As coisas, as pessoas

As coisas não nos pertencem. À primeira vista, isso poderia soar juridicamente questionável: eu comprei minha casa, ela é minha; comprei uma bicicleta, e ela é minha. O Estado, a polícia (sua maior força física), todo o ordenamento legal atrela uma propriedade a meu nome, à minha pessoa, desde que eu prove que a adquiri licitamente: por meio de meu dinheiro (que, por sua vez, ou é proveniente de alguma renda, propriedade ou, caso mais comum, do meu trabalho). Trabalho, aliás, já foi associado a propriedade (Locke) – isto é, a posse de uma propriedade é estabelecida com base no trabalho sobre ela (no passado, a terra).

Mas há uma ‘corrente’, vamos dizer assim, que afirma que as coisas, exceto, quando muito, nosso próprio corpo, não nos pertencem “at all”. Em geral, vemos isso em algumas doutrinas religiosas. Para o cristianismo, por exemplo, os bens materais são ‘deste mundo’; não podem ser levados ao ‘outro mundo’. De fato, quando morremos, não ‘levamos’ (interessante esse verbo nesse contexto, não?) absolutamente nada. Por um fato simples: pelo fato de que cessamos de existir no exato momento em que morremos, sendo nossas ‘coisas’ (propriedades) transmitidas a quem nos sucedem pelo laço do nome/sobrenome (e pelo ordenamento jurídico).

Em algumas passagens da obra de Schopenhauer este diz, com outro linguajar evidentemente, que a única coisa que ‘nos’ pertence é nosso próprio corpo. Nisso, há certo acordo jurídico: nosso corpo é nosso ‘bem’ indiscutivelmente inalienável. Claro que, em muitos sentidos, nosso corpo é também um corpo social. Por exemplo, quando alguém é condenado pela justiça, o Estado é legalmente (consentimento) autorizado a tomar nosso corpo e prendê-lo por anos. Em alguns países, o Estado vai mais além, sendo autorizado a matar uma pessoa. Isso mostra, no extremo, que nosso próprio corpo, nossa última e mais mediata forma de relação com o mundo, também não nos pertence.

Esse preâmbulo para dizer de uma experiência pessoal, se é que posso chamar assim. Aconteceu ontem. Há semanas decidi vender meu carro. Eu o comprei em janeiro de 2006. Esteve comigo, portanto, por 9 anos. Em geral, fui indisplicente em relação a ele: fazia manutenções mínimas (nesses últimos anos, pelo menos0. Resultado: acabou se depreciando, tanto econômica como materialmente (dá no mesmo, certo?). Pois achei um comprador. Por certa insegurança congênita, coloquei um preço abaixo do valor médio do mercado (na concessionária, me dariam algo ainda mais irrisório, para não dizer imoral). Achei o comprador. Este se interessou. Aparentemente, se empolgou, se ‘apaixonou’ pelo carro (a mulher dele, na verdade). E começa a negociação. E, à medida que as coisas iam se decidindo, a hora de se separar do carro chegava. Ao chegar, eu simplesmente entrei num estado de espírito que beirava o luto. Como explicar isso? Seria eu um materialista, um ser desprezível pelo fato de ter se apegado afetivamente a um objeto ‘que não me pertence’ (num sentido metafísico ou espiritual exdrúxulo qualquer?).

Mesmo após ter recebido o valor da transação (não sem certo stress, assunto para outro momento: a desgraça que é o tal do ‘jeitinho brasileiro’), eu ainda me sentia ‘dono’ do carro. Ao ver as pessoas ‘levando-o embora de mim’, não consegui (ainda não estou conseguindo!) perceber que ele não me pertencia mais. Ele já não era mais ‘parte de mim’. Contra qualquer bom senso, ou racionalidade, senti-me simbolicamente violentado. Durante as negociações, um profundo mal-estar, um profundo descontentamento… a vontade de fugir. Mas me faltou coragem (ou me sobrou racionalidade, neste ponto) de desistir da venda. Eu sabia que a permanência do carro era já inviável para nós em nosso cotidiano.

Como explicar tal apego a uma ‘coisa’, inclusive uma coisa em relação à qual eu próprio não dispendia tanta atenção? Por que a ‘coisa’ só se torna signo de uma ‘perda’ no momento em que ela ‘vai embora’ (o uso de ‘ela’ já é sintomático, não?)?

Fico pensando em como transformar essa experiência pessoal em algo compartilhável. Afinal, estou escrevendo isso em meu blog, onde todos podem ler. Um blog, e o meu em particular (segundo o que acredito), diferentemente de um Facebook, por exemplo, só tem valor se transcender a mera experiência individual, a picuínha de uma vida banal (e falo isso sem qualquer desprezo ou ironia). Então, como posso vir aqui, escrever sobre essa experiência surreal, e, ainda assim, comunicar algo a partir dela e que não diga mais apenas respeito a mim?

Aí vai minha tentativa…

1) As coisas, ao contrário de certo pensamento marxiano vulgar, não são um ‘fetiche’, necessariamente. As coisas, objetos materiais, são suporte, são um veículo, de processos psíquicos: tanto por projeção quanto, sobretudo, como ‘objetos transicionais’ (Winnicott). Eles estão à nossa disposição para nos ajudar a materializar, digamos assim, algo que de outra forma seriam apenas sombras de nosso eu, projetadas em uma tela tão irreal quanto imaterial;

2) Meu antigo carro concentrou, em si, uma grande quantidade do que hoje eu só tenho como memória: lugares em que passei; conversas que tive em seu interior, enquanto dirigia; uma vida que foi se construindo (eu o comprei exatamente numa transição importante de vida, a qual lançou as bases para meu estágio atual de vida…e no qual estou até agora…hora de mudar?); e, sobretudo, nos bancos de trás dele, enquanto minha esposa dirigia, minha cachorrinha (a primeira ‘minha’) morreu, nos meus braços.

