Mudança

1. Alguma vez você já ouviu alguém dizer que gostaria de mudar porque estava muito ‘feliz’? Imagine um grande pesquisador/cientista, ou profissional: ele está super-bem estabelecido na carreira – tem reconhecimento, bom salário, progresso (cumulativo), etc. Quer dizer, atende a todos os indicadores do que nossa cultura entende por ‘sucesso’. Você já o imaginou falando consigo mesmo em termos tais como: ‘Preciso mudar minha vida; não aguento mais. Quero fazer algo diferente”? Claro que, na avaliação do ‘sucesso’, contribuem fatores tanto objetivos como subjetivos. Mas há, inegavelmente, uma ‘canalização’ cultural que faria ter pouco sentido uma auto-reflexão como a ilustrada.

2. Mudamos quando algo não vai bem em nossa vida. Mudamos quando não vemos mais (ou muito) sentido no que fazemos. Mas, com tal afirmação eu, obviamente, estou excluindo o que alguns autores denominam de ‘imperativo da mudança’ – uma espécie de ideologia de época, algo que ouvimos em todos os meios institucionais e que, ao termo de tanta insistência, acabam sendo naturalizados. Segundo tal ideologia (ou discurso corrente), a mudança ‘é a regra’, a norma, o aspecto inquestionável de nossa época. Empresas mudam o tempo – são obrigadas a fazê-lo a fim de se manterem ‘vivas’. Pessoas mudam o tempo todo. É muito fácil ouvir coisas assim, ao ponto de eu não precisar ficar me detendo nisso aqui.

3. Muitas vezes, é claro, as pessoas mudam para que nada, simplesmente nada, mude. Exemplo: mudamos de cidade, de emprego, para, no fundo, ganhar um fôlego em relação a nossas questões existenciais centrais, aquelas que nos chamam para nosso próprio interior. Tais questões costumam ter uma gravidade maior do que as outras. Elas chamam para si grande parte de nossa atenção, e cuja não-superação nos leva ao conflito intrapsíquico (ou externo). Quando, por conta disso mesmo, nos esgotamos mentalmente, então podemos optar por mudar radicalmente aspectos periféricos de nossa existência. Com isso, ganhamos tempo. Ilustrando: você tem uma atividade A realizada numa localidade X; você pode continuar a realizar a atividade A, só que numa localidade Y. O tempo de adaptação à nova localidade pode lhe consumir alguma energia, deslocando-a do seu núcleo problemático anterior (quando exercia A em X). Mas, após o efeito adpatativo (e a menos que algo saia radicalmente do controle), você voltará à sua questão (neurótica) central. Daí a máxima ‘Mudar para que nada mude’, alterar o quadro, o cenário, para lhe desviar do ponto principal.

4. Mas a mudança pode ter algum apelo outro. Claro que há muita gente que simplesmente ‘odeia a mudança’. Exemplo: você tem a carreira A. Em que medida, em qual momento, você acha que o espectro, a amplitude, de tal ‘carreira A’ o levaria a algum tipo de exaustão? Digamos, chegar ao ponto de você dizer que não aguenta mais fazer A? Veja: não estamos num mundo fechado. Mesmo ‘dentro’ da carreira A você pode, digamos, atravessar fronteiras, expandir-se. O fato de ter havido, historicamente, um processo de segmentação e especialização do saber não implica em que sua vida deva se restringir a essa ‘gramática’ (até certo ponto, ok?!). A vida é mais do que uma profissão ou mesmo atividade (claro que, quando alguém está ‘satisfeito’, ele não enxerga nada mais: os limites / os horizontes de sua atividade confundem-se com o real ele próprio, isto é, com o campo do possível). Mas, independente desse fato (não vivermos num ‘mundo fechado’), você pode ter, fenomenologicamente, a sensação de que chegou ao LIMITE de A. Você não se vê mais se desenvolvendo nos domínios (ainda que expandidos) de A. Aqui você chega ao ponto de querer uma ‘mudança’. Esse seria o ‘apelo outro’ da mudança: a transferência em bloco para um campo distinto de experiências/vivências não contidas em A, com o intuito de alterar uma delimitação restritiva de sua ‘felicidade’ (independente do que esta última signifique na prática).

a. A mudança que você quer, neste ponto, pode, claro (sempre!), ser um signo hiper-generalizado que o impede de mudar dentro de A. Um signo generalizado, em geral de forte base afetiva, é uma representação vaga ou obtusa que representa, tentativamente, um amplo espectro de seu mundo afetivo-sensorial e empírico. Ele é, numa palavra, um ‘atalho’ cognitivo-afetivo. Ou seja, popularmente falando, uma ‘desculpa’.

b. Mas pode ser uma forma radical de transposição, uma maneira de, radicalmente, alterar o campo experiencial – alterar personagens, seu próprio lugar como ator, a relação entre papéis, e, claro, a base material em que a vida se desenrola. Como saber?

