O ovo que chocou

O que é uma pessoa? Esta é uma pergunta que, na aparência, parece banal. Uma pessoa é, claro, um ser vivo. Um corpo. A materialidade deste último é inegável e, por si só, é condição necessária, embora não suficiente, para que haja uma pessoa. Primeiro, porque esse corpo precisa ser “montado”. Refiro-me a “montar” no sentido de um cavaleiro que monta sobre um cavalo. Há, nesse gesto, o assumir controle sobre o cavalo. Sei que esta metáfora pode ser capciosa, pois, de algum modo, poderia sugerir que nosso corpo precisa ser dominado (a mente dominando o corpo etc.). Mas considere a metáfora de outra forma: montar é assumir. Como uma modelo em uma passarela, que precisa incorporar, vestir, empossar-se, tomar conta de um personagem do qual seu corpo será o veículo, o signo.

Segundo, o corpo precisa ser colocado em situações. Precisa interferir, agir, coexistir, mas essencialmente entrar em contato com o mundo físico e social. Ou seja, o corpo, e por extensão a pessoa, é um meio de ação, uma forma de mediação com a realidade. Interessantemente, nosso corpo é um duplo: mediação entre o “eu” e o mundo, mas também entre o sujeito e si mesmo – como em “eu me vejo”. Quem é esse “eu” que vê? Ele vê o “mim”. Mas o que, ou quem, é esse “mim”? O “eu” vê o “mim” em um espelho, digamos. Nosso corpo é aquilo que gostaríamos de ver? Por que nem sempre conseguimos assumir o corpo que temos? Em outras palavras, por que não conseguimos “montar” nosso corpo? Por que o “eu” está em oposição ao “mim”? Enxergamos uma coisa (um objeto real no mundo, nosso corpo), mas vemos outra no lugar. Esse exemplo evidencia a duplicidade da experiência da pessoa na sua própria corporeidade – mas isso não se limita a ela, obviamente.

Uma pessoa é também uma projeção. Uma projeção de inúmeras possibilidades a serem realizadas. A pessoa é uma potência. E é aqui que gostaria de chegar. Uma pessoa pode ser como uma cesta de inúmeros ovos que podem ou não chocar. A trajetória em que estamos no momento não é nada além de uma possibilidade realizada, dentre tantas outras que não o foram (os muitos ovos que não chocaram) mas que ainda existem no cesto, como potências.

E o que ocorre quando o número de ovos não chocados cresce tanto que a pessoa prefere negar-se a si mesma em vez de empreender em uma direção específica? Ela deixaria de ser uma pessoa? Ou então, quando diz para si mesma: “Todos os ovos têm a mesma probabilidade de chocar. Além disso, um ovo é completamente intercambiável por outro. Qualquer um poderia ocorrer. Tanto faz.”? Com pensamentos assim, a pessoa conclui que sua trajetória atual é tão aleatória e sem valor relativo que poderia muito bem não ter ocorrido. O mundo de possibilidades transforma-se, então, em um mundo niilista. Um mundo de indiferença.

Aqui fica uma reflexão: se você está em uma certa trajetória de vida, ela é, com certeza, um dos ovos que chocaram. Poderia ter ocorrido tudo de forma diferente? Incrivelmente diferente? Sem dúvida. E, se examinar a fundo sua trajetória, descobrirá que, por trás das “grandes decisões” da sua vida, houve dezenas de outras pequenas decisões banais e impensadas (ou pensadas com justificativas duvidosas) que, juntas, levaram à grande decisão.

Você pode viver outras infinitas vidas? Aqui as coisas se complicam. Primeiro, porque talvez não tenha tempo suficiente, independente da sua idade cronológica. Ou energia, inclusive física. Segundo, porque a outra trajetória que viesse a escolher cairia no mesmo problema da anterior: poderia ter sido diferente. De um lado, o excesso de confiança em si mesmo merece escrutínio. Pessoas assim podem estar escoradas em ideais e desejos alheios, nos quais baseiam-se tão intensamente que acabam sendo “montadas” por eles, e não o contrário. Por outro lado, pessoas extremamente inquietas, autocríticas e permanentemente problematizadoras de si mesmas podem agir como apostadores frustrados: sabiam que estavam fazendo uma aposta – e uma aposta pode dar certo ou errado –, mas, quando perdem (no nosso exemplo, quando materializam uma trajetória concreta), ficam inconformadas.

Uma cena do filme Our Sunhi, do diretor Hang Sang-soo, cujo diálogo entre esse dois personagens inspirou este post, especialmente os próximos parágrafos. Credito da imagem aqui.

Como descobrir quem você é? Pegue sua trajetória atual e vá fundo, cave profundamente, vá até o fim, com tudo, com força. Se, nesse processo, você descobrir que algo deu errado, então você saberá quem você é, qual seu limite e o quão verdadeiramente “montado” você está nessa trajetória, ou se, na verdade, foi simplesmente lançado nela como uma moeda jogada ao ar, dependente da pura aleatoriedade. Uma pessoa deveria ser mais do que uma aleatoriedade. Mais do que um mero acaso. Embora a vida seja exatamente isso: uma aleatoriedade que se materializou, deu certo e se firmou como algo que, retrospectivamente, dizemos que valeu a pena. E que fique registrado, apenas para efeito de argumentação: se não houver eternidade, onde a pessoa viveria para sempre tal como é hoje, então é isso que temos: uma única vida.

