Lealdade

Assisti novamente ao curta que postei aqui, intitulado Adam and Dog. Sua essência é o tema da lealdade, da gratidão, retribuição, algo que lembra o conceito de ‘graça’ discutido por Marcel Mauss. Na configuração da graça, o que recebo do outro gera entre mim e ele uma dívida simbólica que é alheia à axiologia econômica. Em outras palavras: há um processo de doação de si que transcende a lógica econômica.

O cão é leal a Adão, mesmo este tendo sido expulso do paraíso. O cão é grato a Adão por este tê-lo acolhido antes, com carinho e alimento. Enquanto todos abandonaram Adão (e Eva), inclusive os animais do Paraíso, o cão, praticamente sem titubear, volta à floresta, retoma o graveto que havia guardado de suas diversões com Adão, e segue este último.

É desoladora a imagem de Adão e Eva saindo do paraíso. Sozinhos. Desamparados. O cão, na animação citada, reata, religa, resgata o princípio da graça e da dádiva inerentes na própria concepção de Paraíso. Ele não deixa o primeiro casal sozinho. Com seu gesto, mantém um elo entre homem e animal que está na origem da Criação.

Em que consiste a lealdade nos dias atuais? A que ou a quem sou leal?

Talvez um nietzschiano diria que a lealdade comporta algo de passivo, de submissivo: sou leal ao mestre, ao amo (na estória do Senhor e do Escravo de Hegel). O escravo precisa do senhor para manter sua própria identidade cativa, ao passo que o senhor se alimenta do escravo, numa perspectiva dialética, para que seu próprio ser tenha sentido. Pode ser, claro, que o cão precisasse do homem (Adão) para manter sua própria posição submissa (antes a submissão do que o abandono, o desamparo).

Mas a lealdade, e novamente remeto ao vídeo, contém algo de corajoso, de audaz. É uma retribuição que funda uma ética da troca, da solidariedade, da companhia. O companheiro retribui, gerando em quem dá o ensejo da re-retribuição. Fecha-se o elo da parceria, da amizade. Neste tipo de amizade, cada membro é reconhecido em seu papel alternado: quem doa e quem recebe; quem recebe e quem doa. O dom, neste caso, não pertence a nenhum dos dois, mas à relação.

É isso. Lealdade. Amizade. Retribuição. Dívida. Graça.

Renúncia

Bento 16 anunciou sua renúncia ao pontificado. Para os mais de 1 bilhão de cristãos espalhados pelo mundo, surpresa: decerto, ninguém imaginava que um papa pudesse, tivesse a audácia, de abdicar de sua posição – a que pouquíssimos ao longo da história da Igreja alcançaram.

glamour da notícia tem a ver, é claro, com o fato de se tratar de um papa. Porém, todos os dias, mundo afora, pessoas renunciam, abrem mão de algo a que consideram importante e valoroso. A renúncia tem a ver precisamente com isso: com deixar algo que se considera importante. Em tese, ninguém renuncia o que gera desprazer, dor, sofrimento.

A renúncia tem a ver com um sujeito que se afirma, que escolhe; a renúncia pressupõe a liberdade, a autonomia. Uma relação entre a pessoa e o papel que desempenha. Foi Ratzinger que renunciou Bento 16. Pode tê-lo feito, como alguns analistas sugerem, para assegurar a permanência da centro-direita no comando da Igreja. Mas como renunciar ao que Deus nos legou como missão? Assumindo nossa fraqueza, nossa pequenez, nossa incapacidade? Mas, ao nos escolher, Deus já não sabia disso? Jesus não teria escolhido Pedro justamente por isso, por sua fraqueza, sua personalidade titubeante?

O ato de Ratziger me fez pensar no por que de nossas renúncias. Pois, como disse, não renunciamos o sofrimento, mas o prazer. Pois até conseguimos pensar no porquê de certas escolhas que fazemos (quero certa carreira para ter dinheiro; escolho casar porque amo…); mas qual o porquê da renúncia, do deixar para trás?

