A mentira imanente (Cioran)

Viver significa: crer e esperar, mentir e mentir-se. Por isso a imagem mais verídica que já se criou do homem continua sendo a do Cavaleiro da Triste Figura, esse cavaleiro que se encontra mesmo no sábio mais realizado. O episódio penoso em torno da Cruz ou esse outro mais majestoso coroado pelo Nirvana participam da mesma irrealidade, ainda que se lhes tenha reconhecido uma qualidade simbólica que foi recusada depois às aventuras do pobre fidalgo. Nem todos os homens podem ter êxito: a fecundidade de suas mentiras varia… Tal engano triunfa: disso resulta uma religião, uma doutrina ou um mito – e uma multidão de fiéis; outro fracassa: não passa então de uma divagação, de uma teoria ou de uma ficção. Só as coisas inertes não acrescentam nada ao que são: uma pedra não mente: não interessa a ninguém – enquanto que a vida inventa sem cessar: a vida é o romance da matéria.

Pó apaixonado por fantasmas, tal é o homem: sua imagem absoluta, idealmente semelhante, encarnar-se-ia em um Dom Quixote visto por Ésquilo…

Breviário de Decomposição

Comendo e pensando

Acredito que tenha sido Schopenhauer quem, em certa feita, tenha dito que o ser humano é, ponto-a-ponto, semelhante a um animal (acho que ele mencionava a semelhança com a aranha): pesadamente preso à sua rotina e dominado pela “vontade” (no caso do ser humano, uma espécie de “disfarce” da natureza em imagens e desejos mentais).

Olhem este Koala (“nova sensação” de cliques no Youtube): comendo uma maça, “pensando” na vida. Nossa primeira tendência é “humanizar” a situação, atribuindo-lhe algum significado (ele come e “pensa”, medita…por exemplo: sobre a dificuldade da população koala em viver junto às grandes cidades, ou sobre a situação precária em que ele próprio se localiza – a julgar pelo lugar “improvisado” em que está…).

Poderíamos trocar a situação e colocar um humano em seu lugar: com uma garrafa de cerveja na mão, ficaria com o olhar perdido no ali e no aqui, sob sol forte e calor, refletindo sobre as escolhas não feitas, ou sobre a impertinência atual de escolhas feitas no passado (muitas destas escolhas, inclusive, sem qualquer ponderação à época, simplesmente tomadas no fluxo dos acontecimentos de então).

É “lógico” que essa descrição do Koala é antropomorfista. O animal simplesmente come. Ele está preso ao momento presente. Está preso à maça que agora come, sem, penso eu, qualquer indício antecipado e reflexivo de que logo virá outra maça, ou então de que continuará na luta selvagem (se bem que hoje nem tanto, considerando nossa “invasão” da natureza, com sua consequente humanização…) pela sobrevivência.

É isso que às vezes muita gente confunde: trata o simples movimentar do corpo (seja de um animal-koala ou um animal-humano) como uma ação intencional. Além das explicações dos etólogos, biólogos e Cia, o que nos diferencia dos animais é o fato de nossas ações serem intencionais e executadas no enquadre de razões e esquemas intelegíveis. Mas é verdade que, mesmo sendo um ser humano, suas ações podem estar destituídas de qualquer significado.

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Complemento extemporâneo:

Se pensarmos em muitos manuais de Comportamento Organizacional, logo notaremos a semelhança de raciocínio: se alguém, no trabalho, está com baixo rendimento ou cabisbaixo, logo se lhe atribuem desmotivação, insatisfação e outros gêneros subjetivos. É patética nossa necessidade de tentar interpretar situações que, às vezes, são absolutamente desprovidas de qualquer signficado, exceto, neste caso, que precisamos muitas vezes trabalhar sem qualquer outro “significado” que não o dinheiro (= a maça) no final do mês. É muito romantismo e prepotência achar que somos “radicalmente diferentes” ou “absurdamente iguais” a esse singelo Koala.

Complemento ao post anterior

Pois é. Mas você pode estar ficando com uma visão um tanto quanto “pessimista” deste blog. Isso não me incomoda, de forma alguma (Lacan = quando alguém diz “não”, leia-se o “inverso”…rs). Mas é o seguinte: de uma perspectiva “realista”, toda essa conversa do porquê das coisas, de sua utilidade, etc., é um engodo, uma perda de tempo, na melhor das hipóteses. Leia o livro “Caçando a realidade”, de M. Bunge. Fiquei (estou ficando, na verdade) chocado com a “força” do argumento realista. Em linhas estupidamente resumidas, é algo assim: a realidade existe, e isso independentemente de nós. Enquanto “alguns” (eu, por exemplo) ficam delirando sobre a utilidade das coisas, outros, engenheiros por exemplo, estão a desvendar os mistérios da natureza…”eles”, esses engenheiros ou cientistas destemidos, mesmo com suas mais árduas e pesadas dúvidas metafísicas, não hesitaram, tempos atrás, em trabalhar em prol da ciência – não fossem eles, eu não estaria aqui digitando isso a vocês (vai se saber o que está por detrás desse negócio de digitar e, imediatamente, meu texto aparecer…claro que os cientistas sabem explicar isso, e vão me chamar de ridículo). Enfim, há utilidade no mundo e ela, em grande parte, depende de a gente não questionar sua própria utilidade. É seguir em frente. Descobrir a cura para doenças; aumentar a memória do seu computador, com o menor custo; aumentar a performance das empresas…quem está do lado do “útil” jamais vai ficar perdendo seu tempo com uma metafísica do inútil. Pois é. É isso. A ciência é, OBVIAMENTE, ANTI-Bartleby (e eu, pior…eu, o “cínico”, também – quem não prefere um dentista a alguma magia oculta?… “te amo, ciência anti-bartleby!”…).