Faz exato um ano que minha cachorrinha morreu. Ela morreu dia 25 de janeiro de 2014, por volta das 13h00, no meu antigo carro, em seu banco de trás, quando íamos correndo, desesperados, para o veterinário. E ontem, dia 24, meu carro, digo, meu antigo carro, deixa a garagem da minha casa, com dois estranhos dentro, que o compraram legalmente (por um valor abaixo do mercado, conforme eu já disse e cujo erro admito), indo embora para sempre, indo servir de objeto transicional a outras pessoas… Ele certamente será últil a outras pessoas, e será, talvez no futuro, se estas pessoas que o compraram não forem insensíveis em relação às ‘coisas’ que os cercam, parte da lembrança delas.

3) As coisas são parte de nossa memória, de nossa vida, de nossa história. Não se trata, avanço logo a me ‘defender’, de um ‘fetiche da mercadoria’, quando esta inverte o jogo e domina o homem, que deveria, sempre, ser sujeito. Não se trata disso, em definitivo (o marxismo, e todo marxista que já conheci, não parecem ligar muito para afetos, são mais racionais e ‘iluministas’ do que possam pensar). No meu caso, meu carro não era só uma questão de ‘status’ (uso das coisas ‘objetivas’ para afirmar uma posição social subjetiva), mas, agora que não o tenho mais, de memórias.

Por que, afinal, servem os museus? Ora, não teríamos nós, ainda que de modo imaginário, nossos próprios museus, com nossos objetos significativos?

Pois, pela primeira vez em uma simples transação comercial (negociação de coisas entre ‘pessoas físicas’ – CPFs), tive a sensação de que tiraram uma parte de mim. Quero dizer, eu mesmo, racionalmente, tirei essa parte de mim. Pois, no jogo das negociações, nas compras-e-vendas, o que impera são pessoas sem alma, seres de quem esperamos apenas o dinheiro pelo que julgamos valer nossos objetos. Com a saída de meu antigo carro da minha zona de vida, algo paradoxalmente parece ter mudado; aquele motivo que estava subjacente à sua compra agora perdeu-se ou precisa ser atualizado. Indo mais longe: a venda de meu carro me mostrou, por incrível que pareça, a passagem indelével do tempo, e todas as perdas que seu transcurso traz.

Admiro esses homens que vivem suas vidas de um modo tão prático e industrioso que não precisam, nem de longe, passar por isso que narro aqui – e que, se lessem isso que escrevo, sequer entenderiam. De duas, uma: ou são tão ‘coisas’ como as coisas que transacionam, ou são seres práticos/pragmáticos que, como milhares de nossos ancentrais, nos trouxeram nessa situação de merda que vivemos hoje. De todo modo, me sinto um estranho completo, mas não tímido o suficiente para deixar de registrar isso aqui.

***

casa e Ila 154Gabi(zinha)
09 de novembro de 2000 (Piracicaba/SP)
25 de janeiro de 2014 (Natal/RN)

 

O galo

Na véspera de natal notei uma diferença ao acordar. Havia, em algum lugar no bairro, um novo visitante, por sinal bastante ruidoso: um galo.

Não há como não ter estabelecido conexões remotas. Praticamente em toda minha infância eu acordava com o som de um galo cantando. O som tornou-se habitual.

Depois de desperto, fui tentar descobrir de onde, afinal, provinha o som e estava o ilustre ‘cantor’. Foi então que descobri que a ave estava na casa em frente ao prédio onde moro.

Achei estranho, pois o galo estava simplesmente solto no quintal da casa, e, ao contrário dos galos que conheci na infância, esse, apesar de caracteristicamente belo (robusto, preto e com cristas vermelhas), estava visivelmente confuso. Então, além de ‘cantar’ com o surgir da alvorada, ele fica fazendo a mesma coisa o dia todo. Acho que ele estava, imaginariamente, conclamando seu pelotão de galinhas, mas não havia sinal de nenhuma… Era um galo sem galinhas, um galo sem galinheiro, um galo deslocado e perdido.

Confesso que, de quarta (24) até hoje (26), o galo me irritou um pouco, pois ele realmente ‘cantava’ muito. Isso só aumentou minha curiosidade: afinal, que raios fazia um galo em plena zona urbana?

A princípio, deduzi tratar-se de algum novo ‘bicho de estimação’. Exótico, é fato, e bastante improvável, mas minha ingenuidade (ou esperança) me iludiu dessa forma. Depois, algo de mais sinistro (e provável) me ocorreu: esse galo ali estava para, em algum momento entre natal e ano novo, ser morto e comido.

Tentei apagar a última hipótese. De repente, o galo some. Pensei: mataram e comeram o bicho! Mas, horas depois, eis que ele reaparece, e hoje pela manhã eu novamente acordei com seu canto ao mesmo tempo imponente (como lhe é característico), mas confuso, dúbio…e, em alguma medida (pude senti-lo ou meramente imaginá-lo), amedrontado. O canto de quem, como eu, não estava entendendo nada do que se passava.

Sai à tarde. Imediatamente quando chego ao prédio e o portão se abre, escuto o galo – mas, desta vez, claramente ele estava tentando fugir. Imaginei que seus anfitriões pudessem estar tentando capturá-lo para levá-lo para fundo do quintal para que ele pudesse ‘dormir’ (segunda ingenuidade minha). Ao subir o elevador e chegar ao apartamento, escuto um ruído diferente do galo. Algo como um ruído desesperançoso, última súplica a uma dúvida cuja resposta ele nunca terá. A dúvida do porquê. Na verdade, acho que a própria dúvida sobre “o que”.