1) Renúncia como ato de auto-aniquilamento. Ratzinger, com seu gesto, mostra que papas podem, perante o mundo, assumir suas limitações, chamando a responsabilidade de outros mais “preparados”; mostra, ainda, que até mesmo missão dada por Deus pode ser “revista” (a misericórdia de Deus aceitando nosso lado “humano”). Com isso, Ratzinger assume-se menor que Bento 16. Abre espaço para outros, para um outro movimento histórico (a Igreja é maior que Ratzinger…);

2) Renúncia como recomeço: deixo tudo o que tenho para trás para recomeçar uma vida nova, em novo patamar. Veja-se o caso da renúncia de S. Francisco de Assis: renúncia à “vida terrena” em nome da vida eterna, a vida do espírito. De acordo com o que lemos na mídia, Ratzinger, após deixar o pontificado, vai “recolher-se” em oração num mosteiro no interior do Vaticano, “desaparecendo” da vida pública. A renúncia de um estado de coisas nos dá a possibilidade de reorganizar nossa vida;

3) Renúncia como um tipo de negação da vida. O estado máximo de renúncia é a própria morte. Pois, ao longo de nossa vida, vamos acumulando coisas ao nosso redor; renunciar a estas coisas é diminuir o peso dos próprios investimentos que fazemos na realidade. Renunciar simplifica a vida. O extremo da renúncia é quando abrimos mão de nossa própria vida. Ainda no terreno religioso, falamos dos mártires…

Não posso esconder que fiquei perplexo com a decisão de Ratzinger. Ao mesmo tempo, ela me inspirou a pensar – e o que pensei não se limita a isto que escrevi aqui. Por um breve instante, quero esquecer tudo o que li a respeito do episódio e, principalmente, as versões mais “inteligentes” de analistas, que buscam as “estratégias” ocultas, políticas, etc., levadas em conta por Ratzinger. Se calarmos por um instante essas vozes “savantes”, podemos pensar em muitas outras possibilidades de interpretar e aceitar o que fez Bento 16.

Adam and Dog

Animação indicada ao Oscar 2013.

Post-scriptum

Uma versão linda sobre o amor entre o cachorro e o homem. Nunca vi uma espécie que ama tanto e sabe retribuir. Realmente, não sei o que seria de mim sem as minhas cachorrinhas! 🙂

O turista e a ambivalência espaço-lugar

Um lado de ser turista é chato. Aborrecedor. Arrumar, desarrumar malas, ir de hotel em hotel, frequentar o transporte público (trens e avião, no meu caso recente), verificar a todo instante se os documentos essenciais estão consigo, ocupar-se da conversão de moedas e da troca de línguas e dialetos. Também é chato, ao ser turista, participar (por diversos motivos que vão desde logísticos a financeiros…) de um certo reducionismo que consiste em enquadrar um lugar (uma cidade, por exemplo) a paisagens turísticas: quando na cidade A, visite os locais A1, A2…; quando na B, os B1, B2, B3, e assim por diante. Nesse sentido reducionista, o turista pode ter a sensação estranha de que não está saindo do lugar: apenas está trocando as imagens, vendo-as do mesmo ponto.

Garçons falam inglês na Itália, em Praga; falam francês em Londres, italiano em Portugal. E não têm problemas com isso, pois, no fundo, estão dentro de um mesmo gênero de linguagem: o de atender turistas (o que há de tão variável na atividade de servir uma bebida?). Você sempre pode comprar um souvenir, em geral made in China – um telefone ao estilo inglês para usar como “cofre”; um quadro de algum pintor famoso da cidade; a foto da rua em que certo outro escritor ilustre nasceu (compra-se a réplica da placa da rua…). Nesses momentos, você está participando da redução da cidade e do lugar. As galerias de souvenirs aos pés do Vaticano só são diferentes das de Praga ou Lisboa na medida em mudam-se os objetos a serem representados. Como disse, aqui se tem a impressão de que nada está efetivamente mudando

O turismo movimenta bilhões de dólares todos os anos: hotéis, restaurantes, empresas de máquinas fotográficas (!), agências de turismo, prefeituras…uma legião de agentes econômicos capitalizando cada pedaço das cidades. É o reino (usando linguagem recente) das indústrias criativas.

Mas há um outro lado do “ser turista” que é bem interessante. Em particular, gostaria de falar da ambiguidade ou ambivalência que essa “atividade” despertou em mim no que diz respeito à relação espaço-lugar.

O espaço é disposição “natural” de coisas. Circula-se pelo espaço. Passa-se um tempo num espaço. O espaço é impessoal. Em contrapartida, o lugar é investido afetiva, social, culturalmente. O turista está em contato com o espaço, mesmo que esteja diante de um monumento ou coisa do tipo “repleto de história”! O nativo, por seu turno, vive num lugar, mesmo que não se circunscreva a ele (lógico que, mesmo sendo habitante, ele viaja, se desloca de um canto a outro, etc.). O lugar compõe sua identidade, dá-lhe estabilidade.