Bartleby

Suponho que você conheça a estória de Bartleby, o escrivão. Como se sabe, o tal é um personagem criado por Herman Melville. Na trama que leva seu nome, Bartleby: o escrivão, este limita-se a dizer, diante de qualquer pedido que lhe é feito, “Prefiro não o fazer”.

Enrique Vila-Matas, escritor espanhol, dedica um livro ao que ele denomina de “Síndrome Bartleby”. O livro se chama “Bartleby e companhia“. Acabei de lê-lo. Vila-Matas narra a história de diversos “autores do Não”, como ele diz: gente que escreveu um livro (ou vários) e, de repente, desaparece. Lembro-me, no contexto local, de ter ouvido algo do tipo com alguns de nossos autores, por exemplo, o de “Lavoura arcaica”. Enfim.

Uma coisa leva à outra, pensei em Cioran, o filósofo hiper-pessimista, se o posso, irresponsável e deliberadamente, o chamar assim. Aliás, Vila-Matas, claro, o cita, pois seria imperdoável em um inventário dos escritores do Não.

E Cioran, num de seus aforismos (não me lembro em qual livro dele…), diz que um dos grandes males de nosso tempo é a idéia de “ser útil”. Este blog, por exemplo: qual sua razão de ser que não a utilidade de compartilhar algo com o anônimo (e improvável) leitor? É preciso haver utilidade. Uma pessoa é julgada pela sua utilidade.

Acho essa idéia de utilidade algo completamente burguês. O burguês (eu, você – que, com certeza, se está lendo este blog, é um burguês), vale pelo quanto ele faz; vale por sua realização, por sua “performance” – como diríam os risíveis (entre os quais me incluo) psicólogos “organizacionais”.

Qual sua utilidade, distinguível leitor?

Cadelinhas em ação (1)


Tenho duas cadelinhas Pinscher, a Gabi (na foto), e a Bentha. Como todo fanático por animais, eu não poderia deixar de “exibir” minhas beldades caninas por aqui (e numa série…aguardem mais!). Bom domingo pós-1 de janeiro!

O buraco no peito

Tirinha do artista Dresden Codak (via blog de Alessandro Martins).

Não sou “marxista”, mas…

Não sou marxista, nunca fui e, honestamente, não sei o que significa ser um. Mas dia desses, ao navegar pela internet, fiquei com a impressão de que muita gente fala muita coisa sobre “pós-modernidade”, “sociedade do espetáculo”, “mundo veloz” e coisas do tipo como se não tivessem o menor contato com a vida “real”. Para falar a verdade, acho que, em grandes cidades, poucas pessoas têm contato com a vida “real”, o que lhes permite viver num aparente mundo-de-faz-de-conta. Lembro-me de uma vez ter lido um livro, creio que de Wanderley Codo, escrito na década de 1980, no qual ele discutia o porquê de as pessoas estarem, àquela época, se interessando cada vez mais por práticas de embelezamento corporal, especificamente sobre musculação, body building e coisas do gênero. Para Codo, em forte inspiração marxista, as pessoas, por não precisarem “usar” o corpo no trabalho – no sentido de trabalho corporal, braçal – tinham de fazê-lo em uma academia. O que, para um operário por exemplo, é intrínseco a seu próprio trabalho (“exercitar-se”, levantar sacos de cimento, pintar prédios, ficar o dia todo em um trabalho fisicamente extenuante etc….), para o indivíduo de escritório, a maioria em cidades organizadas em torno de serviços, o único “trabalho” sobre seu corpo ocorre na academia. Ali, além de “trabalhar sobre o corpo” – a palavra “trabalho”, nesse sentido, é até curiosa, pois não há efetivamente a produção de nada -, o indivíduo pode trabalhar sua imagem, melhor sua imagem, sua estética. Pois bem, a sensação que tive foi mais ou menos parecida: por que tanta gente escreve tanta coisa, fala sobre tanta coisa, sem nunca a ter vivenciado? Para mim, a resposta é simples: por que, privadas de um contato real, de fato empírico e experiencial, vivem em um tipo de simulacro de realidade, fantasiando, gastando horas e horas em perlaborações mentais puramente fictícias. Quer dizer, acho que a contrapartida de uma sociedade de serviços é uma situação na qual uma pequena parcela de pessoas (no caso do Brasil) fica, literalmente, divagando sem qualquer escrúpulo.


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