[…]

Na mitologia, o galo representa a ressurreição solar. Ele anuncia o nascimento do sol, o fim da escuridão, o raiar da alvorada, a entrada de um novo dia depois de um período de trevas.

Na tradição cristã, representa a nova luz, a missa da meia-noite, aquela na qual se anuncia o nascimento de Cristo. A missa do galo…

Em alguns países (Japão, França, Portugal), o galo é símbolo em importantes rituais nacionais. Em Portugal, por exemplo, era costume levar um galo à missa: se ele cantasse, era sinal de que a colheita seria boa.

O galo simboliza, portanto, a ave da alvorada, a ave do anúncio da recuperação da vida sobre a terra, representada pela luz. É a ave da vigília – não como a coruja de Minerva, símbolo da filosofia, que enxerga à noite e está sempre atenta, mas da vigília do despertar, a vigília da reverência à manifestação do sol. Representa Apolo, deus do sol.

[…]

Muitos povos, Brasil incluso, desenvolveram, ao longo de sua existência na Terra, o estranho (mas ritualístico hábito) de devorar presas para delas extrair sua potência. Canibalismo tribal.

A cultura brasileira, rica em sincretismos variados, consegue unir tudo em tudo: se se come um galo, nas vésperas ou após o natal (ou antes do ano novo), isso prenunciará um futuro “cheio de luz, paz e sabedoria”. Então, várias pessoas se reunem, matam um galo, o devoram cozido de uma panela… e, pronto, basta esperar a boa-aventurança.

A cultura brasileira, ao mesmo tempo em que reconhece, em algum nível, a simbologia, a mitologia, a imaterialidade contida em um signo (neste caso, uma ave), também passa ao ato, transcende o nível delicado do símbolo e mergulha na concretude mais visceral, carnal. Nesse sentido, é ignorante em um nível essencial, um nível que pressupõe a transposição de um nível corpóreo (significante) para um nível incorpóreo (significado / o lekta dos estóicos), mediada pelo corpo (pelo comer e pela integração a si).

De outro lado, e aqui reside a essência de minha argumentação, não seria no mínimo algo muito hipócrita sacrificar uma vida para celebrar o ‘futuro brilhante’ de outra vida, individual e mesquinha? Na Bíblia, Abraão sacrifica seu próprio filho a Deus. No Novo Testamento, Jesus (cordeiro) é imolado em nome de Deus (seu pai). O sacrifício. Mas, neste caso (do galo), estamos diante da mesma magnitude espiritual?
Eu sei, eu sei – todos nós, em festas como as de natal, mergulhamos em uma profunda (eu me incluo) ignorância, um manto de esquecimento e indiferença magnânimos: desde a velha estória de festejar em família, mas pouco se lixando para a família ao lado, até festejar “a vida”, o “renascimento”, às custas da morte. E, repito, em condições que nada têm a ver com “sacrifício” em nome de uma “causa superior” que não seja o entupimento ganancioso de bocas fanfarronas e, depois da algazarra festiva “pela vida, paz e pela harmonia”, das latas de lixo.

Em algum lugar alguém deve ter dito o quão hipócrita é uma cultura, e que tal hipocrisia, de alguma maneira, constitui parte expressiva dessa mesma definição de cultura. A cultura é nossa morada, nosso mergulho no coletivo, mas também, ou sobretudo, na barbárie (ainda que hoje ela pareça branda e ‘civilizada’).

Obs.: a sorte, para os humanos, é que a cultura é também o registro de sua vitória (aparente) sobre a natureza. Meus vizinhos, no seu fulgaz momento de canibalismo coletivo, devem, inconscientemente, ter se sentido poderosos. Sorte deles (sorte nossa?) de que a ‘presa’ não era um animal feroz, muito mais forte e menos acuado que um galo. É nessas horas que vemos como o ser humano é patético (como indivíduo) e privilegiado (como espécie).

Autoconhecimento e sincronia

Estava pensando que o tal do ‘auto-conhecimento’ provém da experiência pessoal do manejo consigo próprio, nas mais variadas situações.

Por exemplo, em algum ponto do percurso da vida, você descobre uma espécie de ‘zona de segurança’ psicológica que diz, única e exclusivamente, respeito a você próprio.

Em tal zona, você consegue monitorar e sentir, tudo ao nível intuitivo, que não deve se meter em algumas situações afetivamente custosas.

Seria isso o que certa vez Freud identificou como um dos fundamentos do funcionamento psíquico, a tendência a manter o nível mais baixo possível de dispêndio de energia psíquica?

É verdade que ele falava de inconsciente. E de que, muitas vezes, falamos de um mero cálculo de custos e benefícios. Mas pense assim: se você sofre quando perde um cachorro de estimação, então por que, para começo de conversa, ter um cachorro?

Evitar a experiência, antecipando o que ela vai lhe consumir de energia, é, naturalmente, uma solução meia-boca, pois, afinal, no exemplo do cachorro, a despeito de um dia ele morrer, isso não apaga anos de agradável e intensa experiência afetiva com ele.

O cachorro é só um exemplo. Posso dar outros. Se você lida mal com o conflito interpessoal, então, evite situações em que você vai se expor – mesmo quando se é forçado a isso, em alguma medida, pelo fato de você ocupar algum papel que implique em confronto.

Mas o que isso significa? Significa, em alguma medida, fingir-se de morto? Ou desenvolver uma persona ‘paz-e-amor’, tornar-se alguém incapaz de envolver-se em um embate, em defender uma ideia polêmica? Fingir na frente da pessoa, falar pelas costas?