5. Portanto, neste ponto, chegamos a um tipo de embróglio. Mudar porque está ‘dando errado’? [Olha – ‘dar errado’ seria um mundo à parte para a discussão!]. E até que ponto a mudança de tipo vertical é necessária (por contraposição à mudança de tipo mais horizontal, isto é, incremental)?

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A. No rádio, esses dias eu ouvi (em um propaganda oficial, do governo) que a edução lhe dá ‘liberdade, autonomia’ de ser quem você quiser. Não se explicar, mas isso me encheu de ânimo – você poder mudar quando bem quiser, pois tem recursos internos para isso, isto é, será capaz de se adaptar a novos contextos. A educação conseguiria isso? Quer dizer, uma das consequências da educação seria tornar as pessoas altamente MALEÁVEIS para atingir seus desejos [outro ponto que abriria muito o leque de possibilidades de discussão: QUE desejo seria esse?]?

B. Em outro comercial (desta vez, na TV), ouvi que podemos, sempre, RECOMEÇAR DO ZERO, voltar ao princípio (qual seria – o de nossas escolhas principais, as quais nos trouxeram ao que somos hoje?) e fazermos tudo diferente. E que, em tal ‘gesto’, haveria alguma forma de dignidade, de ‘honra’, produndas. Bom, estariam tais propagandas (vamos esquecer por ora o fato de terem, sub-repticiamente, um objetivo oculto) redondamente enganadas? Podemos abrir mão de ‘tudo’ para RECOMEÇAR?

>> O que digo, neste ponto, é o seguinte: desconstruir, desestabilizar, é muito prazeiroso (mesmo que no sentido lacaniano de ‘gozo’ – sei lá, uma espécie de sintoma). A questão está em conseguir articular isso com uma verdade inquestionável: a irreversibilidade do tempo.

A última avó

O que podemos pensar da vida quando nossos avós morrem? Quando nasci, logo morreram três de meus avós – os dois por parte de mãe, e meu avô por parte de pai. A impressão que tenho é que, quando isso ocorre, você tem um pouco da sensação de que o círculo inferior a você está começando a se fechar. Nesse caso, de duas uma: ou o círculo final é você mesmo, sendo uma questão de tempo; ou você passa esse círculo da vida para frente, na forma de filhos e, depois, netos, bisnetos, etc. Em ambos os casos, todavia, você se sente, por fim, novamente ligado ao fluxo da vida – à ascendência e (se for o caso, não é o meu) à descendência.

Quando eu nasci, a vó Luiza (ou, para todo mundo que a conhecia, simplesmente “Dona Nenê”) já era velha. Neste, ela completaria 99 anos (nasceu no dia 03 de setembro de 1916). Perdeu o marido por volta dos 68 anos ou um pouco menos. Sempre viveu no sítio, e tinha um modo psíquico de funcionamento de pessoas que eu nunca mais tive a oportunidade de conhecer. Sóbria o tempo todo, mesmo no momento de sua morte. Nunca foi de hospital, e, claramente, era “o homem” da família. Com ela, aprendi não muita coisa – não porque ela não tivesse o que ensinar, muito pelo contrário; mas porque acabei “puxando” mais para outro ramo da família…

Lembranças, porém, tenho muitas. Por exemplo, quando eu era uma criança chegando aos 11 ou 12 anos, inventei que deveria “ensinar” minha avó a ler e escrever. Então, paciente, ela tentava aprender o que eu achava que “ensinava”. Sempre no mesmo lugar: no sofá da sala, aquele antigo sofá de couro desgastado onde ela, toda tarde, assistia à televisão. Naquela sala da infância, sempre calma, com um cheiro característico que não consigo mais descrever mas só lembrar, perto da cristaleira onde eu sempre teimava em burilar, ali eu abria os livros e cadernos e tentava fazer minha avó escrever. E ela tinha uma calma… me explicava, calmamente, “Fernando, a vó não sabe escrever, vamos parar com isso…”; e eu seguia…

