Prefiro ouvir a falar (#19)
fevereiro 10, 2013
fevereiro 5, 2013
Estive em Assis (Assisi, em italiano), a cidade-natal de São Francisco (de Assis…). A pequena cidadezinha é absolutamente maravilhosa. Li em algum lugar que “há pouco a fazer ou a ver em Assis”, mas discordo completamente: a vista é repleta de reflexão; a cidade é silenciosa, mas de um silêncio particular, que nos chama, nos convoca na verdade, a pensar. Claro que, para isso, é preciso superar o tempo presente: é preciso, por exemplo, esquecer ou abstrair o fato de a pequena cidade ter sido capitalizada pelo turismo, e de que você se esbarra, a todo momento, com gente de todo canto em busca de seus “15 segundos de flash”. Mas tudo isso é, com um certo esforço, superável.
Assis é uma “típica” cidade medieval; é cercada por uma muralha, e dá-se a impressão de que, desde sua fundação, ela já nasceu com vocação para o distanciamento, para o afastamento contemplativo. As casas são feitas, literalmente, de pedra, e logo se vê que não vieram para durar pouco. Por toda a parte, encontram-se franciscanos (refiro-me aos irmãos), mais de 800 anos depois da morte de S. Francisco, repetindo e seguindo seus passos: no refúgio da cidade, rezam pelo mundo…(inclusive uma pessoa que, mesmo sem ser frade, perambula pelas ruas com uma “missão penitencial pessoal”, o carismático Massimo Coppo!).
Fotos de Ila (minha esposa) e minhas
Arquitetura à parte, saí de Assis com uma certa dúvida sobre em que consistiria o amor a que tanto fez referência S. Francisco de Assis. Pensei em coisas como estas: seriam os frades, os franciscanos e beneditinos, as irmãs clarissas (não sei se é assim que são chamadas, as adeptas de S. Clara, também imortalizada na cidade), “negadores” da vida, no sentido de que, em estando em Assis, afastam-se da necessidade, pesada e muito presente, de amar no cotidiano, o cotidiano, com toda sua confluência de impedimentos? Seria mais plausível amar à distância, por assim dizer, do que do coração da vida corriqueira? Qual o objeto do amor, qual seu propósito? Amar no (ou do) desprendimento?
Saí de Assis com a sensação de que a experiência induzida em mim por essa cidade precisa de algum nível de generalização, precisa ser transportada de lá para o resto do mundo e para as outras contingências de nossas vidas. É possível “amar” sem a bela e abundante visão dos vales da Úmbria, onde está localizada a pequena cidade? Seria possível amar de dentro de um carro apertado, no engarrafamento de uma grande cidade como S. Paulo,por exemplo? Seria possível amar SEM um objeto definido? Por exemplo, amar a mulher com a qual você está (ou o homem) pelo fato de amar, verbo intransitivo? Amar sem esperar nada em troca (como falou S. Francisco… e tantos outros antes e depois dele), perdoar sem esperar nada em troca, simplesmente deixar-se, entregar-se ao mundo e à sua maravilha (como criação de Deus, na perspectiva cristã)?
Não tenho respostas para nenhuma das questões. Nem do porquê elas vieram a mim, exceto pela minha “exposição” (em elevadíssimo bom sentido) à Assis. Acho que tudo estaria resolvido se, simplesmente, a própria cidade de Assis “se internalizasse” em mim – mas nossa dependência do lugar não é desprezível. Talvez seja por isso que muitos monges/frades não saiam de suas selas, fiquem a olhar para o horizonte, para o “desvelar da criação”, daí voltando novamente para dentro de si-mesmos. Ou talvez eu esteja subestimando a experiência religiosa…e haveria formas mais sutis de transcendência na vida cotidiana. Sem essa transcendência (que você, mesmo sem grandes “treinos” em meditação ou algo que o valha, consegue em Assis!), a vida cotidiana assume talvez sua principal característica: a total falta de sentido/propósito.
