Prefiro ouvir a falar (15)

Birdon

Prefiro ouvir a falar (14)

Não misturemos! Um manifesto pela individualidade radical

Primeiro, vejam este vídeo – bem interessante, cuja “filosofia” é de não misturarmos certas coisas, pois não dariam nenhum pouco certo…

Agora, eu gostaria de completar com minha “lista de desejos” do que eu acho que não deveríamos misturar. A premissa básica é: eu sou eu, você é você. Sim, somos seres independentes, embora interligados de algum modo. Mesmo assim, ser independente quer dizer: a) que você, e só você, sente uma dor; b) que só você, e somente você, vai morrer do jeito que você vai morrer; c) que nada, nem com a melhor das filosofias exóticas, pode garantir que você sinta algo que o outro sente, e vice-versa; d) que apenas você sabe o que pensa, acredita nas coisas que acredita (embora viva imerso num mundo de significados compartilhados). Posto isso, passo à minha lista ou (arrisco dizer) “oração” (sim, pois são muito mais desejos do que práticas cotidianas…).

Não vamos juntar, não vamos confundir…

1) Seu fracasso com meu sucesso; ou meu fracasso com o seu sucesso, a menos que eu seja o explorador, ou que eu seja o explorado;

2) Suas experiências pessoais, sobre o que quer que seja, com minhas crenças e valores – por mais que estejamos numa mesma cultura ou sub-cultura, é problema seu aquilo em que você acredita;

3) O caso particular com o caso geral: as regras de sua vida não necessariamente se aplicam à minha; seus medos, suas angústias, sua maneira enviesada de ver a realidade, não necessariamente têm a ver com as mesmas coisas que ocorrem em mim;

4) O seu mundo com o meu, suas fraquezas com as minhas, suas forças com as minhas;

5) Seu delírio com o meu delírio;

6) Sua experiência de vida, sua “senioridade”, com a  minha experiência de vida; você fala de um lugar muito seu, de uma mesquinharia que é só sua, não minha; as minhas, delas cuido-as eu;

7) Seu desejo de agradar, de “ser legal” (para ganhar alguma coisa), com minha ousadia, meu desejo de te falar que “F.U., eu falo o que penso”;

8) Seu gozo com o meu (leiam Lacan para entender);

9) Seus critérios do justo, do certo, do bonito, do feio; suas ideias sobre o que é melhor ou pior – não generalize, indutivamente, a partir de si mesmo. Não se ache um “exemplar” da espécie – lute pela impessoalidade gritante, pelo “imperativo categórico”;

10) Sua hipocrisia com a minha.

Uma coisa eu te digo: como a vida é um grande e insidioso jogo de espelhos. Como nos confundimos, como nos projetamos, nos alienamos, nos “externalizamos” em supostas regras “coletivas”, “compartilhadas”.

Alguém conhece poder maior do que ser um indivíduo?

Prefiro ouvir a falar (13)

Professor, pesquisador, profissional

Será que ser pesquisador de psicologia equivale a ser professor de psicologia? E quanto a ser um profissional de psicologia? Acredito que não sejam as mesmas coisas. Correspondem, as três, a papéis distintos, com impactos diferenciados em termos de aprendizagem.

O pesquisador olha para um fenômeno e se pergunta: por que ele ocorre? Quais forças o determinam? Como pensar em sua evolução/desenvolvimento ao longo do tempo? Para tudo isso, deve colocar tal fenômeno contra o pano de fundo de uma teoria, e, com esta, fazer uma opção pelo seu entendimento do real. A pesquisa é lenta, segue um ritual próprio.

O professor, em seu turno, é um transmissor do saber estabelecido. Não significa, como alguns pensam, que apenas reproduz, repete. Pode até acontecer, mas, efetivamente, não precisa ser assim. Quem já deu aula e levou esta atividade a sério sabe que é, sim, possível produzir conhecimento à medida que se fala sobre um assunto, que se interage com o aluno. Uma aula bem dada, num bom entrosamento aluno-professor, permite grande aprendizado – ainda mais para o professor, um ser cuja ação é, sobretudo (nas humanas), linguística.

E o profissional? Este deve lidar com problemas práticos, determinados por diversas forças: econômicas, políticas, institucionais, pessoais, interpessoais. A realidade se apresenta ao profissional como um caos relativamente organizado, mas, ainda assim, problemático. O profissional muitas vezes não tem tempo para “rever a literatura” para saber o que outros fizeram ou recomendam que se faça para o melhor resultado. Profissionais atuam no âmbito do cotidiano, e este é totalmente indiferente a matrizes teóricas, epistemológicas, etc.