Eu adorava a cozinha da casa de minha avó. Aquela cozinha, ainda hoje, me lembra uma espécie de fortaleza de simplicidade, ao mesmo tempo em que ordenada. Adorava ficar na cozinha fechada, com o fogão de lenha aceso, o vento batendo lá fora… Adorava a sopa de feijão de minha avó, onde ela colocava um ovo inteiro, às vezes recém-saído da galinha, para cozinhar… era uma sopa rala, com um pouco de macarrão, mas nunca mais eu comi algo daquele jeito. Ia à missa… talvez por conta dela e das amigas, todas senhoras muito católicas, eu tenha tido a vontade de ir para o seminário para ser padre. Ela ia todo sábado, e sentava-se no último banco. Dona Nenê era uma das pessoas mais discretas que já conheci na vida.

Ela era dura comigo, mas nunca, jamais, consegui sentir um remoto sinal de raiva de minha avó. Nunca. Ela foi minha segunda mãe, com quem eu passava praticamente a maior parte de meu tempo depois que voltava da escola. Minha infância teria sido um terror vazio sem ela. Por muito tempo eu só ficava na companhia de idosos, pois minha avó me ensinou a amá-los… nunca vou esquecer aquelas tardes em que eu ficava deitado, brincando, escutando minha avó e a Dorvalina, a “Matirde”, e tantas outras senhoras que adoravam, adoravam!, conversar…que prazer!

Pois hoje minha avó faleceu. Neste exato momento, ela está sendo sepultada lá no interior de São Paulo, de onde ela nunca saiu – exceto para ir à cidade, de onde trazia bolachas e a “compra do mês” que ela pegava com o dinheiro da aposentadoria. Ela ia de ônibus, com uma bolsa xadrez de couro. Uma pessoa independente, autônoma, sóbria, altiva, centrada, trabalhadora, uma pessoa que eu NUNCA ouvi reclamar, NUNCA ouvi desistir do que quer que fosse, por mais simples que, hoje, eu vejo que aquilo era. Eu espero que ela descanse em paz, que ela agradeça a Deus pela longa vida que levou, e eu quero agradecê-la por tudo o que ela deixou em mim (fisicamente, tenho certeza de que meu “narigão” vem da linha dos Nozella…E, nessa jornada que é a vida, tenho certeza de que NUNCA, nós que somos descendentes, conseguimos dar de volta o que recebemos. Eu, pelo menos, não aprendi isso, ou simplesmente não consigo fazer. Sei que poderia ter sido um neto melhor, sobretudo um neto mais próximo, mas nada disso apaga minha gratidão pela minha avó, que sempre estará na minha vida, nas minhas lembranças, nisso que sou.

Luiza Erotides Nozella Bendassolli, 03.09.16 – 06.06.2015

Uma brevíssima nota sobre a culpa

Por que sentimos culpa? Um primeiro motivo é porque, num determinado curso de ação, não fomos capazes de gerar um desfecho esperado. Sentimos culpa, nesse caso, porque imaginávamos que pudéssemos ter agido diferentemente. Um segundo motivo é porque uma determinada coisa aconteceu devido à nossa responsabilidade, ou então, inversamente, à nossa omissão (o que, na prática, dá no mesmo).

Em ambos os casos, a culpa está relacionada ao ‘eu’, mais precisamente, a certa onipotência desse eu. Pois a culpa surge do sentimento de que ou o eu deveria ter agido de um modo diferente, ou simplesmente não ter agido, isto é, não ter feito o que fez.

Muitas vezes, o que mais deseja o culpado é voltar atrás. Ele deseja, em sua imaginação, ser capaz de reverter a passagem do tempo. Ele deseja voltar no tempo nos instantes que precedem o acontecimento pelo qual se sente responsável. Não aceita, no fundo, que o acontecimento seja irreversível. Aliás, é precisamente essa irreversibilidade que paralisa e, por assim dizer, congela a alma culpada. E, da culpa, nasce o desejo de reparação ou de expiação.

Mas o que flagela o culpado é a singularidade do fato causador. Tal fato, mesmo que fosse reparado, não seria apagado. Existe uma radicalidade ‘realista’ na culpa, quando, é claro, ela derive de uma ação feita ou de uma omissão (neste caso, trata-se de ação da mesma forma, embora passiva, pois algo, efetivamente, acontece, mesmo que – ou graças – às expensas do sujeito). Não é possível reverter, não é possível colocar um fato Y no lugar de um fato X. Não vai ser da mesma forma, jamais.