Amamos, na vida cotidiana, desde que tenhamos um objeto para este amor: eu te amo se você me amar de volta; faço-te algo se você me der algo em troca; ou faço-te coisas para que você não faça outras para mim…A vida cotidiana, em geral, reflete a “ontologia de um ser social” que é, no fundo, um ser econômico, calculador, instrumental, IMANENTE. Por mais que se fale em “mercado futuro” (na bolsa de valores…), a economia é bastante imanente…só que, ao mesmo tempo em que isso a torna desprovida de grande valor “místico” (o sentido da vida não está, decerto, na economia, ou não deveria estar, contra qualquer bom senso antropológico), ela reflete o que somos na modernidade. E nada mais avesso à Assis. Só um último exemplo: em Assis, cobrar para entrar numa igreja, para conseguir recursos (como nos museus, que vendem coisas para arrancar dinheiro das pessoas), é uma contradição METAFÍSICA!
Seja como for, Assis é mais do que um simples destino num guia de turismo; para mim, Assis foi uma verdadeira experiência religiosa, mas sem religião, se é que me entendem…
janeiro 30, 2013
Uma rápida reflexão, de passagem mesmo, sobre a importância, por vezes implícita, de nossos grupos de referência. Um grupo dessa natureza é, segundo a psicologia, aquele a cujos padrões recorremos para medir nossas próprias conquistas, nosso próprio comportamento, também nossos ideais (valorizamos aquilo que nosso grupo de referência valoriza). Contrariamente, tememos ou desmerecemos aquilo que nosso grupo de referência desmerece ou não valoriza.
Um grupo de referência está ligado à nossa socialização primária – não se refere à “sociedade” mais amplamente falando. Conhecemos as pessoas de nosso grupo de referência, muitas vezes convivemos, no dia-a-dia, com elas. Um exemplo pode ocorrer no trabalho: as pessoas com quem trabalhamos por vezes tornam-se nosso grupo de referência, mas pode também ser nossos amigos, acho que até mesmo nossos familiares.
Se, em meu grupo de referência, as pessoas valorizam certos “outputs”, a tendência é que eu também o faça. Existe certa pressão de grupo para isso, mas também certa identificação de nossa própria parte: voluntariamente, digamos, nós aspiramos coisas semelhantes, e, mais importante, nos comparamos – eis aí um mecanismo psicológico-chave na nossa relação com nossos grupos de referência! Esse mecanismo tem um efeito interessante: ele faz com que nós e nosso grupo de referência nos tornemos, ao mesmo tempo, similares e diferentes. Seria mais ou menos a mesma coisa que acontece em nosso processo de constituição identitária – somos iguais/semelhantes a certas pessoas, e diferentes de outras.
Em situações de ambiguidade, tendemos, mais do que habitualmente, a recorrer à visão, à métrica, oferecida por nosso grupo de referência (ou aquela que imaginamos/percebemos).
Bom, eu disse tudo isso para completar agora: ao mesmo tempo em que é importante se fixar em certos padrões de grupos de referência, a certas balizas, especialmente afetivas, representadas por esses grupos, também representam um risco à individualidade. Nesse sentido, sigo aprofundando meu post anterior, no qual discuto a “incapacidade de ficar só”. Pois grupos de referência, além de instáveis, podem nos desviar de nossos próprios projetos.
Nos grupos de referência, ao sermos acolhidos ou ao nos espelharmos, visamos a algum tipo de reconhecimento. Porém, grande projetos de vida nascem do interior, nascem da solidão interior: eles miram paisagens mais distantes; desejam altitudes mais elevadas, onde o ar é mais rarefeito e onde não há muitas outras “formas de vida” em que se inspirar. Esse mergulho interior é, na verdade, uma reelaboração criativa do que recebemos do mundo.