Também significa outra coisa. Significa que você se conhece minimamente e sabe como ‘modelizar’ suas características de modo a não se violentar em demasia no contexto. Se o preço disso é, no exemplo acima, ser percebido como mais passivo, que seja.

Nietzsche disse em algum lugar (talvez em Humano, demasiado humano) que certas poças de água, destas que ficam à beira da estrada, no alto de uma serra ou algum lugar assim, quando são atingidas por algum objeto (por menor que seja), levam algum tempo até ‘voltar ao normal’ – até acalmar as pequenas ondas d’água impulsionadas pelo objeto lançado. Quando essas ondas se dissipam, pronto!, a poça esta novamente no seu centro habitual.

Quando estamos no mundo, quando agimos nesse mundo (somos afetados e afetamos), por vezes demora um tempo até retornarmos ao nosso estado de equilíbrio habitual. Então, prosseguia Nietzsche, por que se meter em situações em que, corriqueiramente, seu equilíbrio é alterado? Ao preço do que? De uma frenética e por vezes irracional ‘pressão social’ para ser diferente, para mudar, como se o desenvolvimento psicológico, espiritual, social, humano, enfim, qualquer desenvolvimento, só viesse junto com alguma mudança? Ora, vivemos sob o jugo pesado do ‘fetiche da mudança’. Há uma associação quase natural e inquestionável entre mudança e alguma coisa positiva.

A metáfora de Nietzsche, penso, é algo na direção de dizer que o sujeito é quem ele deve ser, ou deve se tornar quem ele realmente deve se tornar (Ecce Homo). Alguém aí poderia dizer que isso é muito romântico, algo que cheira a idealismo alemão. Pode até ser. Estou realmente simplificando. Mas há também a possibilidade de essa intuição conter alguma verdade ética, no sentido de assumir que cada sujeito, cada ser, por mais intrinsecamente ‘social’ que ele seja (embora o ‘social’, na filosofia de Nietzsche, possa ter forte vinculação com a moral, com o ‘espírito de bando’ ou de boiada…), possui um centro de gravidade construído a duras penas, muitas vezes às expensas desse mesmo sujeito – lançando suas raízes no mundo insconsciente, na biografia de cada pessoa, etc. Por alguma razão que no momento desconheço, vivemos numa época histórica de crítica devastadora ao ‘eu’, por mais que muita gente denuncie o ‘ressentimento’ de nossa época, o fato de vivermos no auge do ‘narcisismo’ e do culto ao eu. Mas acho que é muito diferente falar em narcisismo e na possibilidade, fenomenológica e existencial, de ‘possuir um eu’, isto é, uma experiência interior. Na cultura da boiada, que, a meu ver, é, de fato, a cultura em que vivemos, ter um eu é sinônimo de fazer um selfie. Criticos arrogantes confundem essas duas coisas, e nos deixam numa situação de niilismo paralisante!

Hoje eu penso que não há, a princípio, um problema em você não conseguir certas coisas que apenas podem ser conseguidas na arena social. Primeiro, pois ninguém tem qualquer fórmula do sucesso (ah, seja assim ou assado que você vai, com certeza, dominar a gramática social, o gênero discursivo de determinado coletivo, etc., e, consequentemente, vai ser bem-sucedido afetiva e socialmente). Depois, porque ‘vencer’, em graus variados, consiste basicamente em aderir a um espírito de boiada, a identidades pret-à-porter, jeitos e formas de ser prescritas e instituídas. O sucesso é, no seu valor de face mais aparente, nada mais nada menos do que o ajuste fino e isomórfico às expectativas do Outro. Não estou, com isso, defendendo a primazia de alguma coisa vaga e incerta quanto um ‘sucesso subjetivo’, interior (do tipo ‘o que importa é a beleza interior’). Estou apenas dizendo que, se o preço de não ‘vencer’ na arena social é seu equilíbrio, então, bem, talvez se justifique o sacrifício.

Muitas vezes, a morte do ‘eu social’ é o único caminho para o reencontro com aquela ‘zona de segurança’ de que falei na abertura deste post. Quantos de nós queremos, ou mesmo podemos, perpretar essa ‘morte’…essa já é outra estória. O fato é que existe um nível de ‘qualidade de vida’ que só é experienciado nesse nível mais íntimo do eu consigo mesmo. E se você, por alguma razão, prefere, vamos dizer, perder a alma do que perder o brilho e o holofote, então, meu caro, boa sorte, pois sua vida será, em vida mesmo, um inferno!