O culpado recebe uma espécie de ‘estigma’. A marca do que fez sempre continuará em suas mãos, mesmo que cicatrize.

Acredito que um dos mais poderosos, senão o único, remédio para a culpa é o esquecimento, embora ele não ocorra da mesma forma para quem é o culpado e para quem foi objeto da ação desse culpado. Mas, sem o esquecimento, nem um nem o outro conseguirão seguir adiante.

Além (ou aquém) da linguagem

Uma vez eu já tinha pensado sobre isso, mas, agora, esse pensamento ganhou outros contornos. Pensei uma vez que o símbolo, ou o simbolismo, ou a linguagem e tudo o que dela deriva, poderiam ser, em alguma medida, um imenso engodo.

Por algo que me aconteceu hoje, e por algum motivo, voltei a pensar nisso. Só que num turbilhão mental caótico. Voltei a pensar, e, de certo modo, a sentir, que nossas construções linguísticas, embora a essência do que nos definem como humanos, podem ser um imenso, brutal, decisivo, erro, engano.

Eu sei que a linguagem, base de qualquer conhecimento, é o que nos permite agir sobre esse mundo, comportamentalmente. É nossa principal ferramenta de sobrevivência. Mas ela gera, à nossa frente, uma redoma de fantasias, imaginação, perversidade, surrealismo, e mentira.

Não, não estamos seguros no reino da linguagem. Ao mesmo tempo, verdade cruelmente paradoxal, é nossa única morada, nosso único retorno. Haveria pensamento sem linguagem? Haveria pensamento sem linguagem? Não conheço nada de neuropsicologia, mas, no meu conhecimento raso e infantil, o pensamento é mais do que linguagem, e talvez aí resida nossa última esperança.

Pois somos serezinhos que precisamos ir trabalhar para pegar o dinheiro, comer e se proteger. Somos serezinhos que, conforme a quantidade desse dinheiro, vamos escravizando outras pessoas (ou sendo por elas, disfarçadamente, escravizados), e vamos nos chafurdando nessa lama chamada cultura, mundo simbólico, mundo imaginário.

Tudo isso é uma tremenda bobagem. Tudo isso, embora necessário (não temos para onde fugir), é uma escatológica mentira. Não adianta gritar, não adianta ficar esperando Deus emitir algum sinal, não adianta nada disso. Há, apesar de nosso conhecimento científico, um automatismo nas leis que regem esse mundo e os corpos vivos aqui presentes. Essas leis, por mais que os cretinos dos pós-modernistas digam que não, são leis necessárias, leis que eles, na sua pretensa sabedoria de “domadores do discurso”, ignoram, ou, pior, temem – e temem de um jeito que nem eles saberiam dizer.

Diante do grito, diante do grito infantil (que seja!), “Não morra”, não há nada o que fazer. Depois de um certo ponto, não há retorno. Depois de um certo ponto, cessa o simbólico; este deixa de dizer algo, este deixa de existir. Depois de certo ponto, só existe uma coisa: um ser imbecil, dotado de linguagem, tentando, por vezes com conversinha auto-enganatória sofisticada, dar conta do que não é possível dar conta, exceto esquecer.

Nesse sentido, assumo minha parte de culpa: na psicologia, sobretudo na psicologia com pé no simbólico, contribuímos para criar nossos próprios falsos problemas. A vida é simples; ela se reduz a poucas leis – das quais temos imenso conhecimento, é fato, mas nem por isso deixam de ser ‘menos leis’ e menos indiferentes à nossa provisória existência.

Aos românticos, meu abraço – vocês sabem sonhar e se auto-enganar!

Fate

If you decide to try raising a baby bird yourself, here’s what you’re in for: nestling must be fed every 14-­20 minutes from sunrise to sunset – an adult robin makes about 400 trips every day to feed its young. If the nestling is a few days old, it will take several weeks before it can be released. Adult birds teach their young where to look for food and how to avoid predators – things impossible for humans to do. You will need to provide a proper diet, clean suitable living quarters, and fresh water every day. Still, despite your best efforts, most hand-raised birds will die. This is the fate of most young birds in the natural world, where 90-95% perish before they’re old enough to breed themselves.