Claro que tal projeto não “nasce da cabeça” do indivíduo; mas há uma certa dinâmica, segundo a qual, do mergulho em si, e da visada beyond ou au-delà de nossos grupos de referência, nascem obras significativas para si e para o mundo. Só para fechar com um exemplo de Nietzsche: ele dizia (mais ou menos, estou escrevendo só de memória) que precisamos tirar, no mínimo, 300 anos de pele histórica de cima de nós (haja acúmulo de “outros significativos”, de legados de grupos de referência…) para podermos enxergar as coisas com mais clareza. Ou então que precisamos subir em alta altitude, ver de cima, com o olhar das aves de rapina (que, até onde sei, não costumam “andar” em bandos)…
janeiro 30, 2013
Belíssimas fotos feitas pelo meu amigo Maurício Serafim, em sua visita a nós no final de semana, da varanda da casa em que estamos, minha mulher e eu, hospedados aqui em Serre di Rapolano, na região da Toscana (SI), de onde, dentre em breve, estaremos nos despedindo para seguir viagem…
janeiro 29, 2013
Um amigo, que é religioso (mas racional), me disse, em uma visita que me fez neste final de semana, que uma boa descrição do inferno é quando não se sente a presença de Deus, ou se sabe que Ele não está presente. Metaforicamente, o inferno é a condensação de escuridão viva, vazia, a solidão absoluta – uma forma suprema de desamparo.
Gostaria de refletir um pouco sobre isso. Não de uma perspectiva teológica, sobre a qual nada mais conheço desde que abandonei o seminário, mas psicológica.
O desamparo, e a solidão em que ele está envolto, pode ser apresentado como a mais pura percepção da consciência sobre sua própria finitude. O desamparo, portanto, é corolário de perceber-se indivíduo, “desligado” de alguma “totalidade” – o inverso do pensamento oceânico discutido por Freud. Religião, como se diz, implica em re-ligar, em repactuação constante em torno de Deus unitário (ou em torno da Santíssima Trindade, para os cristãos). Não estranha, portanto, que diversas comunidades religiosas vivam, ainda hoje, um sentimento comunitário, uma espécie de fogueira a aquecer na escuridão e no frio do atomismo social, da serialização individual.
Não é à toa também que, na ausência da religião (ou como seu sucedâneo), haja a presença da República. Para mim, que não sou erudito o suficiente, tenho como exemplo disto a França, onde a República assumiu, em sua história, um papel de fiador social muito poderoso. Na ausência da República ou de uma religião forte, resta aos indivíduos o Estado. Sem este, a barbárie, como se sabe após séculos de pensamento político (filosofia política).
Uma forma perigosa (em termos psíquicos) de desamparo é quando a consciência “desampara-se de si mesma”. Quando não encontra, em si mesma, o estofo necessário para uma vida significativa (com sentido). Esta situação seria o equivalente do “inferno sem Deus” que meu amigo me descreveu. O inferno dentro de si – isto é, a escuridão interior. Claro que falo de uma escuridão em sentido metafórico.
A solidão, o desamparo da consciência (a descrença em si, a incapacidade ontológica de identificar um solo em que pisar, com “objetos bons” internalizados, como diria M. Klein), reflete na incapacidade de estar só. Para fazer face ao vazio interior, diversos “recursos” estão à disposição da consciência: fluxos fantasiosos de pensamento; imaginação megalomaníaca ou então auto-punições severas; adicção; ansiedade [por definição, um medo sem objeto, difuso]; etc. E não necessariamente estamos falando de psicopatologia – quando muito, de uma psicopatologia não severa. O indivíduo, incapaz de ficar só, luta como pode para adaptar-se ao ambiente.
O desamparo, mesmo sem recorrermos a uma linguagem religiosa, é, em suma, a necessidade de ter de viver uma vida na finitude de um corpo e nas restrições impostas, contingentemente, pelo mundo. É a agonia, a percepção do tempo que passa e a incapacidade da consciência ligar-se a objetos externos, e de ligar objetivos externos.