Para mim, há um salto imenso do pesquisador para o profissional. Em ciências humanas, dizer que a pesquisa “sustenta” a prática do profissional é, no contexto brasileiro, uma ignorância. Uma inverdade. Ao mesmo tempo, poucos profissionais realmente pensam suas práticas; poucos têm o espírito e a disposição para ver a realidade e suas “demandas” com o olhar de quem hesita (diante do saber). A difusão da pesquisa para a prática é, institucionalmente falando, uma piada. Não é à toa que universidades se fecham em si mesmas.

Uma saída é o pesquisador vivenciar outros papéis – de parceiro do profissional, por exemplo – mesmo com as dificuldades acima apontadas. Há riscos: o pesquisador-consultor; o pesquisad0r-palestrante; o pesquisador-vedete. Seja com for, há necessidade de outras competências: um ótimo pesquisador, entre quatro paredes de uma sala de aula de pós-graduação, se reduz a pó quando não consegue articular capital (humano, social, político, etc.).

Da pesquisa à ação: única via?

No Brasil, é fato que as universidade federais e estaduais, em suma, públicas, são os principais atores a investir na pesquisa. As empresas o fazem pouco, se é que o fazem.

Ao mesmo tempo, é também crítico o distanciamento entre pesquisa e ação. Hordas de estudantes vivem a levantar a voz contra a universidade, pois estas “focam demais” na pesquisa. Desinvestem do ensino, fazem pouco caso da prática.

“Prática” é uma das palavras mais ambiguas que existe. Depende muito da interpretação. Para uns, refere-se às “demandas do mercado”; para outros, à ação propriamente dita, implicada em cada nicho profissional.

Ora, pesquisa, em algumas áreas, tem conexão imediata com a prática. Por exemplo, pesquisa básica pode, com o tempo, gerar subsídio para o desenvolvimento de novas tecnologias com impacto na vida cotidiana.

Mas o que dizer das “ciências humanas”, onde incluímos a psicologia?

Na psicologia, a coisa parece mais complicada, pois nem sempre se vê o “nexo causal” entre pesquisa e prática. Esta segue lógica distinta da lógica da pesquisa: a prática acontece; a pesquisa é (quase) sempre uma rememoração da prática passada.

O aluno, quando está em estágio, se angustia porque a pesquisa parece pouco lhe assistir diante de demandas concretas. Muitas vezes, é ao senso comum, ao “bom senso”, que acaba tendo de recorrer. O senso comum/bom senso reage rápido; resolve (ou faz de conta).

Em tese, a ação do psicólogo profissional (e de outros) deve se basear em evidência. Deve levar em conta o conhecimento disponível, que propõe conexões entre fenômenos. Assim, se um professor tem um aluno que “não aprende”, um laudo psicológico é, frequentemente, demandado. Com o laudo, que se faz com base em “ciência”, o psicólogo profissional saberá instruir seu “cliente” (o professor, por exemplo).

Na prática, as coisas não funcionam assim. Na prática, a interpretação da ação recorre a outras fontes, principalmente a fontes tácitas, decorrente de internalização de saberes psicológicos (no exemplo, sobre o processo de ensino-aprendizagem). Em cada interpretação, um projeto de ação se configura.

Na prática, o conhecimento não nos assiste integralmente. Precisamos nos arriscar: arriscar a nos colocar como “agentes”, como elemento terciário nas relações (educacionais, profissionais, de saúde, etc.).

No fundo, as coisas elementares são, como sempre, simples: tudo pode ser reduzido a “acontecimentos”,  a circunlóquios diante do “real” (sempre se nota tal “real” quando estamos diante de problemas ou desencaixes práticos). Como vamos “lidar” com tais acontecimento, eis aí outra questão.

No fundo, nossa vida cotidiana, as entranhas do funcionamento de nossas instituições, é baseada na premissa de uma racionalidade mínima, enchuta. Porém, ela é frágil, delicada, limitada. No fundo, giramos todos em volta de tentativas, discursos, falas, interpretações. Não há, a desgosto dos obsessivos, nada a garantir uma conexão essencial entre fatos, entre “práticas”.

Sistemas peritos são, como dizia Giddens, assentados na base de profunda confiança, uma confiança ontológica. Mas eles nos desapontam. Mesmo a pesquisa, mesmo ela não é uma única (ou privilegiada) forma de regulação/organização do real.

Quem vai dizer isso a nossos pesquisadores?