[fonte]

Investir no mundo

Admito que, muitas vezes, neste blog, acabo sendo solipsista. Como sujeito histórico (portanto, em parte, isso que vou falar não depende de minha única constituição particular, interior), sou um sujeito com um projeto de eu. Em outras palavras, meu eu é uma questão recorrente para mim, pois me penso como indivíduo.Como sujeito histórico, vivo em uma cultura e numa subjetividade ‘individualista’ (a palavra não é das melhores, mas, em seu sentido antropológico, tem lá seu valor). Não haveria de ser diferente eu pensar em mim, nos meus projetos, nas minhas metas e objetivos, no meu prazer e satisfação, e assim por diante.

Isso para dizer que, em grande medida, escrevo aqui para mim mesmo. E, nesse escrever, reflito sobre temas solipsistas, temas que, alusivamente, eu associaria aos temas que, no século dezenove, se veio a conhecer como ‘literatura de coração’, uma literatura burguesa, vitoriana, voltada às classes médias em ascenção ou mesmo a certa aristocracia em mudança. Uma literatura especular, voltada ao serviço de refletir os novos valores e temores de uma classe/geração para ela mesma. Solipsismo de classe, digamos.

Como sujeito histórico, e isso vai soar como uma contradição, não conheço a história. E, por não conhecê-la, certamente a repito como farsa – ao menos, em alguma medida. Não conhecer a história, como um amigo disse esses dias, é o primeiro passo (senão a base) para a auto-promoção, ou, o que é pior (ou dá no mesmo), para um giro de 360 graus em torno de si mesmo. Solipsismo. Não conhecer a história nos joga na grande massa dos facilmente manipulados, em geral, pelo consumo (pois não há nada mais doce e sedutor do que essa forma de manipulação, ao menos na modernidade ocidental).

Tudo isso também para discutir um tema. Um tema que, no meu vago conhecimento de algumas personagens filosóficas, foi um tema Schopenhauer-Nietzsche. O tema do ‘investimento no mundo’. O que nos move a investir no mundo, em vez de, por exemplo, ficar na cama dormindo, ou, pior, ficar no mencionado giro de 360 graus, anti-produtivo, meramente especular (a própria imagem refletida no espelho centenas e centenas de vezes, não levando a nada – pelo menos não no curto prazo e no plano objetivo)? Como ‘sair de si’, deixar o solipsismo?

Schopenhauer, e vou fazer aqui uma mega-simplificação, talvez pudesse dizer que não vale a pena investirmos no mundo porque, independente do que fizermos, vamos sentir dor, vamos fracassar, vamos morrer. Além disso, não haveria, nesse mundo, uma utopia tão forte ao ponto de nos movermos, coletivamente (!) para alcançá-la, com promessas de vida melhor e digna para todos (ideia [romântica ou idealista?] de ‘humanidade’). Não haveria, ao nível ontológico, qualquer diferença entre pegar o ônibus de manhã para ir trabalhar para trazer comida para casa e o movimento cego, cansativo, de um passarinho fazendo muitas vezes um mesmo trajeto diário para trazer comida a seus filhotes (atenção: voltarei a isso, e então você vai entender).

Nietzsche, de cuja filosofia conheço menos que a do seu ‘inspirateur‘, em contrario, disse que deveríamos investir no mundo como forma de dar seguimento à nossa ‘vontade de poder’, ou simplesmente à nossa potência. Gente como Schopenhauer, diria (ou realmente disse) Nietzsche, é ‘negadora da vida’. Recua ante à afirmação da potência de viver. A questão, e aí as pernas não me ajudam, é em que base Nietzsche coloca a potência. Potência de quê, para quê? Para Schopenhauer, a vontade (potência?) era cega. Não visa nada, exceto manter-se – sendo, pois, uma poderosa força de conservação.

Seja como for, eis que chegamos a um ponto importante, relativo, no plano ético-moral, ao porquê da ação. Ao porquê dos projetos que colocamos sobre o mundo. Num ‘horizonte hermenêutico’ iluminista, investimos (como humanidade) em algo porque queremos transformar esse mundo num lugar melhor, mais ‘avançado’ (em todos os sentidos contidos na ideia de ‘progresso’ da razão): para nós, para nossos filhos. Depois de muita decantação histórica, hoje chegamos a uma situação em que responder a isso leva-nos a coisas como: ah, porque preciso sobreviver (por que se trabalha); por que quero ajudar as outras pessoas; porque não há vida após a morte e, então, precisamos aprimorar um projeto imanente, inclusivo, bom para todos (ou que maximize a utilidade para o maior número possível); ou porque existe um outro mundo, e este é nossa ‘responsabilidade’ – precisamos fazer as coisas bem aqui porque Deus nos deixou esse mundo para que dele cuidássemos, co-participando, assim, da construção/manutenção da obra que Ele iniciou; … .