Agora, pense: diante da última frase, de que só temos uma única vida, qual é a recomendação mais comum? A de que devemos nos reinventar sempre. De que a mudança é a regra, a única coisa “permanente”. E aí, no final da vida, com o intuito de justificar essa visão rasa e cacofônica, típica de uma época volátil como a nossa, a pessoa diz que “viveu intensamente, com muitas experiências”. Sabe o que eu acho? Falta o oposto: gente que não esteja o tempo todo querendo mudar, se reinventar, se “desconstruir”, etc. Gente que vá fundo em algo. Que se radicalize nesse algo e se descubra verdadeiramente no processo. Não precisamos de infinitos ovos para fazer uma omelete saborosa e nutritiva.

Feminilidade

Ultimamente, quando possível, tenho tentado assistir a filmografia do diretor sul-coreano Hong Sang-soo. Em algum lugar, vi que ele é chamado de o novo Ozu. Não sei se isso faz sentido, exceto que cheguei até ele por conta dessa associação, já que gosto muito do Ozu.

Até aqui, os filmes que assisti me causaram grande impacto, mas nenhum deles chegou perto de Virgin stripped naked by her bachelors (2000). Possivelmente, isso se deve à atuação da personagem central, em torno da qual a narrativa é estruturada – quer dizer, o filme ocorre da perspectiva da mulher. O mesmo ocorre em outros filmes igualmente brilhantes do diretor, em particular Nobody’s Daughter Haewon (2013), no qual a protagonista se envolve com um homem inseguro, incapaz de sustentar seu desejo.

Cena do filme Virgin stripped naked by her bachelors (2000)

Gostaria de deixar algumas impressões sobre Virgin Stripped. Como mencionei, a atuação de Lee Eun-ju, que interpreta Soo-jung, é excepcional. Foi só mais tarde que descobri que ela havia se suicidado aos 24 anos, e já se passaram exatos vinte anos desde sua morte. Isso me causou uma tristeza profunda.

De forma resumida, Soo-jung é uma roteirista para uma TV a cabo local. Ela é muito próxima de um produtor, e por meio dele, conhece um amigo rico, dono de uma galeria de arte. Esse amigo, Jae-hoon, se sente imediatamente atraído por ela. Atração essa que ele expressa de forma clara. No entanto, Soo-jung também nutre sentimentos por Young-soo, o produtor. Esse triângulo amoroso é contado através de um recurso frequentemente utilizado pelo diretor: a repetição de cenas, que oferece diferentes perspectivas sobre eventos semelhantes.

Soo-jung é uma mulher delicada, sensível e, em comparação aos homens à sua volta, mais madura. Além dos dois já mencionados, há também seu irmão e um amigo de longa data. Em sua essência, ela carrega uma feminilidade profunda, uma estética que pode ser interpretada de diferentes maneiras, dependendo do olhar do espectador. Um exemplo disso ocorre quando ela está na cama com Jae-hoon, que, sendo um mulherengo, a chama pelo nome de outra mulher. Naturalmente, Soo-jung fica abalada e se afasta. Jae-hoon, desesperado, sai à sua procura, e o vemos perdido nas ruas cinzas de uma cidade indiferente, tomado por um choque existencial. No entanto, na mesma cena, ela o reencontra e, de maneira surpreendente, pega sua mão. Nesse momento, parece que ele foi ressuscitado, resgatado de um abismo de alienação emocional, e foi a mulher que lhe ofereceu a chance de redenção, tirando-o da paisagem desolada e sem vida.

Os homens no filme, mesmo que não intencionalmente, acabam sendo agentes de violência contra ela, como no exemplo citado. Não se trata de violência física, mas da violência proveniente de homens perdidos em si mesmos. Eles crescem fisicamente, tornam-se fortes, conquistam status, mas nada disso os impede de serem, de certa forma, inseguros. A insegurança parece estar no coração do homem. Nos filmes de Hong, homens inseguros sempre se deparam com mulheres resolutas. Como é dito em outro de seus filmes, “a mulher é o futuro do homem” (Woman is the future of man). A feminilidade em Soo-jung, com sua serenidade, serve como bússola e guia em meio à névoa de uma masculinidade indecisa, taciturna e, muitas vezes, alcoolizada. Parece que os homens precisam de bebida para lidar com as complexidades sociais e afetivas.

