelos ainda existentes, resquícios-relíquias de um tempo “sagrado” (quando Deus ainda estava no mundo, bem vivo, digamos assim, ao contrário de Nietzsche); as grandes idéias em suma: o que são sem a pança? Marx sem a revolução é literatura; Freud diante da “pedra do real”, insuperável e intransponível, é literatura. A literatura é a perversão institucionalizada do signo.

Ficções 1

Às vezes jorram na cabeça de R. algumas idéias. Jorram, jorram com abundância, mas R. sabe que são tão instáveis, tão insustentáveis, que jamais ele acredita que tais idéias possam constituir um stream of consciousness com algum pedigree. Pobre R., sempre abortado, uma pessoa-quase determinada por pensamentos em forma de relâmpagos, mas profundamente reveladores, profundamente sintonizados com a matéria que constitui, ao nível quase sub-atômico, este mundo. R. é um frustrado, no fundo. Vaga às escuras, mas, mesmo assim, sob certas circunstâncias, R. é brindado com pensamos profundos, em forma de relâmpagos.

Entre esses pensamentos, dois. Um, o leva a crer, ele, R., que tudo se esgota na combinação. Na combinação de ingredientes de um prato, de uma refeição. Não há mediação entre ingredientes e a boca. Todos se encontram no mesmo lugar, a cavidade bocal, e ali dizem ao cérebro que tudo não passa de uma coisa realmente simples. Os mais perturbados, em geral próteses de intelectuais, diriam que não, que não é possível, e que tudo tem de ser “mediado semioticamente”, que se R. sente algo em sua boca, provocada por um conjunto de ingredientes sabe-Deus-como-foram produzidos, isso só pode ser porque ele pertence a uma classe social, a um determinado nível histórico-cultural, pois seu cachorro, caso, claro, R. tivesse um, poderia comer um pedaço de pau com sabor Knorr de carne que ele, o cachorro, acharia que houvera descoberto o supra-sumo dos prazeres.

O segundo pensamento de R. é que há algo profundamente errado com o modo como ele foi criado na infância. R. acha que o ambiente amedrontador em que ele foi criado, o fez mal. Esse ambiente, a todo instante, dava a R. a sensação de que o mundo iria acabar, e que era preciso ficar à espreita. As pessoas ao redor de R. achavam tudo muito irônico, muito sinistro; achavam que era melhor, para R.-criança, se elas fossem cínicas, zombeteiras, apresentando o mundo em sotaques arrastados, com ironia caipira. R. sabia, ou melhor, imaginava, que algo de bem estranho, párvido, sinistro, havia de o esperar no mundo. Embora R., no seu íntimo, pensasse que o “estar no mundo” não fosse uma questão – ele havia sido preparado para ficar só um pequeno tempo nesse mundo, não um tempo muito longo. Num tempo muito longo, o que faria R.? Ele não saberia responder, pois R. foi preparado (este verbo é, neste contexto, pensa R., uma grande condescendência com seu passado….algofake, por assim dizer); R. não foi “preparado”, vejam só isso…

Às vezes, R., sem o saber por completo, concorda, com seus neurônios-vivos, com Husserl, concorda com a necessidade de suspender o juízo, de colocar entre parênteses, de dar um passo para trás e pensar, simplesmente pensar no stream mental que se lhe apresenta no cérebro, nesse cérebro que lhe explode às vezes, lhe jorra algunsinsights.

*** Eu, proprietário deste blog, apenas relatei o que tinha aqui escrito em algumas anotações antigas, referentes à minha convivência com R. Em Ficções, vou revelar a vocês outras coisas bem estranhas de R., um grande amigo meu da infância e adolescência.

O empirista inseguro


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