O fato é que, por vezes, mais do que me perguntar, qua adolescente, ‘quem sou eu e para onde vou’ (traduzindo: em que vou investir, o que vou fazer), eu me pergunto sobre o que gira a roda… Olhando as pessoas ao meu redor, todos parecem sugerir que possuem a mínima ideia de para onde estão indo, do porquê estão fazendo o que estão fazendo – por que um vendedor de remédios vende remédio; por que um pequeno comerciante pensa em expandir seus negócios, contraindo dívidas bancárias; por que um aluno senta no banco de uma universidade até o término de seu curso (para se formar e ‘sair para o mundo’); por que sentar e escrever um artigo, tendo antes saído à rua com seu ‘time’ para coletar/produzir/co-produzir dados, etc.

***

O comentário sobre a ‘mãe-pássaro’ não foi à toda. Estava hoje voltando para casa, e, sem querer, vimos um filhote de pardal, recém-nascido, caído no chão. Perdeu seu ninho (ou foi jogado fora dele por um irmão mais forte, reduzindo as ‘bocas’ e, consequentemente, aumentando a parte da ‘ração’ diária). Certamente morreria.

Aí você pensa: é a ‘lei’ da natureza, não podemos fazer nada. Para piorar, o coitado era um ‘pardal’, e pardais saem aos ladrões em grande quantidade. Se ainda por cima fosse um pássaro ‘nobre’. Então, qual o valor daquela vida? Uma vida invisível, como, aliás, é a vida de milhões de pessoas, trabalhadores em pequenos trabalhos, invisíveis, despossuídos de ideologia, organização ou, simplesmente, de vontade de mudar alguma coisa. Um batalhão que, embora façam parte da mesma matéria de um ‘ser genérico’ (que trabalha) como nós, são muitas vezes tratados como se não ‘valessem nada’ (diz o ‘patrão’: ah, qualquer coisa, arruma outro fácil!).

Então, voltando ao caso do pássaro: levar para casa, cuidar dele, ou deixá-lo entregue à própria sorte? Por que ‘investir’ (no puro e exclusivo sentido psíquico) nele, se seu futuro é incerto, e, na melhor das hipóteses, é ‘só mais uma vida’ de pardal, perdida entre milhares e milhares deles?

Foi aí que, por algum motivo, um motivo que perpassa isso que escrevo, resolvi intervir. Pesquisei sobre o assunto. E estamos tentando mantê-lo vivo, até que, enfim (e se) ele possa ser ‘libertado’ e possa voar. Mas, no contato com a situação, uma sensação estranha: já pensou nas quantidades de viagens diárias da ‘responsável’ por esse pássaro? Li que eles se alimentam a cada 20 ou 30 minutos. E foi daqui, desse fato, que, em retrospectiva, me mobilizei a escrever isto (portanto, só vai fazer sentido o começo pelo final). O ‘trabalho’ cego, a ‘dedicação’ cega do pássaro-provedor … em nome de, simplesmente, colocar mais um pardal na natureza. Genuinamente, um trabalho. Genuinamente, um investimento no mundo, em sentido puramente instintivo, que seja, mas é. A pura reprodução do non-sense, ou do trabalho de Sísifo, uma roda da vida mantida pelo peso dela mesma, por sua própria inércia. Como humano, vendo a situação neste momento, é um tanto quanto ‘a-linguística’. A vida, por si só, humana ou não-humana, parece ser uma ‘coisa em si’ que se basta e se justifica por ela mesma.

Talvez seja um começo, para mim mesmo, de sair do solipsismo, de investir no mundo. O exemplo, repito, é ínfimo, mas é um indício. Termino com um trecho de um poema de Bertolt Brecht, que me caiu nas mãos hoje tão inesperada e caoticamente quanto o pequeno filhote-pássaro.

Se uma criança surge diante de um carro, puxam-na para uma calçada. Não o homem bom, a quem erguem monumentos, faz isso. Qualquer um retira a criança da frente do carro. Mas aqui muitos estão sob o carro, e muitos passam e nada fazem. Seria porque são tantos os que sofrem? Não se deve mais ajudá-los, por serem tantos? Ajudam-nos menos. Também os bons passam, e continuam sendo tão bons como eram antes de passarem.

[A esperança do mundo, B. Brech]

Futuro

vg1

Campo de trigo com corvos (1890),V. Van Gogh.