Para encerrar, e voltando à metáfora de meu amigo, acho que não precisamos ir muito longe, na teologia ou algo assim, para compreender o que é o “inferno”, esta construção enigmática que, entre outras coisas, simboliza a incapacidade de estarmos sós, com nossas consciências, e “desligados” de outra realidade/objetos/pessoas.
janeiro 9, 2013
Escrevo aqui de algum ponto abstrato no espaço. Não vou lhes dizer em que ponto estou, exatamente. Hoje gostaria de fazer uma rápida reflexão sobre os níveis em que podemos estar confinados em nossa existência.
O nível mais básico é o fisiológico. Cada vez mais me convenço de que é a fisiologia, como um sistema autônomo (ou quase) e integrador de diversos sub-sistemas, que governa nossa vida. Há, basicamente, a fisiologia (entendida aqui, genericamente, como um macro-sistema), o cérebro e a cerebralidade (cultura, signos, sentidos, etc.), e o ambiente (físico). A fisiologia é o corpo primitivo: o sistema cárdio-respiratório, cárdio-vascular, digestivo, etc. Mesmo as partes “primitivas” do cérebro, cujo valor é de auto-regulação fisiológica.
A existência, no nível fisiológico, é governada por leis e quase-leis. No primeiro caso, temos as associações e correlações entre propriedades, substâncias, “entidades” – e que podem ser (e o são, mesmo com certa margem de erro e arbitrariedade) explicadas pelas ciências médicas e biológicas (e físico-químicas) em geral. No segundo caso, o das “quase-leis”, estamos em áreas fronteiriças, áreas ambiguas, reversíveis e etc.: na área da mente, dos sistemas influenciados por esta – em suma, estamos no campo das interpretações (e fantasias) do cérebro.
Portanto, um outro nível de existência é justamente o que se deriva, ou está associado, à área regulada pelas quase-leis. Alguns filósofos denominam este campo como aquele regulado pelas razões (diferentemente das leis, mencionadas a pouco). Trata-se de um nível no qual podemos inferir influências recíprocas entre ambos: o macro-sistema fisiológico e o sistema mental (neurológico, se se quiser). Aqui ainda estamos num campo em que há elos de compromisso entre os vários níveis.
Mas há um terceiro nível (haveria muitos outros a descrever, conforme o sistema linguístico escolhido), e o denomino de nível da pura arbitrariedade do signo. Já falei disto aqui, em outro momento. Bom, nesse nível o que encontramos são elaborações muitas vezes desprovidas de qualquer base empírica (e há, contra amadores de plantão, sim, uma base empírica – a fisiologia está aí para nos confrontar exatamente com isso!), mas que, indiretamente, podem mesmo levar a arranjos empíricos. Um exemplo deste nível pode ser encontrado na publicidade, na vida quase “paralela” em que vivem “astros e estrelas” de televisão, ou mesmo muitos de nossos conhecidos, até mesmo nosso vizinho ao lado!
Esse terceiro nível pode, no limite, levar a imensas zonas de sombras, verdadeiros bunkers no meio da vida social. Vulgarmente, tais zonas podem ser confundidas com processos alienantes, embora “alienação” seja uma palavra metafísica demais para o propósito descritivo aqui. Alguns antropólogos ou sociólogos (ou mesmo psicólogos) poderiam denominar este nível de existência como nível cultural, de classe, de grupo, de sociedade, etc. Acho, honestamente, esse um dos mais complicados níveis de existência, pois ele não tem nenhum referente fora de si mesmo que possa, de modo ad hoc, firmar sua “verdade”. É a prostituição do signo, ligada ao campo do jogo de forças e da potência entre indivíduos e/ou grupos sociais. É neste nível que são afirmadas algumas verdades prêt-à-porter, e que nos dispõem os recursos heurísticos mais banais, no sentido de vida cotidiana.
Acho o terceiro nível perigoso, em suma. Mais e mais tenho achado perigoso o fato de um conjunto cada vez mais amplo de seres humanos, bípedes sem penas dotados de linguagem, constituírem uma manada, cada um sendo uma espécie de “gerador de significados” a ventilar pelo mundo, graças às redes tecnológicas. Eu mesmo, que ironia, estou fazendo isso exatamente nesse momento!
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