O apego à vida

Fazia quatro dias que estava de pé em cima do telhado de um rancho. Foi levado até ali por puro instinto e sorte. A água do rio mais próximo subiu tanto que invadiu centenas de casa pelo caminho, incluindo a sua, da qual foi arrastado por um nado improvisado. Durante quatro dias ficou sem comer, sem beber e sem a menor chance de relaxar. Se descuidasse minimamente, caía sobre a água. E, caindo, muito provavelmente acabaria morrendo afogado. Quatro dias de músculos tensos, de dor nas quatro patas, cada uma delas com uma ferradura. Tais ferraduras, que em terra serviam de apoio firme, ali em cima do telhado eram uma ameaça de morte, pois tornavam tênue o ponto de contato com o telhado. Equilibrava-se sobre a parte firme deste último, composta por uma única madeira estreita e comprida. Não bastasse o malabarismo, também não parava de chover. Assim, encharcado, com fome, com dor e sede, ele permaneceu sobre o telhado. Ninguém veio em seu socorro, pelo menos não no início. Havia, como todo cavalo, sido projetado para desbravar a terra aberta, não para se manter rígido sobre um telhado, um ponto tênue que o segurava na fina navalha da vida. Portanto, não entendia absolutamente nada do que estava acontecendo. Só sabia que precisava ficar parado. Não podia dormir. Quatro dias de agonia, espanto, medo, paralisia instintiva, equilíbrio fatal. Fitava o entorno com seus olhos doces, obedientes a um mestre agora ausente. Encarava resignado a água. Via algumas pontas de casas despontando aqui e ali, elas também tentando ficar emersas. Os restos de alguns postes de luz. Virá alguém em seu socorro? Ele obviamente não poderia responder a esta questão. Mas sua intuição animal o fazia aguentar. Assim como o absurdo o arrancou do chão firme e da vida cotidiana de trotadas e trabalho duro, o absurdo o mantinha no cume do telhado. Naquele momento, sentiu-se profundamente sozinho. Abandonado. Um plácido, profundo e resignado sentimento animal. Não obstante, não saberia fazer outra coisa que não permanecer vivo. Manter sua vida, não importa a razão. Não era por saudade de seu antigo dono, nem por amor às pradarias em que trotava. Nem por apego a outros companheiros cavalos. Nem pelo capim que comia todo dia. Ou pela longa vida que ainda poderia ter pela frente. Era simplesmente porque não lhe parecia natural, instintivo, se deixar engolfar pela água suja. Não havia nele nenhum vestígio de impulso ao nada, à morte. Poderia ter morrido, é claro, mas se isso tivesse acontecido não seria por sua própria vontade. Estava agarrado à vida. Nada mais importava. Seu corpo simplesmente parecia saber o que fazer. Da água suja e mortal precisava escapar. Subir, escalar, ir até o último refúgio possível, fosse onde fosse, e ali permanecer. Sua permanência era sua prova de amor à vida, o amor animal, puro e profundo. Abaixo de si, o terror, a destruição.

Crédito da imagem aqui

O que uma mãe espera de seu filho?

Tragedy in life starts with the bondage of parent and child

É com esse ditado que o diretor Yasujirō Ozu começa seu filme The only son, de 1936. Nele, uma mãe faz tudo o que pode para enviar o filho para a escola – mas não porque ela desejava, mas sim porque o filho, ainda criança, praticamente a forçou a isso. E ela banca a aposta do filho. Vende suas humildes posses (uma casa), e passa a viver no local de trabalho. Graças a esse sacrifício o filho vai, de fato, para escola e se forma professor. Após muitos anos sem vê-lo, a mãe decide lhe fazer uma visita, em Tóquio.

A partir daí vemos, nas expressões da mãe, um misto de desapontamento, frustração e resignação. O filho havia se casado. Tivera um filho. Porém, morava nos rebaldes de Tóquio, e trabalhava como um professor de matemática à noite, em um colégio que, ao que tudo indica, não tinha status algum e ainda lhe rendia um salário com o qual mal conseguia sobreviver.

Para receber a mãe em visita, o filho precisa emprestar dinheiro de um colega. Um dinheiro que não dá para quase nada. Em solidariedade, a esposa vende seu quimono para arranjar um pouco mais de recursos para que pudessem levar a mãe para passear. E assim o filme vai se desvelando, em preto-e-branco, com o drama da frustração recíproca se instalando em ambos, filho e mãe, forçando-os a se confrontar com a realidade e a ressignificar sua relação.

Cena do filme. No fundo, a representação de uma fábrica. O trabalho interligando esses dois seres, misturados como numa neblina. O trabalho como um fio a ligar a sociedade japonesa do pré-guerra?

O que uma mãe espera de seu filho? Que ele seja alguém. Que suba na vida. Que tenha condições não só de sustentar sua própria família mas, se necessário, também dar suporte aos pais que envelhecem. Desde o nascimento, uma série de expectativas vão sendo destiladas pelos pais sobre seus filhos. Há um arranjo em que, do sucesso de um, há o sucesso do outro. E vice-versa.

Às vezes, filhos seguem pela vida tentando provar algo para seus pais. Tentam perpetuar aquele sonho que lhes foi impingido desde mesmo antes de seu nascimento. O desejo de fazer os olhos dos pais brilharem. De fazer com que esses pais encham a boca ao falar das suas conquistas. O orgulho da família. O que deu certo. Aquele de cujo sofrimento e sacrifício dos pais emergiu, fazendo tudo valer a pena e ter sentido.