Interlocução com inimigo imaginário

Você, você me irrita quando sugere, sem perceber, que o que eu estudo é algo que não leva a nada. Sim, você me confronta com o direito de viver quando, simplesmente, dirige suas perguntas intelectuais. Está certo que, ao fazê-lo, seu rosto adquire um ar de intelectual. Você já se viu no espelho, você já teve a oportunidade de perceber que, ao achar que está sendo intelectual, você se transforma, se parece com alguém que perdeu um parente próximo, uma boca a anunciar uma notícia fúnebre? Não vejo alegria em você quando você tenta ser um intelectual. Mas há mais. Muito mais. Você, você só se interessa por aquilo que, nas escrituras da vida social, se enuncia como insígnas do bem-sucedido. Você muda quando há algum prêmio no ar, mesmo que tal prêmio jamais tenha qualquer vestígio de grana. Não importa. O que você busca é a certeza, a garantia de que, se a maoria valoriza algo, esse algo é importante. Tem mais. Você diz que gosta de crítica, mas você não gosta. Você manda “bater no peito”, pois você aguenta. Mas não, não é bem assim. Você é profundamente inseguro. Você não sabe o que está fazendo na cadeira onde está sentado. Você, aproveitando de uma atividade que exige autoria, você acha que tem algo de importante a dizer. Você é, no fundo, um grande narcisista. Um narcisista não é alguém que se olha e se perde no espelho. É alguém cujo ego é profundamente vulnerável. Você não consegue, sequer por um único segundo, esquecer-se. Você não consegue simplesmente fazer as coisas, deixar-se no fluxo da atividade: você é uma chaga aberta, uma questão irrespondível que algum adulto, no passado, lançou – ou seja, você é, no fundo, a carne que anima um fantasma inspirado por outro (seu pai, sua mãe, qualquer um que, um dia, tenha sido importante para você). E o que você quer? Você quer voltar para a casa de seu pai e sua mãe. E tem mais. Você não sabe se ouvir. Você é alguém que se repete demais. Você já percebeu o quanto você se repete, o quando diz a mesma coisa, quando muito, com uma singela variação do mesmo? Não, decerto você não percebeu isso. Nunca perceberá. O que lhe move? O que lhe motiva? O prêmio. Qual prêmio? Nem você sabe, mas a verdade é que você é uma pessoa prêmio-orientada. Você gosta de qualquer coisa pronunciada em francês ou inglês. Se alguém tiver nascido acima dos trópicos, pronto!, isso já será suficiente para chamar sua atenção. Você é um grávido sem filho. Barriga vazia. Esperando, esperando… esperando a caravela aparecer no horizonte e lhe trazer o estrangeiro. Só que ele não pode falar português, é claro. Não pode. E digo mais. Você, quando eu falo de alguém, quando eu falo do cabelo de alguém, você acha que não é sobre você, que você, não, você tem o cabelo perfeito. Você me faz querer fugir para a lua. Você já pensou em fugir para a lua? Não? Pois pense. Você nunca diz o que realmente quer. Talvez você seja um supersticioso; ou talvez você seja alguém que convive com pessoas como eu apenas para cumprir o que lhe é exigido no trabalho; mas, no fundo, você convive, na sua mente, no seu horizonte, com super-homens – não, veja, isso é importante!, não os super-homens, os dândi, de tipo nietzschiano, mas com fantoches divinizados, pessoas superiores pertencentes a nichos dos quais, claramente, você não faz parte, mas que gostaria muito. Você só se move como uma mariposa em direção à luz do poder. De novo, não o poder do autor de “A vontade de poder”, mas o poder capaz de esconder sua inabilidade para ir além de frases “criativamente” montadas. Você é um especialista em falar do que não vive. Pois é. Você. Como há coisas sobre você…Eu gostaria de gritar, de berrar, de falar bem alto tudo sobre você. Para piorar, se houver um grupo, um amontoado de “você”, eu consigo ficar louco. Mas, para meu infortúnio, meu infortúnio, você é um coletivo…Sinceramente? Eu acho melhor analisar essa orda de “vocês” pela perspectiva behaviorista; sim, comportamentalismo. O resto, o tal do “simbólico”, sabe o que é? É labirinto. Fantasia. Gente precisando falar, preencher o espaço oco com palavras igualmente ocas.

Alguém sabe por quê?

polaroid 18

[The polaroids of Andrei Tarkovsky]

Porque são melancólicos todos os bichos atrás das grades, melancólicos, melancólicos os macacos mendicantes da Indonésia, e ainda os que sobraram no zoológico bombardeado em Al-Bisan, como também é melancólico um poliedro de vidro sobre a asa de um Messerschmidt feito de chumbo, e melancólico o Lúcifer de Franz von Stuck, com os mesmos olhos leitosos de um androide de Blade Runner, como também melancólicas, melancólicas, as garotinhas de Lewis Carroll, as crianças armadas nos campos do norte do Iraque, a menina Rosalia nas catacumbas de Palermo, e ainda as cento e oitenta e seis velas pelo aniversário de dez anos dos cento e oitenta e seis anjos da cidade de Beslan, além do mais, ainda porque são igualmente melancólicas as santas nas caves iluminadas dos sobrados, e as cruzes de beira de estrada, e as polaroides de Tarkovski, aquela obsessão de Tarkovski pela Rússia, aquela obsessão pela névoa que uns chamam de estilo, e no fundo, no fundo, é uma bruta saudade de casa, e porque mais, porque também são melancólicas, melancólicas, as bonecas nas redomas de Farnese, e todas as mulheres do Dr. Charcot, e todas as mulheres de Hopper, e ainda porque, entre outras coisas, também é melancólico o pequeno príncipe no deserto, lá onde uma vez Santo Antão enfrentou e venceu seus demônios, como, além disso, é melancólico, entre outras coisas, o velho piano polido, com um candelabro de cada lado, na casa de campo do poeta assassinado, hoje museu em Valderrubio.

Título original: “Nós, os melancólicos”, de Mariana Ianelli. Peguei daqui.

Lapsos obtusos (2)

(…continuidade do post anterior)

E) O domínio do código linguístico dá-lhe muito poder. Veja esta articulação de letras que estou fazendo. Considere o ‘contexto’ em que ela ocorre (ambiente virtual). Suponhamos que eu tivesse algum tipo de clarividência ou talento para articular esses caracteres de um modo superiormente criativo, diferente. Em algum ponto, por exemplo, alguma ‘empresa de conteúdo’ poderia querer me contratar. Por quê? Porque eu saberia articular o código.

e.1. Claro, eles poderiam me ‘contratar’ porque tenho amizade com algum dono de ‘empresa de conteúdo’, ou porque, de algum modo, o conteúdo do que escrevo fosse atrair clientes e, claro, dinheiro. Não há clientes, nunca; há dinheiro.