Viver em trânsito em diversos espaços (por exemplo, sair de seu país e ficar um tempo “viajando” por aí) tem seu limite. Não creio que alguém consiga ter sanidade mental simplesmente não parando em lugar algum, vivendo como se fosse um turista permanente. Por outro lado, a relação com o lugar pode ser asfixiante, pode nos levar ao desespero. Obviamente, o lugar depende de um espaço; mas depende também de uma narrativa, de uma história, de um “dizer” sobre o espaço. Por mais que falemos de globalização, a verdade é que os lugares têm sua marca própria. E ela frequentemente absorve os nativos. E o ser humano tem a impressionante característica de viver o local como se ele fosse o limite último de todas as coisas (mesmo que, conscientemente, ele saiba da “imensidão” do espaço que “existe por aí”…). Para captar e viver a narrativa que circula pelos lugares de pertencimento é preciso tempo, exposição e, claro, domínio da língua (num nível que vai muito além da linguagem do garçom, recepcionista etc.).

Então, o turista vive uma situação indefinida, entre o espaço e o lugar. Como turista, tento observar e “entender” o que os nativos estão fazendo. Pelo fato de ser ocidental, de ter sempre vivido em cultura ocidental, consigo reconhecer certos sinais que me dão alguma orientação (quem não reconhece um McDonald’s, independentemente do lugar em que está?). Em outros casos, é difícil entender – e, se tentar observar com um nível cada vez maior de detalhes, menos consigo entender, apreender. Por exemplo, um vendedor de souvenirs de Roma pensa a mesma coisa sobre sua atividade como o faz o vendedor de souvenirs em Londres? Na verdade, como turista, temos de fazer imensas generalizações; não conseguimos olhar no detalhe. Não conseguimos apreender o lugar e suas narrativas. Isso é desconcertante e agoniante.

[To be continued…]

Prefiro ouvir a falar (#19)

Sobre o amor

Estive em Assis (Assisi, em italiano), a cidade-natal de São Francisco (de Assis…). A pequena cidadezinha é absolutamente maravilhosa. Li em algum lugar que “há pouco a fazer ou a ver em Assis”, mas discordo completamente: a vista é repleta de reflexão; a cidade é silenciosa, mas de um silêncio particular, que nos chama, nos convoca na verdade, a pensar. Claro que, para isso, é preciso superar o tempo presente: é preciso, por exemplo, esquecer ou abstrair o fato de a pequena cidade ter sido capitalizada pelo turismo, e de que você se esbarra, a todo momento, com gente de todo canto em busca de seus “15 segundos de flash”. Mas tudo isso é, com um certo esforço, superável.

Assis é uma “típica” cidade medieval; é cercada por uma muralha, e dá-se a impressão de que, desde sua fundação, ela já nasceu com vocação para o distanciamento, para o afastamento contemplativo. As casas são feitas, literalmente, de pedra, e logo se vê que não vieram para durar pouco. Por toda a parte, encontram-se franciscanos (refiro-me aos irmãos), mais de 800 anos depois da morte de S. Francisco, repetindo e seguindo seus passos: no refúgio da cidade, rezam pelo mundo…(inclusive uma pessoa que, mesmo sem ser frade, perambula pelas ruas com uma “missão penitencial pessoal”, o carismático Massimo Coppo!).

Fotos de Ila (minha esposa) e minhas

Arquitetura à parte, saí de Assis com uma certa dúvida sobre em que consistiria o amor a que tanto fez referência S. Francisco de Assis. Pensei em coisas como estas: seriam os frades, os franciscanos e beneditinos, as irmãs clarissas (não sei se é assim que são chamadas, as adeptas de S. Clara, também imortalizada na cidade), “negadores” da vida, no sentido de que, em estando em Assis, afastam-se da necessidade, pesada e muito presente, de amar no cotidiano, o cotidiano, com toda sua confluência de impedimentos? Seria mais plausível amar à distância, por assim dizer, do que do coração da vida corriqueira? Qual o objeto do amor, qual seu propósito? Amar no (ou do) desprendimento?

Saí de Assis com a sensação de que a experiência induzida em mim por essa cidade precisa de algum nível de generalização, precisa ser transportada de lá para o resto do mundo e para as outras contingências de nossas vidas. É possível “amar” sem a bela e abundante visão dos vales da Úmbria, onde está localizada a pequena cidade? Seria possível amar de dentro de um carro apertado, no engarrafamento de uma grande cidade como S. Paulo,por exemplo? Seria possível amar SEM um objeto definido? Por exemplo, amar a mulher com a qual você está (ou o homem) pelo fato de amar, verbo intransitivo? Amar sem esperar nada em troca (como falou S. Francisco… e tantos outros antes e depois dele), perdoar sem esperar nada em troca, simplesmente deixar-se, entregar-se ao mundo e à sua maravilha (como criação de Deus, na perspectiva cristã)?