No jogo de expectativas mútuas, vamos formando nossa personalidade. É muito provável que os primeiros desejos surjam desse contexto de profunda vinculação afetiva entre a mãe e o filho. Ocorre que essa relação primitiva é tão forte que ela imprime uma direção ao espírito do filho. Com o tempo, essa direção vai se travestindo de outros desejos, alguns dos quais, de fato, originais – digo, realmente desejo de um ser singular capaz de decidir seu próprio destino. Muitos dos desejos, porém, seguem nas trilhas deixadas no inconsciente pela relação mãe-filho.

Os desejos dos pais, de uma mãe em específico, são por sua vez ecos de sonhos mais amplos. Refletem o espectro da cultura. Em certos contextos, pais chegam mesmo a burlar a lei para ter seus filhos aceitos em colégios de prestígio. Outros pais entram em desespero com medo de que seus filhos fiquem aquém das conquistas dos filhos de outros pais. Há o pavor, o temor, do fracasso dos filhos. Em outras culturas, como talvez as orientais, se deposita um rigor descomunal sobre os filhos, que devem ser como vigas que envergam mas nunca quebram, como se deles dependesse a existência moral da família. Um filho que “fracassa” traria a desgraça da vergonha, um elo frágil para uma estrutura social que se fantasia inquebrável.

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Nossos pais podem ser nosso grande desafio, mas também nossas maiores fontes de aprendizado, um portal no tempo de nossa existência. São o acesso que temos àquilo que, na origem, era para ser nosso propósito, a razão de estarmos vivos. Eles têm o “blueprint” de nossa existência. Virar as costas para eles é só confirmar seu poder. Enfrentá-los é apenas jogar seu jogo. A reconciliação só será possível após o calvário da decepção, de onde então podemos emergir com alguma “síntese” provisória, com um projeto que tenha nossa genuína participação. Afinal, a vida começa no nascimento, não “antes” dele.

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Comentário extemporâneo, mas ligado ao assunto: sou da opinião de que a humanidade resolveria muito de seus problemas relacionados à desigualdade social e “familicídios” (do tipo Succession – a série) se os governos mundiais simplesmente decretassem que toda e qualquer propriedade que um indivíduo acumulasse em vida deveria ser, necessária e completamente, doada antes da morte do indivíduo. Porém, com um detalhe: nenhum descendente seria autorizado a receber absolutamente nada de seus genitores.

Imortalidade

Como explicar a imortalidade para pessoas simples? Você conseguiria fazer isso sem usar jargões religiosos ou filosóficos? Parece difícil, não? Pois o diretor Béla Tarr conseguiu, e de uma forma tão simples que você mal consegue acreditar. E ela está bem na abertura de seu Werckmeister Harmonies. Há mais de dez anos eu havia comentando um outro filme seu. A cena em questão está abaixo.

Como você pode ver, a escolha do diretor para tocar no tema da imortalidade foi o movimento dos astros, mais exatamente a Terra, com nossa Lua rodopiando a seu redor, e o Sol, ao redor de cuja órbita dançam todos os outros astros. Tentei assistir pequenos vídeos científicos ilustrando extamente esses mesmos movimentos, mas não é a mesma coisa. Nunca havia pensando na imortalidade desta forma, embora certamente essa intuição já estivesse dentro de mim. Talvez de todo mundo.

Em um momento da encenação, János Valuska, o ator representado aqui por Lars Rudolph, solicita o seguinte a seu espectador: Tudo o que peço é que você dê um passo comigo rumo à infinitude, onde a constância, a quietude e a paz reinam no vazio infinito. E apenas imagine que, nesse silêncio sonoro infinito, há uma impenetrável escuridão por toda parte.

Somos apresentados ao reino do vazio infinito. O Cosmos, que é, sob qualquer ponto de vista, um “ambiente” extremamente hostil. Essa hostilidade, e os limites aparentemente intransponíveis que ela impõe aos bilhões de planetas apenas na nossa galáxia (a Via Láctea), são, hipoteticamente, uma das razões por que nunca tenhamos sido contatados por outras formas de vida inteligente (assumindo, é óbvio, que elas existam). Esses diversos mundos são como ilhas isoladas umas das outras, cuja distância (cada vez se ampliando mais) e condições inimagináveis de seu entorno tornariam qualquer viagem, mesmo de civilizações supostamente mais sofisticadas que a nossa em termos de sustentabilidade energética, um beco-sem-saída.

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E então o ator introduz o Sol, dizendo: A luz brilhante do sol sempre irradia seu calor e luz no lado da Terra que está voltado para ele naquele momento. E nós estamos aqui, em seu esplendor. O nosso sol é um “farol” que ilumina o mar escuro. No caso da Terra, porém, ele a ilumina apenas em uma de suas partes de cada vez, as quais assim se revezam entre luz e escuridão. Mas há um acontecimento fantástico representado pela nossa Lua, que provoca uma “indentação” na esfera ardente do Sol. No início, essa indentação é pequena, mas ela vai ficando maior e maior. E então um evento dramático ocorre: a Lua bloqueia a luz solar. Temos um eclipse, que, como ocorreu recentemente no hemisfério norte, pode ser total.

Na Terra, o fenômeno provoca um espanto em todo o reino animal: O céu escurece, e então tudo fica completamente escuro. Os cães uivam, os coelhos se encolhem, os veados correm em pânico, correm, fogem em desespero. E nesse crepúsculo terrível e incompreensível, até os pássaros… até os pássaros também estão confusos e vão pousar. E então… Silêncio Completo.