Ficções 2

Eis que encontro outros registros de R. Desta vez, ele relata estar indignado com o sorriso do espaço público, ou melhor, no espaço público. R. está convicto de que o sorriso, sob certas circunstâncias, é o inverso, o engodo, ou o malogro, da sinceridade. O sorriso é o cúmulo da parvice, na concepção de R. Quanto mais se sorri, e aqui o “sorriso” deve, segundo R., ser interpretado/tomado em sentido amplo (como um gesto de conveniência/conivência ao outro), menos se tem de controvérsia e sinceridade.

É histórico. Por detrás do sorriso elogioso, esconde-se a convicção, cínica, de que o outro é um boçal, mas de quem você precisa para alcançar seus objetivos mais “pançais” (de pança, segundo R., e em sintonia com post já publicado aqui sobre o tema). E o sorriso do “rosto”? Por exemplo, para Levinas, o rosto, o semblante, é o ícone da alteridade, do estranho. O rosto humano nos causa uma reação inevitável, nos interpela à alteridade. Mas, para R., tudo isso é literatura. Para R., o sorriso, sob certas circunstâncias, é puro ocaso.

Não era minha intenção; não gostaria de “questionar” os registros de R. Mesmo assim, eu lhe dirigiria, mesmo que a posteriori, um questionamento: e então, R., devemos, todos, nos tornar, nos assumir, carrancudos? É difícil de responder a isso apenas com os registros póstumos de R. E nem acho que o próprio R. teria uma resposta trivial para a questão. Porém, o ato de ser “carrancudo” pode denunciar, sim, vis-à-vis os registro de R., um desencaixe. Primeiro, um desencaixe egoísta de si com a situação. Quanto a isto, pode ser que se explique porque certas pessoas simplesmente não conseguem “fazer-se” com outras, no aqui-e-agora: elas vivem num tempo atemporal (R. pede desculpas pela contradição!).

Não viver na temporalidade cotidiana implica em certa ignorância, em uma forma de alienação. Quem assim vive, prefere encontrar a energia em si mesmo, e vê a vida cotidiana como um pálido reflexo do instinto de sobrevivência, da eterna recriação, pela Vontade, de cenários fantasiosos em que nos enganamos, de forma “necessária”, na convivência e na estética das interações.

Quem vive para si, diz R. (no sentido acima aludido), é um metafísico. Essa pessoa impõe uma verticalidade nas situações, um eixo magnético, carregado em sentido inverso, que expele, a partir de si, tudo o mais como supérfluo. A verticalidade, o mergulho “no si”, é, metafisicamente, superior ao viver na horizontalidade, na orgia da vida cotidiana. É assim que pensa R.

A segunda forma de desencaixe é entre o sujeito e o ator, entre o eu e seu papel. Para R., representar é, por definição, uma forma de corrupção. Mas o representar pode ser, questiono-te R., uma forma de verdade. A verdade por contingência. A verdade histórica. A verdade tecida pela pele secular que se interpõe entre nós e o outro num determinado momento desta vida na terra.

A discussão, com certeza, seguira para bem alhures, no caso de eu continuar a descrever os relatos de R. quanto ao tópico. Vou parar por aqui. E com um desafio: e o que dizer do rosto “carrancudo” motivado por uma dor de barriga? Por que esta forma de egoísmo é tão atávica, anímica, e, ao mesmo tempo, tão socialmente “palatável”?

*** Eu, proprietário deste blog, apenas relatei o que tinha aqui escrito em algumas anotações antigas, referentes à minha convivência com R. Em Ficções, vou revelar a vocês outras coisas bem estranhas de R., um grande amigo meu da infância e adolescência.

Cultura da criança

“A família brasileira não lê. Nós temos a internet que pode ser a fonte da vida e do conhecimento, mas o computador é usado como brinquedo. Muitos pais não percebem, mas seus filhos se tornaram idiotas”

A frase acima foi dita por Ziraldo ao UOL, por ocasião da Bienal do Livro que acontece neste instante em SP. O pai do “garoto maluquinho” acerta ao identificar a parte de um fenômeno bem mais profundo. Na frase, está contida a ideia de que os filhos, por cada vez mais não saberem ler, estão destinados, para ganhar a vida, a jogar futebol ou então a lutar no UFC.

Analogias ou metáforas à parte, há uma outra parte do mesmo fenômeno, interligada com esta. Os pais fazem dos filhos o centro de suas vidas. Talvez, pelo fato de terem vivido num período de transição (daquela época em que criança tinha lugar de criança para uma época em que os pais, movidos por culpa, querem dar à criança tudo o que não tiveram), esses pais não saibam, não queiram ou simplesmente não consigam tirar seus rebentos de seu foco primário de atenção, perdendo, inclusive, para o trabalho (aliás, um grande “adversário” da família é justamente o trabalho…veja o caso crescente de jovens que optam por não terem filhos ou os adiarem até “se estabilizaram na carreira” – ou entrarem num concurso público!).