Não tenho respostas para nenhuma das questões. Nem do porquê elas vieram a mim, exceto pela minha “exposição” (em elevadíssimo bom sentido) à Assis. Acho que tudo estaria resolvido se, simplesmente, a própria cidade de Assis “se internalizasse” em mim – mas nossa dependência do lugar não é desprezível. Talvez seja por isso que muitos monges/frades não saiam de suas selas, fiquem a olhar para o horizonte, para o “desvelar da criação”, daí voltando novamente para dentro de si-mesmos. Ou talvez eu esteja subestimando a experiência religiosa…e haveria formas mais sutis de transcendência na vida cotidiana. Sem essa transcendência (que você, mesmo sem grandes “treinos” em meditação ou algo que o valha, consegue em Assis!), a vida cotidiana assume talvez sua principal característica: a total falta de sentido/propósito.

Amamos, na vida cotidiana, desde que tenhamos um objeto para este amor: eu te amo se você me amar de volta; faço-te algo se você me der algo em troca; ou faço-te coisas para que você não faça outras para mim…A vida cotidiana, em geral, reflete a “ontologia de um ser social” que é, no fundo, um ser econômico, calculador, instrumental, IMANENTE. Por mais que se fale em “mercado futuro” (na bolsa de valores…), a economia é bastante imanente…só que, ao mesmo tempo em que isso a torna desprovida de grande valor “místico” (o sentido da vida não está, decerto, na economia, ou não deveria estar, contra qualquer bom senso antropológico), ela reflete o que somos na modernidade. E nada mais avesso à Assis. Só um último exemplo: em Assis, cobrar para entrar numa igreja, para conseguir recursos (como nos museus, que vendem coisas para arrancar dinheiro das pessoas), é uma contradição METAFÍSICA!

Seja como for, Assis é mais do que um simples destino num guia de turismo; para mim, Assis foi uma verdadeira experiência religiosa, mas sem religião, se é que me entendem…

Grupo de referência: miopia necessária?

Uma rápida reflexão, de passagem mesmo, sobre a importância, por vezes implícita, de nossos grupos de referência. Um grupo dessa natureza é, segundo a psicologia, aquele a cujos padrões recorremos para medir nossas próprias conquistas, nosso próprio comportamento, também nossos ideais (valorizamos aquilo que nosso grupo de referência valoriza). Contrariamente, tememos ou desmerecemos aquilo que nosso grupo de referência desmerece ou não valoriza.

Um grupo de referência está ligado à nossa socialização primária – não se refere à “sociedade” mais amplamente falando. Conhecemos as pessoas de nosso grupo de referência, muitas vezes convivemos, no dia-a-dia, com elas. Um exemplo pode ocorrer no trabalho: as pessoas com quem trabalhamos por vezes tornam-se nosso grupo de referência, mas pode também ser nossos amigos, acho que até mesmo nossos familiares.

Se, em meu grupo de referência, as pessoas valorizam certos “outputs”, a tendência é que eu também o faça. Existe certa pressão de grupo para isso, mas também certa identificação de nossa própria parte: voluntariamente, digamos, nós aspiramos coisas semelhantes, e, mais importante, nos comparamos – eis aí um mecanismo psicológico-chave na nossa relação com nossos grupos de referência! Esse mecanismo tem um efeito interessante: ele faz com que nós e nosso grupo de referência nos tornemos, ao mesmo tempo, similares e diferentes. Seria mais ou menos a mesma coisa que acontece em nosso processo de constituição identitária – somos iguais/semelhantes a certas pessoas, e diferentes de outras.

Em situações de ambiguidade, tendemos, mais do que habitualmente, a recorrer à visão, à métrica, oferecida por nosso grupo de referência (ou aquela que imaginamos/percebemos).

Bom, eu disse tudo isso para completar agora: ao mesmo tempo em que é importante se fixar em certos padrões de grupos de referência, a certas balizas, especialmente afetivas, representadas por esses grupos, também representam um risco à individualidade. Nesse sentido, sigo aprofundando meu post anterior, no qual discuto a “incapacidade de ficar só”. Pois grupos de referência, além de instáveis, podem nos desviar de nossos próprios projetos.

Nos grupos de referência, ao sermos acolhidos ou ao nos espelharmos, visamos a algum tipo de reconhecimento. Porém, grande projetos de vida nascem do interior, nascem da solidão interior: eles miram paisagens mais distantes; desejam altitudes mais elevadas, onde o ar é mais rarefeito e onde não há muitas outras “formas de vida” em que se inspirar. Esse mergulho interior é, na verdade, uma reelaboração criativa do que recebemos do mundo.