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Imagine um período em que não tínhamos o conhecimento científico para explicar esse acontecimento. Nossos ancestrais devem ter se apavorado até os ossos. O que era aquilo? O primeiro humano que testemunhou esse evento deve com certeza ter imaginado que o mundo acabaria. Que a terra se abriria sobre seus pés, que era o fim. Imagine o desespero, sentir a escuridão engolindo sem aviso o dia, assistir os animais se recolhendo em debandada, a temperatura cair, o silêncio, a escuridão do universo enfim triunfando sobre nosso pequeno ponto luminoso no nada. Tenho certeza que esses primeiros seres pensantes devem ter vivenciado isso tudo como uma experiência profundamente religiosa, mesmo antes de religiões terem sido criadas oficialmente.

E como eclipses não ocorrem a todo momento, e considerando que os primeiros seres pensantes não tinham ainda uma cultura escrita e outras formas de transmissão, é provável que tais experiências de terror nunca tenham sido documentadas. Talvez alguns vestígios aqui e ali, feitos em alguma pedra. Realmente, não sei. A raridade (do ponto de vista da temporalidade de uma vida humana) de um eclipse tornava cada novo acontecimento um acontecimento novo, e igualmente desesperador.

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Mas, então, aos poucos, a lua vai se afastando daquele lado da Terra sobre o qual ela estava bloqueando a luz. Assim, a coroa radiante do Sol novamente atinge a Terra, trazendo de volta o calor, o verde e as demais cores. Os animais, que até ali estavam num reino de terror e pânico, à espera do pior, novamente colocam os pescoços fora dos buracos. Talvez, a princípio, ainda desconfiados, mas aos poucos vão retomando suas rotinas, e dentre em pouco já não se lembrariam mais de nada.

Para o ser pensante, porém, talvez não possamos falar a mesma coisa. Algo, por certo, havia de ter ficado gravado em seu espírito. Talvez a lembrança desse acontecimento o tenha transformado de algum modo profundo. Talvez um sentimento de antecipação passasse doravante a fazer parte de sua imaginação. Talvez ele tenha concluído que precisaria “fazer alguma coisa”. Não podia ficar carregando esse peso por onde quer que fosse. Talvez isso tenha lhe manchado tanto a alma que sua curiosidade exploratória tenha despontado com força e fundado seu caráter. Ele precisava descobrir o que era aquilo. Sua tenacidade exploratória passaria a ser proporcional a seu medo e a seu desamparo. Assim, uma profunda disciplina talvez tenha surgido, a disciplina que muitos milênios depois chamaríamos de disciplina científica. Na sua base, o terror, o desamparo, mas também a esperança, o desejo de se antecipar ao Cosmos. Ou ao menos de dar-lhe uma explicação, um sentido – isto é, um pequeno conforto, ainda que isso lhe revelasse a profunda contradição de sua existência, a contradição entre finitude e eternidade.

Como conclui nosso personagem: Emoções profundas penetraram em todos. Eles haviam escapado do peso da escuridão. O peso da escuridão: eis aí algo de que não se sai ileso. Aquela escuridão que nenhuma lâmpada pode combater, nenhuma vela, nenhum fogo ou tocha. A escuridão que escapa dos limites das espécies vivas. A escuridão impenetrável do Universo, que está “ali” a poucas centenas de kilômetros de nosso planeta. Com esse pensamento, certamente a espécie pensante não teria outro destino diferente do misticismo. Inicialmente, um misticismo delirante, algo que nosso cérebro nos permite de produzir. O delírio nada mais é que a representação mental, e sua relativa autonomia, de um acontecimento no mundo físico, pensamentos gerando pensamento e, no mesmo processo, sendo mascarados como pensamentos. Aos poucos, porém, o delírio vai cedendo, tanto na medida em que os humanos vão aprendendo a se sintonizar com o mundo físico mediados por instrumentos, como na medida em que eles vão construindo sistemas filosóficos – estes últimos, embora não necessariamente conectados imediatamente com o mundo físico, exploram cenários mentais possíveis para o lugar dos humanos em tal mundo físico e, mais importante, colocam-se a si próprios como pensamentos (sobre pensamentos).

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A escuridão nos amedronta e nos fascina. Na caracterização de Béla Tarr, porém, como você deve ter visto no vídeo acima, ela é também profundamente magnânima, num sentido transformador para um ser pensante. Pois se formos capazes de apreciar, mesmo que de modo indireto, o movimento dos planetas, as forças incalculáveis que estão em sua base, a harmonia resultante dessas forças, o simples fato de haver planetas com esse tipo de sincronicidade e perfeição… se formos capazes de penetrar nesse mistério, que é afinal materializado aqui na Terra na forma de reações e afetos, então isso nos abre a possibilidade de resgatarmos o sentido real de nossa capacidade reflexiva, seja na ciência ou em qualquer outra esfera. Aqui sim é o “universal” se manifestando no “particular”. A opção de um ser pensante por viver sua vida toda apartado dessa constatação, mergulhado em trevas e escuridão, em delírios individuais e coletivos, é a maior ironia, o maior “desperdício” a que nos encurralou nosso próprio cérebro.