e.2. Mas será que vivemos, genuinamente, num contexto em que ‘empresas de conteúdo’ contratam pessoas e serviços por conta…do ‘conteúdo’? Difícil dizer. Algumas, talvez sim;

e.3. Mas o ponto que quero dizer é que dominar a linguagem (ou UMA linguagem) é o começo da aquisição de poder. Se você olhar o que você escreve como fonte de poder, você vai entender que o que você escreve (ainda mais se você for professor-pesquisador-“autor”) pode estar do lado da ação, e não da reação – ou seja, você pode, com o que escreve, realmente inscrever algo na realidade. Mas, para mim, o mais importante é:

*) O que o outro te diz (como texto ou não) é algo arbitrário; a diferença de uma pessoa ‘proficiente’ e de outra que não é consiste em que a que é consegue sintonizar um determinado ‘espírito de época’ (ou de grupo);

**) Se o que o outro te diz é algo arbitrário, então você tem certa autonomia, como ser-no-mundo (sujeito), de contrapor um código ao outro. Se um parecerista, por exemplo (no mundo acadêmico) lhe diz algo, a única diferença entre ele e você é que ele aprova ou não seu artigo; de seu lado, você pode fazer a letra dele valer tão ‘nada’ quanto a sua! Ou: o que o outro te diz tem quase o ‘mesmo valor’ do que aquilo que você diz. Então, por que há diferenças entre ‘textos/pessoas’? Pense…

F) Você pode ser ‘influente’ (sentir-se ‘autor’) em alguns contextos específicos (o imbecil do professor, ‘doutor e concursado’ que acha, por conta disso, que é ‘alguém’, pode simplesmente ‘se fazer de difícil’ em ambientes restritos como uma sala de aula). Há uma espécie de micro-sociologia do poder. Cada ambiente, por mais sem ar que ele seja, é uma ‘esfera’, onde ali vive e ‘prospera’ uma pequena colônia de seres. O problema é que, mesmo com o blá-blá-blá do mundo interconectado, cada um vive em esferas, as quais variam de diâmetro uma das outras – mas são todas, no fundo, pequenas.

f.1. Exemplo: um homem agressivo, troglodita, pode fazer da casa (esposa + filhos + animais) sua ‘esfera’ e sentir que ali, nesse espaço restrito, ele é ‘alguém’: pode mandar e desmandar, pode humilhar e pode ‘promover’. No trabalho, ele pode ser um verdadeiro “inútil”, desprezado por todos os colegas;

f.2. Espaços privados como esses tendem a assumir grande relevância quando a vida social é esvaziada. Quando o troglodita acima vai ao espaço social mais amplo, ele recua como um cachorro com o rabo-entre-as-pernas;

f.3. Outro exemplo: o professor que usa de seu ‘poderzinho’ para fazer alunos vulneráveis fazerem o que ele acha ‘científico’: aplicar questionários, transcrever entrevistas, ler o artigo dele (professor), e sem contra-partidas pedagógicas, e assim por diante;

f.4. Um exemplo final, sem conclusão: os ditos ‘anões’ ou ‘nanicos’ nas campanhas eleitorais: quem são eles? Moro num Estado pequeno; vi mais de 400 candidatos a deputado estadual/federal. Ora, por acaso eles acham que a ‘casinha’ deles, onde eles mandam com voz grossa e ar empolado, é a minha?

>>> Gregos, vocês tinham razão: a economia deveria ser algo do privado, da casa. Um desastre quando os pequenos ‘deuses de 3 súditos’ inventam achar que são alguma coisa na vida ‘além-esfera’ da cazinha deles…

Lapsos obtusos (1)

A) Por vezes, imagino o prazer indescritível de um escritor que, enfim, acha a combinação perfeita e implacável entre forma e conteúdo. Já sentiu algo próximo do vislumbre desse momento, quando o sentido (pessoal) transcende, mas incorporando, o significado (coletivo, instituído)?

B) Em eleições gerais – por exemplo, como as para presidente, você consegue entender como a democracia, pelo menos à brasileira, é um impropério. FHC, nosso antigo presidente, diz que quem vota no PT é “desinformado”. Fazia tempo que não me lembrava do velho FHC, mestre em metafísica sociológica, a sinalizar a todos nós o quanto ele sabe, o quanto ele está próximo à “verdade” e nós não. Ou ele realmente estaria?

C) O que significa, essencialmente, o mito de Narciso, aquele lindo rapaz que, deslumbrado com sua própria miragem refletida na água, nela morre? Por que ficar às voltas com o mesmo, ou a mesmidade, é algo mortífero? Por que dar as costas para a alteridade (como se isso fosse possível) é o primeiro passo para a loucura, para o monólogo interior, o qual leva a uma ausência plena de tensão, motor de qualquer mudança?

c.1. Não seria porque o mesmo faz sentido? Mas, se sim, então o sentido é uma pequena ilhota, um ponto nulo na imensidão de um mar grávido de possibilidades (desculpem a redundância!), mas cansativo? Pois ‘infinitas possibilidades’ é algo belo no discurso, mas pesado na prática. A fisiologia é a melhor medida para avaliar o quanto somos: 1) escravos (no sentido de Hegel); 2) livres. Podemos preferir o conforto da ilhota-sentido ao inigmático (e mítico) mundo aberto.

c.2. Não seria porque, como indivíduos, embora influenciados pelo ‘social’ (blá-blá-blá), conseguimos capturar, controlar, segurar e ‘sistematizar’ algo da existência quando giramos em torno de nós mesmos? Pergunto ao espírito de Nietzsche: é pecado negar a vida? É pecado simplesmente reduzir a velocidade, o ritmo, a amplitude dos investimentos em coisas e seres que, no fundo, você despreza completamente?