Lançamento

Nesta semana, finalmente foi concluída a produção do Dicionário de Psicologia do Trabalho e das Organizações, uma obra em que Jairo e eu estivemos envolvidos desde 2010. Acho que será uma importante contribuição para área da POT em nosso país.

Os interessados podem adquirir, por enquanto, clicando na figura abaixo.

Prefiro ouvir a falar (#46)

Duas músicas (da soundtrack de Boyhood [Family of the Year, Hero] e All is lost [Alex Ebert, Amen], respectivamente) que dizem muito sobre alguns sonhos da América que parecem … decadentes?

O limite

Quando sabemos que chegamos a nosso limite, ao limite daquilo que almejamos nos tornar (supondo que, nada mais nada menos, queiramos nos tornar os melhores ‘do mundo’ no que fazemos?). Em que momento sabemos que é hora de desistir?

Algumas dessas questão são colocadas em Whiplash (ver filme abaixo).

O argumento não é novo, mesmo no caso da arte. A discussão sobre os limites da obsessão por se tornar o melhor atravessa a arte, da literatura ao cinema (no caso da primeira, ocorre-me agora o livro “O náufrago”, de Thomas Bernhard).

Em Whiplash ( literalmente, “chicotada”) um jovem estudante de uma das “melhores escolas de música dos EUA” encontra-se às voltas com um professor linha-dura, do tipo daqueles instrutores impiedosos do exército, que a todo instante o pressiona e o “humilha” (uso entre aspas pois, no mundo politicamente-correto que vivemos, um professor, quando quer extrair o melhor de seus alunos, é chamado assim, como quem humilha os alunos – claro, há exceções, mas não estou falando delas) pelo direito de poder tocar na bateria da banda de jazz da escola.

Embora o filme tenha muitos lapsos, o fato é que ele lida com aspectos simplesmente fundamentais de nossa relação com nossos desejos e com sua possibilidade de realização, para não falar da própria relação ensino-aprendizagem e a busca pelo sublime, pelo perfeito, pelo milimetricamente exato, preciso, sintonizado (o professor em questão, apenas após alguns toques dos instrumentos pelos músicos, já sabia se estavam ou não sintonizados).

Até que ponto somos, enfim, capazes de sustentar nosso desejo? Bom, a pergunta já foi indecentemente explorada por muita gente, psicanálise à frente. No contexto do filme, que não poderia ser melhor (o da música), há, mesmo num gênero conhecido pelo improviso (o jazz), um ‘produto’ tangível decorrente do que os músicos fazem – um produto (a música) que pode ser avaliado, pode ser contrastado com algum critério de valor (no caso do professor-linha-dura, um critério beirando à perfeição). Quer dizer, mesmo que tenhamos “subjetivismos” aqui e ali, fato é que podemos distinguir um “bom” músico de um músico mediano ou simplesmente medíocre.

Nas artes, nossa relação com o belo, com a perfeição, com o ajuste fino, irreparável, entre corpo e mente, entre corpo e instrumento, entre corpo/instrumento e os demais membros/instrumentos (de uma banda, como é o caso do filme), é muito mais facilmente discernível do que em campos menos propícios à geração de ‘produtos tangíveis’.

Não se trata, penso, de sustentar ‘psiquicamente’ nosso desejo, mas, antes de mais nada, de colocá-lo em ação em termos de desempenho. Até que ponto, porém, vai a perseverança, a resiliência, a capacidade de resistir às frustrações e continuar? Basta, como no filme, a pessoa ensaiar, praticar, estudar, até o limite da exaustação e do prejuízo físico (o jovem músico tinha, nos momentos em que ensaiava, sangue nas mãos)? Treinar horas a fio, dias, meses, anos, é ‘garantia’ de que seremos (como queria o jovem personagem, como todo adolescente?) “os melhores do mundo em nossas áreas de especialidade”?

Claro que não basta, aqui, jogar a dívida na conta do talento. O talento depende de disciplina, pelo menos parece assim ser em muitas áreas (mesmo para os gênios). Porém, quantas pessoas, em todo esse mundo, talvez nesse exato momento, estão treinando, obstinadamente, para se tornarem os melhores, se superarem? No caso brasileiro, para dar um exemplo, pense-se no exército de pequenos jogadores, ávidos para superar os times de vársea e chegar a alguma divisão minimamente respeitável do futebol (claro, sempre visando se tornarem grandes ‘craques’, como os ídolos de plantão…). Quantos chegarão no topo? Pouquíssimos, e não se trata apenas de oportunidade (embora, claro, se houver, melhor!), nem tampouco de apenas sorte, nem de treinamento exaustivo. É preciso algum ingrediente a mais.