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Na verdade, o movimento da Terra, da Lua e do Sol é muito mais complexo. Tudo tem a ver com o ponto de referência escolhido. Se você tiver interesse, assista o vídeo abaixo e se surpreenda!

Experimentos mentais, 4: O penguim

Uma cena do documentário Encounters at the End of the World (2007), do magistral Werner Herzog

Naquela manhã, como em muitas outras, ele havia acordado no meio de outros pinguins. Mal podia se mexer e logo esbarrava no companheiro do lado. Na verdade, jamais se poderia determinar quem havia se mexido primeiro. Dava no mesmo, no fim. Um mexe aqui, outro é mexido lá. Vice-versa. Uma grande massa que, se pudesse ser vista de cima, seria confundida com uma poça de petróleo. Quando o sol começa a despontar no horizonte antártico, nem parecia o sol todo majestoso que, na altura do equador, é tão voraz que parece querer engolir a Terra. Em fez disso, ali era um sol tão vestigial que mais parecia uma luzinha de poucos watts sofrendo para vencer a invasão da noite escura com tênues penumbras de clareza. Graças à mecânica dos corpos, ao frio que se torna menos frio, e à luz pálida que é logo refletida pela neve infinita, os pinguins começam a se mover. A massa preta vai se transformando em pontos pretos, que então vão se espalhando e se espalhando a ponto de a neve ficar parecida com a pele de um dálmata. A dinâmica toda é acionada pelo estômago, como sempre ocorre nesses casos. O estômago sincronizado desses pinguins faz pernas e barbatanas logo entrarem em ação. Os pontos pretos seguem um vetor predominante rumo a um penhasco, do qual pulam e se lançam como balas de canhão no mar revolto. Hora de arranjar comida. E assim essas aves, com a rapidez com a qual transitam da terra para o mar, tornam-se peixes ágeis e graciosos, cortando a água como lâminas. Mas ele não fez nada disso. Não, não. Inicialmente, ficou parado no mesmo ponto onde havia estado a noite toda. Na correria, foi chacoalhado um pouco para frente e para o lado, mas se recompôs. Tinha os pés firmes e bem posicionados na neve, a esse ponto já meio derretida em volta deles. Seus olhos ovais, combinando um preto com marrom, fitam perdidos a paisagem à sua frente. Uma paisagem hoje idêntica à de ontem, e de muitos dias antes. E, provavelmente, idêntica a de muitos dias a porvir. Branco à direita, à esquerda, na frente e atrás dele. Com um detalhe: lá à distância, atrás dele, a neve transita em declive, sendo então possível vislumbrar os contornos de uma linha de montanhas. De resto, o branco triste, frio, estéril e vazio. Ele fica olhando o nada por quase uma hora. Aqui e ali, mexe um pouco as barbatanas, como se estivesse imaginando o mar, ou combatendo algum inseto. Do nada, se vira no sentido oposto àquele trilhado pelos companheiros logo mais cedo – ou seja, o sentido das montanhas. E começa a andar. Simples assim: anda, anda, anda e, ao fazê-lo, vai balançando as barbatanas para se equilibrar, como se estivesse conversando em voz alta e gesticulando contra os próprios pensamentos. O corpo, embora siga mais ou menos em linha reta, oscila em torno de seu eixo, parecendo mais uma marcha do que uma caminhada. De passos curtos e rápidos vai seguindo pelo manto branco de neve. Segue em direção às montanhas. Vai num caminho sem volta, sozinho, longe para sempre de seus companheiros. Um caminho em cujo fim certamente encontrará a morte. Torna-se, irrevogavelmente, um simples pontinho na imensidão do cenário. Um simples pinguim, ora andando, ora dando barrigadas na neve para acelerar o ritmo, rumo ao branco profundo, ao silêncio, ao esquecimento.

Seres não pensantes

A vida na Terra, desde seu surgimento, é uma série de singularidades que nunca mais vão se repetir. Neste exato momento, um número quase-infinito de eventos estão acontecendo. Destes, pouquíssimos serão lembrados, sequer reconhecidos. E infinitos eventos ocorreram no passado.

Porém, cada evento singular é passível de ser identificado, descrito, até mesmo documentado. Se houver um Deus, com certeza ele representa as infinitas possibilidades de acontecimentos singulares, e cada uma dessas infinitas possibilidades são não apenas por ele antecipadas, mas especialmente acolhidas e dignificadas.

Nos recôndidos mais distantes da história, animais circularam por esta Terra. Cada um viveu esse mistério que é a vida. Interagiram com o ambiente, extraíram deste os recursos para se manterem vivos, interagiram entre si, muitos se reproduziram, outros vagaram solitários por vastidões sem fim. Olharam para as estrelas, mesmo que delas não tivessem a menor consciência. Do Cosmos receberam os raios do Sol, laboriosamente convertidos em formas de energia por eles assimiláveis, transmitidas em uma cadeia de minúsculos seres construída sobre milhares e milhares de séculos.