c.3. Ficar ‘em torno de si mesmo’ é anti-natural, alguém poderia dizer. O mesmo não gera a diferença. Um homem não gera um filho sem uma mulher. O filho é a síntese dialética, o produto dos opostos. O que poderia gerar um self sem o outro, a alteridade? Mas qual o problema de Narciso morrer? Não sei, talvez haja algo que estou deixando passar…

c.4. Paradoxalmente, ‘sair de sei’ dá trabalho; na verdade, isso é, precisamente, o que define ‘trabalho’

D) Eu poderia (acho!) ficar olhando para um cachorro durante a eternidade. Mas me custa ouvir 10 minutos de conversa enfadonha de um outro ser humano. Freud, velho Freud, seria por que o ‘outro’ (cachorro) não é uma alteridade no sentido estrito e, portanto, não exige e não é exigido? Ou seria esta maneira de ver algo desatualizada com o que está envolvido na relação afetiva entre humanos e animais?

d.1. Talvez a fórmula de Glenn Gould, segundo a qual, para cada X  horas com um outro ser humano, é preciso ficar X vezes N horas sozinho (onde N varia de pessoa a pessoa, mas, segundo ele, ou para ele, era algo bem alto), se aplique a animais: eu, para cada X horas com seres humanos, preciso ficar, no mínimo, X vezes 1 com os animais, ou 10 sozinho.

Do porquê de usarmos os afetos em situações de desempenho

Existe um traço da cultura brasileira que é praticamente inegável, se visto com cuidado: temos certo hábito, automático como qualquer comportamento orientado pelo script cultural, de falar de alguma particularidade de nossa vida privada para tentar lidar com situações em que se esteja diante da expectativa de peformance/desempenho.

Por exemplo, quando não se atinge certo patamar objetivo de desempenho, estabelecido com base em critérios de comum acordo e ‘normais’ do ponto de vista organizacional ou da atividade, logo se vêem justificativas de cunho personalista: “É que estive doente”; “É que isso é uma questão com a qual não me sinto bem em lidar”; “Não fiz isso, mas veja quantas vezes eu passei a noite trabalhando com algo que você me pediu”; “Não consegui, mas veja como sou compromissado com o trabalho, como estou aqui a todo momento para lhe prestar minha ajuda”; etc.

Quais explicações para essa junção, sobreposição, por vezes subsunção, da performance pelo afeto?

1) Não temos, por aqui, em nossa cultura, uma disseminação generalizada do individualismo moral observado em outras culturas. Temos, em contrário, uma mistura entre aspectos desse tipo de individualismo – que, em geral, é indiferente à ‘pessoa’, portanto mais voltado à impessoalidade do desempenho (meu chefe não está ‘cobrando isso só de mim’ – faz parte do processo de trabalho, etc.) – com viéses de uma cultura bairrista, paroquialista, centrada na figura do senhor e do escravo, na metáfora do ‘homem cordial’ tão bem analisada por S. B. de Holanda. A mistura entre esses elementos nos traz, no cotidiano das relações, um tipo de ‘personalismo afetivo’. Tal personalismo faz diluir as cobranças e orientações instrumentais das relações laborais em um caldo de ‘afetividade compreensiva’, do tipo protecionista, personalista, com os conhecidos sentimentalismos ritualizados que temos em nossa cultura – como amigos-secretos no final do ano, mensagens efusivas e ‘calorosas’ de demonstração de afetos em aniversários, ou então quando a pessoa exibe uma foto sua no what’s app, bem ao modo selfie ou big brother de si mesmo;

2) Devido a uma certa propagação, cujas origens precisariam ser melhor esclarecidas no plano sociológico e psicológico, de que ‘performance’ tem a ver com exploração, tem a ver com o ‘ser usado no trabalho’, isto é, tem a ver com um ‘outro’ que nós, brasileiros, conhecemos como o ‘senhor’ (da Casa Grande & Senzala) – ao mesmo tempo aproveitador e cordial. Daí que se espera que esse ‘senhor’, quando for pedir algo, que o faça com a mansidão cordial, com “jeitinho”, com aquele canto de boca religioso, quase como uma criança a pedir doce para a mãe. Por motivos antropológicos que desconheço, o ‘senhor’, como metonímia ou metáfora das relações de poder, tornou-se uma espécie de pai complacente, sujeito, paradoxalmente, a todas as tensões e ambivalências típicas de uma relação pai-filho: amor-e-ódio. Portanto, no trabalho, a cobrança por desempenho, se ocorrer, deve ser de modo ‘estratégico’, um verdadeiro marabalismo relacional;

3) Existe, como parte disso tudo que coloquei acima, uma gramática relacional moldada pela afetividade de tipo prêt-à-porter, além de um estilo de relacionamento baseado na criação de pactos e vinculações ocultas, em redes e históricos de favores e retribuições, mais uma vez uma apropriação, talvez ‘mui’ brasileira, da ‘dádiva’ – teoria tão bem explicada por M. Mauss: “Eu te dou cobertura hoje, você me dá amanhã”. Como, em dado momento, quem cobra é quem, de certo modo, recebeu algo da pessoa no passado, então fica difícil instituir ou introduzir uma lógica de puro ‘gerencialismo eficiente’ numa relação que não comporta, interna e externamente, esse tipo de orientação. Se se introduz uma lógica de cobrança impessoal, ou de desempenho impessoalizado, tem-se um problema a lidar, pois a cultura do paroquialismo, da afetividade compassional, vai reinterpretar a situação como ofensiva, disparando, em consequência, comportamentos grupais de tipo corporativista, porém, um corporativismo afetivo, do tipo bode expiatório (‘nós que nos amamos’, e ‘ele, que odiamos’). Ou então a situação vai ser reinterpretada de modo mais cínico, com explicações (ou auto-racionalizações, auto-justificações) sobre “a injustiça do capitalismo”, “a vida é mais que o trabalho, o que importa são as relações”, etc. Ou ainda, para piorar o quadro, se sai com o velho comportamento “para inglês ver”, com um fingindo fazer o que o outro pede, ou fingindo “entender e tentar melhorar” o baixo desempenho. Chega a haver um descaso cínico com o desempenho esperado.

