O jumentinho branco

Hoje, passando pela rua onde moro, vi um pequeno jumentinho branco atrelado a uma carroça. Isso é algo comum na paisagem da cidade. Quase sempre, fico atraído pelo animal. Gosto de observar sua expressão, que, em geral, transmite uma paciência inabalável. Hoje, ele estava ali, numa rua escura, parado, esperando seu dono buscar algo. Parado, calmo, passivo, obediente. Tão pequenininho, branco, numa rua escura, atrelado à carroça. Sabe-se lá de onde ele veio, sabe-se lá para onde vai. Pode ser perto, pode ser longe (mais provavelmente, longe).

Fico imaginando quando ele nasceu. Pelo que percebo, não é comum ver jumentos brancos pelas ruas. Mas esse jumentinho branco, quando nasceu, certamente chamou a atenção. E hoje, ao vê-lo na rua escura, não havia como não notar, nem como não se surpreender com o contraste: a rua escura, suja, esburacada, e o jumentinho branco, atrelado à carroça, passivo, obediente, resignado, com aquele olhar vazio, sem emoção, exceto pela aceitação do momento.

Logo me lembrei do jumentinho cinza-escuro e encardido do filme Balthazar, de Robert Bresson, sobre o qual já mencionei em outro post. Balthazar é o dócil animal que passa de dono em dono, de situação em situação, ora recebendo carinho e amor, ora (mais frequentemente) sofrendo ódio gratuito, agressão ou abandono. O ser humano faz quase nada, exceto usar o animal como instrumento, uma espécie de trator movido a sangue e músculo. O que podemos dizer sobre um humano que usa outro ser vivo como ferramenta? De certo modo, ele também se torna um objeto, tratando sua própria vida como um processo instrumental: pegar caixas, colocá-las na carroça, levar para um lugar X, despejá-las lá, cobrar por isso. E o ciclo se repete infinitamente, movido pela necessidade de sobrevivência.

Do ponto de vista moral e ético, sei que tratar um ser vivo como objeto só é possível porque um dos entes envolvidos domina o outro. O jumento não foi “criado” pela seleção natural com a “intenção” de ajudar o ser humano a transportar cargas. O uso pelo ser humano não é a razão de sua existência. Isso aconteceu porque, dotado de inteligência, o ser humano descobriu que o jumento é resistente, obediente, manso, passivo, resignado. Não exige grande treinamento, se é que exige algum. Basta mantê-lo preso, usar o chicote para “comunicar” direções e paradas, alimentá-lo e colocá-lo para trabalhar.

No filme de Bresson, Balthazar revela muito mais sobre os humanos que interagem com ele do que sobre si próprio. Não há como não traçar um paralelo entre Balthazar e a figura de Cristo. Imagine Cristo carregando a cruz, enfrentando seu calvário, sendo ridicularizado pelos passantes ou até açoitado. E, depois de toda a humilhação, sendo sacrificado na cruz. Nos evangelhos, não há vestígios de que Cristo estivesse com ódio das pessoas que o maltratavam, nem de autocomiseração ou ressentimento. É como se ele simplesmente tivesse de passar por aquilo. Para alguns, isso seria sinal de fraqueza, de ser um “cordeirinho” diante do mundo; para outros, é a expressão de uma coragem inabalável. Algo semelhante a Sócrates, que aceitou seu destino sem resistência. E a Balthazar, que, na foto que mencionei em outro post, aparece em seus últimos momentos de vida. Ele fora baleado porque seu “dono”, na ocasião, o usava para contrabandear mercadorias e foi interceptado pela polícia. Na imagem, Balthazar está cercado por cordeiros.

Alguém, como eu, passa e vê o jumentinho; ao vê-lo, pensa nas coisas que pensei. Outra pessoa poderia ver o carroceiro e enxergá-lo como um sobrevivente, catando os restos pela cidade para manter a si mesmo e à sua família vivos – vítima da exclusão social, econômica e política de um país à margem do capitalismo. Antigamente, quando essas duas interpretações surgiam em minha mente, eu me culpava por tê-las. Achava que deveria me concentrar apenas no carroceiro como objeto de minha inquietação, e mais, deveria atribuir a isso uma consciência política, acompanhada de uma força para “fazer algo”. Hoje, não sinto mais essa culpa. Hoje me deixo afetar pelo que posso ser afetado. Hoje tento não me culpar pelo que sinto. Somos muitos no Brasil; somos muitos aqui, nesta cidade onde vivo. Se cada um sentir algo, seja pela parte que for, isso já seria o mínimo necessário para mudarmos nossa visão de vida, do mundo, das pessoas e dos outros animais.


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