Nossa sociedade parece, de mais e mais, uma sociedade voltada para as crianças, para o “futuro e a esperança”, como se diz frequentemente em relação às crianças. Nossa vida social está se tornando tão ridícula que “a melhor parte de nós” é devotada aos filhos – isto é, o sujeito, ao ter para si que está cuidando bem de seus filhos, sente-se que alcançou uma espécie de “glória” terrena, mesmo com todos os sofrimentos implicados em ter um filho. Bom, há quem diga que ter um filho é o gesto máximo de altruísmo. Eis aí uma coisa que ninguém vai me convencer a acreditar!

Com a falência ou, sendo otimista (ou polido), com a mutação do significado de “viver juntos em sociedade”, os projetos ou ideais de construção da subjetividade voltam-se, mais uma vez, para a esfera privada, aquela da criação dos filhos. A criação destes, e as fantasias envolvidas, passam a nutrir a própria união dos casais, que muitas vezes já não têm mais outra fonte de contato entre si que não essa (pois já faz tempo que o casamento deixou de ser uma obrigação moral). Filhos tornam-se, paradoxalmente, mediadores e motivos de uniões e separações. Alguém pode dizer que um filho é “trans” casamento: larga-se do esposo/mulher mas os filhos continuarão a ser filhos…

A questão é que mimamos nossos filhos em exagero. Infantilizamos nossos filhos, mesmo quando já adultos. Estamos criando uma sociedade de imbecis, adultos mimados, dependentes, com dificuldade de lidar com o sofrimento, incapazes de assumir algo que seja um pouco maior do que seus egos paparicados. Visite um shopping no final de semana e vai entender: ou você vê “famílias” (leia-se, pais e filhos) curtindo as vitrines e as “alamedas de serviços”, ou você vê casaizinhos felizes, adolescentes, vivendo seu momento de fantasia às custas dos pais, em casa (e “felizes e aliviados”, por saberem que seus filhos estão “seguros” no shopping).

Minha dúvida é: o que fazem as duas principais “instituições” responsáveis pela transição para a vida adulta, universidades e organizações de trabalho? Quem me responde?

Em uma coluna sua recente, Contardo Calligaris nos ajuda a pensar em possíveis respostas (ou em mais dúvidas!…)

“Viver para a pança”

É uma frase do colossal Anna Kariênina, de Tolstói. “Viver para a pança” significa viver conforme suas próprias necessidades, isto é, conforme o que é bom para mim. Outra forma de falar de egoísmo? Talvez. O personagem, quando diz isso, contrapunha ao ‘viver da pança’ o viver para o ‘espírito’, para o ‘outro’, para Deus.

Viver para a pança é viver conforme a imanência, conforme o acordar-trabalhar-gozar-dormir. O “gozar”, aqui, pode ser uma ironia, embora, para alguns poucos, sublimar seja possível e a “pança” fique em segundo lugar ou em outro lugar que não no centro do coração.

Viver para a transcendência, e o que isto significa? Claro que falar em Deus, no contexto da obra mencionada de Tolstói, talvez não seja em sentido figurado – talvez seja, realmente, Deus. Para Tolstói. Para nós, e tentando não incorrer num egoísmo metafísico (que substituiu Deus/vocação por … uma profissão, como dizia Weber), Deus é o não-eu. Mas é muito complicado porque, muitas vezes, pensamos em Deus-não-eu como um conjunto “dialético” com o eu: ainda aceitamos o eu, ainda o reconhecemos em sua singularidade e valor.

O não-eu não é, obviamente, a loucura. Talvez seja o inconsciente, para alguns; ou então outras versões de inconsciente, que, embora não metabolizado na linguagem da psicanálise, refere-se a tudo aquilo que é o não-eu e que, não obstante, “tem de” ser lidado no âmbito do eu.

Paradoxalmente, o não-eu é “condição” para o eu, ao menos em nossa subjetividade/cultura moderna.

***

Post scriptum: Freud, Marx, os grandes “pensadores”; os templos magníficos, as torres e castelos ainda existentes, resquícios-relíquias de um tempo “sagrado” (quando Deus ainda estava no mundo, bem vivo, digamos assim, ao contrário de Nietzsche); as grandes idéias em suma: o que são sem a pança? Marx sem a revolução é literatura; Freud diante da “pedra do real”, insuperável e intransponível, é literatura. A literatura é a perversão institucionalizada do signo.


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