Claro que tal projeto não “nasce da cabeça” do indivíduo; mas há uma certa dinâmica, segundo a qual, do mergulho em si, e da visada beyond ou au-delà de nossos grupos de referência, nascem obras significativas para si e para o mundo. Só para fechar com um exemplo de Nietzsche: ele dizia (mais ou menos, estou escrevendo só de memória) que precisamos tirar, no mínimo, 300 anos de pele histórica de cima de nós (haja acúmulo de “outros significativos”, de legados de grupos de referência…) para podermos enxergar as coisas com mais clareza. Ou então que precisamos subir em alta altitude, ver de cima, com o olhar das aves de rapina (que, até onde sei, não costumam “andar” em bandos)…

 

Despedindo-me da Toscana…

Belíssimas fotos feitas pelo meu amigo Maurício Serafim, em sua visita a nós no final de semana, da varanda da casa em que estamos, minha mulher e eu, hospedados aqui em Serre di Rapolano, na região da Toscana (SI), de onde, dentre em breve, estaremos nos despedindo para seguir viagem…

A incapacidade de estar só

Um amigo, que é religioso (mas racional), me disse, em uma visita que me fez neste final de semana, que uma boa descrição do inferno é quando não se sente a presença de Deus, ou se sabe que Ele não está presente. Metaforicamente, o inferno é a condensação de escuridão viva, vazia, a solidão absoluta – uma forma suprema de desamparo.

Gostaria de refletir um pouco sobre isso. Não de uma perspectiva teológica, sobre a qual nada mais conheço desde que abandonei o seminário, mas psicológica.

O desamparo, e a solidão em que ele está envolto, pode ser apresentado como a mais pura percepção da consciência sobre sua própria finitude. O desamparo, portanto, é corolário de perceber-se indivíduo, “desligado” de alguma “totalidade” – o inverso do pensamento oceânico discutido por Freud. Religião, como se diz, implica em re-ligar, em repactuação constante em torno de Deus unitário (ou em torno da Santíssima Trindade, para os cristãos). Não estranha, portanto, que diversas comunidades religiosas vivam, ainda hoje, um sentimento comunitário, uma espécie de fogueira a aquecer na escuridão e no frio do atomismo social, da serialização individual.

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Não é à toa também que, na ausência da religião (ou como seu sucedâneo), haja a presença da República. Para mim, que não sou erudito o suficiente, tenho como exemplo disto a França, onde a República assumiu, em sua história, um papel de fiador social muito poderoso. Na ausência da República ou de uma religião forte, resta aos indivíduos o Estado. Sem este, a barbárie, como se sabe após séculos de pensamento político (filosofia política).

Uma forma perigosa (em termos psíquicos) de desamparo é quando a consciência “desampara-se de si mesma”. Quando não encontra, em si mesma, o estofo  necessário para uma vida significativa (com sentido). Esta situação seria o equivalente do “inferno sem Deus” que meu amigo me descreveu. O inferno dentro de si – isto é, a escuridão interior. Claro que falo de uma escuridão em sentido metafórico.

A solidão, o desamparo da consciência (a descrença em si, a incapacidade ontológica de identificar um solo em que pisar, com “objetos bons” internalizados, como diria M. Klein), reflete na incapacidade de estar só. Para fazer face ao vazio interior, diversos “recursos” estão à disposição da consciência: fluxos fantasiosos de pensamento; imaginação megalomaníaca ou então auto-punições severas; adicção; ansiedade [por definição, um medo sem objeto, difuso]; etc. E não necessariamente estamos falando de psicopatologia – quando muito, de uma psicopatologia não severa. O indivíduo, incapaz de ficar só, luta como pode para adaptar-se ao ambiente.

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O desamparo, mesmo sem recorrermos a uma linguagem religiosa, é, em suma, a necessidade de ter de viver uma vida na finitude de um corpo e nas restrições impostas, contingentemente, pelo mundo. É a agonia, a percepção do tempo que passa e a incapacidade da consciência ligar-se a objetos externos, e de ligar objetivos externos.

Para encerrar, e voltando à metáfora de meu amigo, acho que não precisamos ir muito longe, na teologia ou algo assim, para compreender o que é o “inferno”, esta construção enigmática que, entre outras coisas, simboliza a incapacidade de estarmos sós, com nossas consciências, e “desligados” de outra realidade/objetos/pessoas.

Prefiro ouvir a falar (#18)


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