Os que tinham coração, este lhes bombeava um sangue viscoso e nutritivo. Um músculo insistente, que ora batia acelerado, fazendo seus detentores subirem planícies e colinas íngremes, ora batia como se fosse parar, deixando o organismo naquele estado de vigília, uma zona entre a vida e a morte. Os que tinham cérebro, este lhes integrava todas as maravilhas físicas e cósmicas que irradiavam por todos os lados e que, graças a alguns desses cérebros, eram enfim apreendidas naquilo que realmente eram. E mesmo os cérebros que não faziam isso também tiveram seu papel, ajudando essa multidão anônima de seres a relembrarem o local onde nasceram ou então onde estavam as frutas mais doces.

Os que tinham um sistema nervoso, e imagino que fossem muitos, podiam sentir o que nós humanos chamamos de dor. Mas pouco importa o que nós humanos chamemos essa reação que faz evitar algo. A dor é a universal que nivela todos os organismos vivos minimamente complexos. A dor é sempre vivida de modo singular. Ninguém ou nada pode sentir dor por procuração. Essa mesma dor tem como complemento o prazer, mais uma palavra humana que basicamente descreve uma sensação física que tende a induzir a repetição de um comportamento. Na vasta maioria do reino animal, essa repetição está na base da transmissão de algumas células que têm o pontencial de gerar outros seres iguais aos exemplares originais.

Tenho um imenso interesse por animais não conscientes. Eles são a ESMAGADORA regra deste planeta, jamais a exceção. A única exceção é uma espécie que só se tornou dominante por causa de um órgão pensante. O pensamento é a ruptura com o imediatismo da existência. Pensar é romper com o mistério da vida. Para esse cérebro pensante chamado de “humano”, qualquer mistério é uma fonte de questionamento, um tópico de investigação. Um ainda-não que, em questão de tempo, será dissecado em explicações racionais.

Os animais não conscientes são os verdadeiros “donos” deste planeta. Até porque chegaram primeiro. Infelizmente, não bastassem as diversas extinções naturais em massa, estão sendo submetidos a novos níveis de tortura e destruição pela espécie que tem um cérebro pensante, a única efetivamente capaz de produzir o mal absoluto por escolha própria. Tal espécie se arroga o poder de tutelar os animais não pensantes, destruindo-os, seja como meio de alimentação, lazer/diversão, “avanço científico”, ou pura maldade (= algo que não precisava acontecer, mas acontece porque o humano assim o deseja). Não há quase mais nada “selvagem” na natureza. Em cada canto mais remoto deste planeta haverá a presença da espécie pensante – que se adapta até ao fundo do mar, tamanha sua astúcia e resiliência.

Na base do exponencial desenvolvimento tecnológico da espécie pensante estão seus próprios interesses. Bombas atômicas foram inventadas não para defender o planeta de um eventual meteoro ou de “alienígenas”, mas para reforçar o poder de uma tribo sobre a outra. As sofisticadas técnicas de previsão do tempo não servem, primariamente, para proteger animais não pensantes de esbarrarem com eventos climáticos catastróficos. Servem para prever ações pela espécie pensante a fim de proteger suas plantações e propriedades. A espécie pensante chegou mesmo a inventar deuses, acreditando que, após esta vida, haverá um paraíso onde alguns viverão eternamente. Por certo porque não consegue conceber que uma tal “maravilha” deva morrer e ser esquecida para sempre.

A espécie humana melhorou inimaginavelmente suas condições de vida. Mas faz tudo pensando em si mesma. Do ponto de vista do planeta, essa espécie é completamente supérflua. Se não tivesse surgido, tudo estaria na mesma. A espécie humana não fez nada de significativo pelo planeta, exceto arruiná-lo. Ou quando cria desgraças para ela própria vir com a “solução”. A espécie humana, do ponto de vista do planeta, não é senão outra mutação fracassada. Os últimos a sair da selva para as cidades, onde usam bonés e armas semi-automáticas, para usar uma expressão de G. Carlin.

Conforto-me com o pensamento de que há um Deus. E, como disse antes, esse Deus está registrando tudo. Esse Deus sabe, no fundo, “o que está rolando”. Ele escuta cada grito, cada vida dizimada, seja por uma pedra aleatória ou por complexos matadouros “humanizados”. Quero crer que esse Deus é tão sintonizado com a verdadeira natureza do Cosmos que é até mesmo capaz de amar cada ser humano individualmente, uma tarefa desafiadora.

