Fragmentos dispersos, 9

Vácuo de sentido. Não me recordo se foi Aristóteles quem disse que a natureza não suporta o vácuo, o nada. Aproveito-me da ideia. Quando seu trabalho não tem sentido, há um vácuo. E ele precisa ser preenchido. Alguns trabalhos são tão absurdos que não há, afetivamente, possibilidade de atribuir-lhes sentido. A menos que a pessoa se rebaixe ou racionalize. Invente histórias para si mesma. Mas não creio que isso dure muito. Outra possibilidade, diante do vácuo de sentido, é recorrer às drogas. Não por acaso, elas estão em contínua ascensão. Drogas que tornam o trabalho suportável ou que incrementam sua performance para atender ao frêmito de determinados setores ou ramos profissionais. Agora, pense na seguinte situação: um trabalhador que mal ganha o suficiente para sustentar sua família é obrigado, diariamente, a subir em torres de alta tensão — sozinho ou, no máximo, com um colega em terra firme. O tempo todo lidando com a altura e a eletricidade. Um corpo pendurado num cabo, frágil como uma pena num redemoinho. Suspenso. Pode-se até tentar atribuir sentido a isso (isto é, ressonância afetiva ou reconhecimento social). Mas tal esforço não resiste ao tempo, à repetição. Então ela aparece: a “pinguinha”, antes de subir. Estratégia para suportar. Drummond dizia que “todo mundo tem sua cachaça”. Pois é. Às vezes, literalmente.

O que é uma tese. Quem atua no mundo acadêmico precisa elaborar teses constantemente. Uma tese é, por vezes, uma marcha à ré: pensar algo de forma inversa ao que se acredita no cotidiano. Um exemplo disso foi uma pergunta feita por um psicanalista do trabalho, C. Dejours. Em vez de questionar “por que as pessoas adoecem no trabalho?”, ele inverteu a lógica: “Por que as pessoas não adoecem no trabalho (com tantas razões para isso)?” Et voilà. Dessa pergunta surgiu uma nova disciplina que investiga os efeitos da organização do trabalho sobre a saúde mental. Agora imagine, algumas décadas atrás, alguém formular a pergunta: “Fumar não estaria associado ao câncer de pulmão?” Hoje, isso soa banal. Mas, à época, a pergunta era disruptiva. Criava um corte, uma ruptura no conhecimento comum. Com o tempo, especialmente nas ciências humanas no Brasil, fomos ficando mais modestos. As perguntas passaram a se concentrar no como — por exemplo: “Como é ser mulher no trabalho?” Esse como reflete uma curiosidade sobre vivências. É o trunfo da fenomenologia, sem dúvida importante, pois o universal manifesta-se no singular. Porém, quando tal postura entra na engrenagem da indústria do saber (nossas universidades), carrega consigo um enfraquecimento do espírito. Ou uma resignação covarde. Ou, quem sabe, uma incrível chatice.

Perguntas sem resposta. Creio que foi Lacan quem sugeriu que o sujeito se estrutura em torno de uma pergunta. Uma inquietação que ele endereça ao Outro. Então, qual é a sua pergunta? Ela pode ser inconsciente. Talvez só se revele como vestígio, como metonímia, ou na forma de angústia, sofrimento, tédio, resignação ou ressentimento. Talvez, ao polir muito a prata, você comece a enxergar o metal. Sob camadas de oxidação, há uma penumbra que esconde o essencial, o valor genuíno. Boa parte do que ouvimos durante o dia é como essa camada escura sobre a prata. Toca você, mas não é o toque que gostaria de sentir. Há algo deturpado, turvo, opaco. Você espreita frestas e orifícios, tentando enxergar o que realmente se esconde atrás de cada véu. Alguns dizem que não há nada atrás de nada. Eu discordo. Achava, também, que tudo era apenas interpretação, versões possíveis. Não. Há uma pergunta. Disse recentemente aos meus alunos de pós-graduação: já pensaram se, num mundo ideal, sua tese fosse exatamente a consciência e a abertura para essa pergunta? Isso vale para a vida singular e, muito provavelmente, para qualquer fenômeno científico de interesse.


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