Desta vez gostaria de comentar um filme do diretor Abbas Kiarostami, conhecido pela trilogia Koker. Mas o filme em questão aqui é The wind will carry us.
Um grupo de amigos, que depois sabemos serem cineastas, vão até uma aldeia curda incrustrada no alto de uma planície para filmar um ritual local em torno da morte. O plot é simples assim. E “nada” ocorre em 118 minutos em que acompanhamos, quase que na mesma temporalidade do personagem, a estadia desses cineastas, em especial de um, Behzad. Exceto pura poesia.

Cena do filme The wind will carry us (1999)
A matéria do filme é o cotidiano: o transcorrer trivial da vida — nascer, alimentar-se, assear-se, trabalhar, morrer. E, claro, a presença majestosa da natureza. Uma natureza que, a julgar pelo comportamento dos habitantes do lugar, é parte intrínseca de sua percepção da vida. Isso chega a ser quase um incômodo para quem pensa pela lógica do sujeito-objeto, vendo o humano como algo apartado da natureza. Para essas pessoas, a morte é sempre um acontecimento assustador, como se estivesse à parte da vida, negando-a.
Por exemplo, Behzad, o personagem central (e único ator profissional no filme), sobe uma colina para pegar sinal de celular e, acidentalmente, encontra um fêmur humano em um cemitério improvisado. Ele pega o osso, compara-o com sua própria perna e, em seguida, coloca-o no painel do carro, como se fosse um objeto qualquer — um isqueiro ou um copo. Ninguém se chocou com isso. Nem ele. Mais adiante, o mesmo osso é jogado sobre um fio de água, próximo a um riacho onde cabras pastam. O osso, então, é levado pela correnteza, simbolizando a integração da morte com os vivos, numa harmonia que aparenta ser resignada, quase indiferente.
É evidente que não se trata de poetizar a penúria. Viver numa comunidade rural, como a retratada no filme, deve ser repleto de dificuldades. Não é um bucolismo burguês, tampouco uma visão romântica de alguém que observa de fora. Se refletirmos, nossas sociedades altamente tecnológicas, repletas de conforto e atalhos, também não escapam da mesma verdade final: a vida passa, a morte chega e, assim, o ciclo de reciclagem e renovação da vida continua. É um ciclo infinito, aparentemente sem propósito intrínseco. A diferença é que dispomos de subterfúgios, racionalizações, mediações e, como consequência, maior distanciamento — até mesmo uma ruptura — com a natureza e, por extensão, com a morte. Já não nascemos em casa; tampouco morremos lá. Nascemos e morremos em hospitais, onde os médicos são vistos como figuras apartadas de nós. Fetichizamos a ciência. Podemos até criticá-la, mas, no momento de desespero, na “hora H do dia D”, recorremos a ela como cordeiros assustados, em busca de milagres.
O filme, ao introduzir poesia no “deserto do real”, destaca o privilégio de estar vivo. Se o ciclo de nascimento, procriação e morte não possui propósito intrínseco, por outro lado, só os vivos podem contemplar a beleza da natureza. Nesse sentido, um dos melhores momentos do filme, para mim, ocorre quando Behzad encontra o médico da vila, que lhe dá carona em sua moto. Durante o diálogo, quando Behzad pergunta se “o outro mundo” — após a morte — não seria mais bonito, o médico, de maneira plácida e serena, responde: “Ninguém voltou de lá para nos dizer como é.” O que sabemos é que, ao fecharmos os olhos pela última vez, não haverá mais volta para cada um de nós, individualmente. Todas as maravilhas e belezas da natureza desaparecerão para nós. Essa é a verdadeira perda com a morte. Segundo o médico, a morte é muito pior que a pior das doenças.
Assim, ao longo de uma conversa casual entre duas pessoas numa moto, a “premissa” do filme se revela em forma de poesia. É surpreendente como verdades profundas são apresentadas com casualidade e até humor. Essas verdades são semeadas ao vento, voando, quem sabe, para germinar em algum outro lugar. Entre a vida e a morte, fica a ideia capturada por um conhecido ditado: “Melhor um pássaro na mão do que dois voando.” Na linguagem do médico, temos:
“Dizem que ela é linda como
uma huri do céu!
Mas eu digo…
que o suco da vinha é melhor.
Prefira o presente a
estas belas promessas.
Mesmo um tambor parece
melodioso à distância
Prefira o presente”

Cena do filme The wind will carry us (1999)