O filme dá a entender que tal ingrediente pode ser encontrado do lado do próprio indivíduo, de sua obstinação, motivação. Subrepticiamente, a mensagem é: o mundo vai lhe dar muita porrada, vai lhe jogar lama na cara e vai dificultar, muito, sua vida. Só nesse momento, um exército vai morrer na praia. Não vão aguentar a carga, ou, como inclusive ocorre no filme, vão até algum advogado e tentam processar o professor (no caso) pelo “assédio” e pelo método pouco “educativo” do professor (que, de fato, perde o emprego de instrutor por conta disso). Recorrer à justiça, embora devidamente plausível e, em muitos casos, realmente necessário, é, de novo neste filme, sugerido como algo para os “fracos”. Essa mensagem, evidentemente, dá muita dor de cabeça para muita gente. Joga-se a criança e água fora, nesta questão. Humilhou, processo nele! Porém, e se houver algo mais profundo, algo mais visceral, algo mais próximo do “real” (no sentido filosófico ‘realista’) nisso tudo, e se, de fato, como diz o professor quando encontra seu ex-aluno num bar, for essa, precisamente essa, a causa do fracasso que a música vivencia hoje em dia (ele dá o exemplo do jazz, mas, óbvio, a generalização pode ser facilmente feita aqui)? O que separa o exército que morre na praia, que racionaliza (“ah, isso não era para mim, mudei de área…”), se entrega, do pequeno número dos que prosseguem? Volto à pergunta: treino, perseverança, ousadia, acreditar em si mesmo, talento?

Arriscar. Talvez seja isso. Pena que o filme não explora os dilemas do personagem, nem as contradições envolvidas nesse jogo de ser o melhor, de fracassar, de desistir, ou de seguir adiante. Neste ponto, o filme, a meu ver, perde densidade, fica rarefeito. Mas o objetivo desse meu post não é fazer uma crítica profissional do filme (de críticos ‘profissionais’ há muito por aí e você pode facilmente achá-los).

Meu ponto é outro, justamente esse de questionar em que medida nos separamos da mediocridade. A mim, um diagnóstico parece acertado deste filme (embora por razões diferentes das apresentadas): um amolecimento generalizado, a começar nas escolas, desde os “jardins da infância” (ou sei lá o nome dado hoje a essa etapa da alfabetização) até, sobretudo, à universidade, tem distorcido muita coisa. Para começar, muitos de nós não somos mais capazes de nos confrontar conosco mesmos e com nossos próprios ideais. Em algum nível, talvez seja porque temos medo de encontrar algo de que não queremos ter notícia. Dentro de nós! Algo que nos diz que, “…ah, puxa, a vida é assim mesmo, para que sonhar tão alto? Isso é para os adolescentes…eu prefiro o pé-no-chão, o feijão-com-arroz do meu emprego e da minha vida atual…isso é que é ser adulto…”. E vamos nos levando com racionalizações “verdadeiras”. Depois, esse amolecimento, como o próprio nome diz, está nos levando, sobretudo a nossos jovens, à perniciosa ideia de que não é preciso se esforçar para conseguir as coisas. Quando muito, algum esforço calculado, pois, novamente como defesa ou sei lá o que, a gente cria a ideia de que “…ah, como estou trabalhando, como estou estressado…preciso relaxar…”. Não é paradoxal que cada vez mais cresça a tal geração “nem-nem”: nem trabalho, nem estudo? Seria só por falta de oportunidades, de um capitalismo selvagem que engole a todos, sem dó nem piedade, pois só o que importa é o seleto grupo dos melhores? E, nessa mesma direção, vemos novamente a criança ir embora com a água, ao dizer que é o “capitalismo” que implanta na nossa cabeça a ideia de que temos de nos superar e sermos os melhores…sim, o capitalismo (deve ser o capitalismo que faz com que músicos queiram atingir o sublime e a perfeição…sim, o capitalismo). Irrita-me essa lama de bobagens.

(…)

Mas, para não me alongar mais, pois teria de mostrar e fundar minha ‘indignação’, e para não parecer superficial, encerro à francesa: recomendo o filme. Afinal, é bem melhor ver esse clima de “exército” tendo, como pano de fundo, o jazz, do que aqueles filmes com recrutas descerebralizados… Melhor filme do ano para mim!


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