Experimentos mentais, 3: O pequeno animal

Estava sobre a margem de um rio. Caiu ali. O organismo estava sendo dominado por uma infecção. Ele havia passado, há alguns dias atrás, por um galho molhado caído no chão. As folhas desse galho formavam um tipo de prancha, tão lisa que o desfecho inevitável era que escorregasse e fosse lançado contra uma pedra. Só que essa pedra em particular tinha uma estrutura irregular, como um diamante cinza com várias quinas pontiagudas formadas por ângulos esculpidos. A carne do animal é rasgada no encontro seco e direto com um desses ângulos. Estímulos extremamente caóticos são disparados na região do tecido violado. À velocidade da luz, eles percorrem as vias nervosas periféricas, indo desaguar no rudimentar centro nervoso do animal. O resultado surge na forma de um grito estridente, profundo e contínuo, jorrando pelo ar da mesma forma como o sangue estava jorrando do tecido perfurado. O grito se espalha na redoma formada por um enclave na floresta, de onde rodopia pelo ar e se dissipa para o além. Nada nem ninguém podia vir em socorro. A chuva recomeça a cair, e o sangue da ferida é diluído pela água, formando no chão um pequeno redemoinho num decrescente de vermelho, começando bem vivo e vibrante, passando por um rosado, depois por um rosa-alaranjado, até por fim, lá embaixo na trilha em que seguiu bailando com a água, tornar-se quase transparente. A floresta parecia estar diluindo o pequeno animal, primeiro seu grito, depois seu sangue, em poucos dias seu corpo inteiro. Assim, sozinho e frágil, o pequeno animal se tornou presa do predador mais poderoso, impiedoso, do qual era impossível escapar, o predador que existe dentro de qualquer ser vivo, seja do pequeno ou do grande animal. Um predador que fica o tempo todo à espreita, aguardando o menor sinal de fraqueza, uma brecha pela qual ele possa atacar. E uma vez ele lance suas garras sobre sua vítima, então nada mais ela poderia fazer. Nosso pequeno animal fez sua última jornada sobre a Terra primitiva com muito esforço. E é assim que o encontramos na margem desse rio que lhe oferta uma água fresca e límpida para um último gole, sua última interação visceral com a mãe terra. O pequeno animal se estira na margem, onde pequenas pedras polidas por séculos formam uma cama em volta de seu corpo. O dia estava lindo e radiante, com uma fina trilha de neblia à distância, indicando os últimos vestígios da manhã. Do ponto onde está o pequeno animal, a água segue seu curso independente pela floresta. Ao longo de seu caminho, vai refletindo as copas das árvores do Triássico. Parece uma serpente verde ondulando rumo ao infinito. Quem sabe quantos outros animais, como este que acaba de se extinguir, ela vai beijar pelo caminho.

Cena do filme A árvore da vida (2011). Detalhe no canto direito da figura.

Experimentos mentais, 2: Embaixo da carroça

Era uma manha chuvosa. Ele estava quase meio corpo enterrado na lama. Estava de quatro. Suas pernas e braços com certeza estavam na lama. Disso ele tinha certeza. Além da chuva havia neblina. Seus dentes também tinham um pouco de lama, ele agora pensava. Estava com fome. Sim, era em parte pela fome e em parte pela chuva que ele estava ali embaixo daquela carroça. O cavalo ao qual a carroça estava atachada era um animal maltratado. Não que isso fosse relevante para sua presente situação. Aliás, ele nem achava que cavalos deviam ser bem tratados, estar vistosos. Pelo menos não os cavalos dos plebeus. Sim, ele era um plebeu. Na verdade, na sua mente, ele era alguém que não vivia no castelo. Só isso que ele sabia com certeza. Sua condição não era um tema de reflexão. Até porque, o que sabia ele? Ele nem sabia que podia saber algo. Ou que havia algo para se saber. O sol nascia, ele tinha fome, buscava comida, como agora, e voltava para o monte de palha cheia de merda de galinha na qual dormia. Ele tem vontade de abrir a boca. E abre a boca bem aberta, torcendo a cabeça para cima, revelando para o teto de madeira da carroça seus dentes destroçados. Podres. Um podre obsceno. Ele olha para o teto da carroça e, sem saber o porquê, imagina que houvesse ali um espelho. E no espelho ele vê um espectro, uma figura disforme, uma coisa que, mesmo não tendo consciência de si, parece perguntar ‘O que é isso?’ E fica entretido por algum tempo nessa penumbra fantasmagórica de um espelho que não existe, de uma pessoa que não existe para além das fronteiras da fome. A fome. Essa dor estranha no meio do corpo. Era mais desconfortável que a lama misturada com estrume na qual estava banhado. Olha pelos vãos da roda da carroça. Olha para o céu, e uma gota graúda de chuva lhe acerta bem um dos olhos. Leva a mão enlameada em ato involuntário até eles. Só piora o estado de um dos olhos. Mas que importa. Ajusta o olho que ainda está aberto e enxergando e o direciona para o pequeno público que perambula por ali. Ele está à espera do fim da feira. Era uma feira medieval. Rudimentar e agrária como poderia ser uma feira medieval. E uma feira de um burgo pobre e desgraçado. Ainda por cima, ele tinha nascido ali. Sempre esperava até o fim da feira, e sempre achava um pedaço de nabo quebrado, sujo e duro. Ou um caule perdido de alguma cenoura há muito já longe dali. Hoje com essa chuva, pensa ele, o caule estaria completamente empapado. Mas ele comeria mesmo assim. E é isso mesmo o que no fim acaba acontecendo. Agora sentado embaixo da carroça e não mais de quatro, come os talos de nabos e cenouras. Não é muito. Mas o suficiente para acalmar essa dor que aparece umas duas vezes ao dia e que desaparece assim que ele come coisas como caules e talos. E assim passa mais uma manhã. Como essa, mais umas duas ou três, antes de ele ser esmagado pelas rodas de outra carroça num dia sem chuva.


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