Claro, haveria outras explicações. Inclusive, certamente há reparos a fazer na leitura do fenômeno tal como a coloco acima. Mas, temos de pensar melhor sobre esse traço de nossa cultura, essa tendência, sobretudo em certos tipos de setores (como no setor público, por exemplo), de estimular a auto-comiseração, o auto-pietismo, a solidariedade orgânica, a afetividade como escudo e como forma de reinterpretação do desempenho. Claro que não é 8 ou 80, mas o ‘uso dos afetos’ pode ser profundamente reativo (embora, paradoxalmente, é uma grande característica de nossas relações profissionais, com benefícios legítimos), conservador, perverso. Pode, em certo momento, passar a representação de que, no trabalho, “estamos muito mais convivendo do que fazendo coisas objetivas que levam a resultados objetivos”.

Para finalizar, mas sem concluir…:

A) Não acho que a ‘performance’ tenha, apenas, a ver com uma representação do trabalho como castigo, como obrigação, como algo ‘chato’ que se faz para enriquecer alguém. Tem a ver com o poder de agir, com o fazer, com a intervenção sobre a realidade circundante. Diluir isso em uma nuvem de passionalidade, além do que coloquei acima, pode ser corolário de uma estratégia, não necessariamente deliberada, de ‘ocultar o real do trabalho’, isto é, o que realmente se está ali fazendo (ou se deveria/poderia ali fazer);

B) Falar de si, dar justificativas pessoais para um resultado não alcançado, é, em certo sentido, um tipo de narrativa de auto-engano, de auto-justificação. Uma tentativa de conseguir a pena e a compreensão do outro. Uma forma de controle, portanto. Claro que as relações humanas não são ‘mecânicas’, mas acho que o trabalho não é lugar para grandes amizades, grandes aprofundamentos sentimentais/afetivos; o trabalho é onde ocorre o embate entre um ‘eu’, um ‘outro’ e o ‘real’. Daí que tenho pavor das manifestações superficiais de coleguismo, dos rituais de emoções superficiais. O trabalho não é, necessariamente, um lugar para sermos ‘aceitos ou rejeitados’, onde vamos tentar sanar coisas que não têm a ver com o trabalho. Não estou dizendo para segmentarmos nossa vida: no trabalho e fora dele, só estou mostrando o lado nem tão cor-de-rosa de fazer do trabalho uma arena para se recuperar uma “grande família humana perdida”.

Uma queixa extemporânea: onde está a tragédia, onde estão as virtudes, onde estão os ‘grandes homens’? Estamos nos tornando nanicos sentimentalóides, movidos a ‘paixões de ocasião’, numa enfadonha busca por aceitação, ‘espírito de grupo’, coleguismo de ‘nivelação por baixo’, de ‘pactos narcísicos’, e assim por diante…

Prefiro ouvir a falar (#43)

Força

Qual o conceito de força? Por exempolo, baseando-nos na três leis de Newton, a força é uma grandeza capaz de vencer a inércia de um corpo, modificando-lhe a velocidade. E o faz tanto em termos de magnitude como de direção.

Vencer a inércia.

A força está na origem do movimento. Bom, poderíamos nos perguntar pela ‘metafísica da força’: para onde ela aponta? Pois, além de magnitude, a força possui direção. É um vetor.

A metáfora da força não poderia ser mais potente. Nosso corpo, para começo de conversa, exerce força – desde o movimentar-se até, menos obviamente, a força que exercemos sobre outras pessoas, tanto na forma de afetos (afetar) como de ideias (influência sobre a vontade, por exemplo).

A própria saúde, entendida em sentido amplo, é devedora de nossa capacidade de estar na origem de movimentos que, de outro modo, não teriam lugar. Ação é saúde. Fazer. Mudar. Afetar.

Outra força ‘subjetiva’ fundamental é o desejo. Nos colocamos em movimento quando desejamos algo. O desejo, como falta, leva à busca por um objeto que, na hipótese de conseguirmos, nos traria satisfação, felicidade. Prazer.

O desejo é o que nos leva a vencer a inércia.

Sem desejo, seríamos ‘coisa afetada’, e não ‘coisa afetante’. Sem desejo, beiramos ou cotejamos com a depressão – entendida como a ausência de movimento, como um retorno do self (do eu) sobre si mesmo, na forma de ressentimento, lamúria, não-ação.

Na psicologia do trabalho, por vezes desejo e força são tratados como sinônimos de motivação. Esta relaciona-se aos motivos, à direção e à persistência de uma ação. Uma pessoa des-motivada não se põe em ação.

O desejo, como força psíquica, é, a um só tempo, profundamente pessoal, singular, e também o desejo do outro. Ir no sentido do desejo do outro é tentar decifrar uma força que coloca o sujeito em movimento. A atração, por exemplo, tem esse efeito.

Mas ir no sentido do próprio desejo equivale a descobrir os motores do que impulsiona nossa ação. Nossas supostas ‘necessidades’ (embora desejo não deva ser confundido com necessidade).

Para mim, a grande questão é: como situar seu desejo num labirinto em que alguém já imaginou as saídas e alternativas. Desejar é, em certo sentido, transcender, transgredir o tabuleiro pré-determinado em que fomos lançados. O desejo é, na linha do que falei em meu post anterior, enlace entre o eu e o outro, entre o conhecido, o possível, e o improvável, o imponderável. Desejo e risco.


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