Glenn Gould, solidão e isolamento

Hoje me veio à memória um filme a que assisti ano passado sobre o pianista canadense Glenn Gould. O nome do filme é “Trinta e duas curtas-metragens sobre Glenn Gould”. 

Glenn Gould, a certa altura de sua carreira, decide não mais apresentar-se em público. Este o incomodava; o piano das salas de apresentação o incomodava; os quartos de hotéis em que tinha de se hospedar durante suas apresentações ao redor do mundo o incomodavam; a filigrana de imperfeições envolvidas em uma performance para um grande número de pessoas o incomodava… Gould queixava-se de uma falta. Como diz ele: “carecia de uma espécie de transcendência mística para eu superar”. Então, resolveu isolar-se de todos, mantendo, com o mundo, apenas um contato (aliás, intenso) por meio do rádio e do telefone.

Algumas idéias de Gould me chamaram a atenção. Primeira, ele dizia que para cada uma hora que você passa com um ser humano, você precisa de X horas sozinho. Segunda, ele era fascinado pelo Pólo Norte e pelo tipo de vida que lá se podia ter, em completo isolamento. No filme, aliás, há uma bela cena de Gould desaparecendo (ou aparecendo) no branco da neve do nórtico. Impossível não sentir que o vazio é completamente “abundante”, “cheio”.

No Norte, Gould sentia haver uma virtude quase indescritível: a virtude da “extrema observação” – como tudo era muito distante, quando as pessoas se encontravam, elas provavelmente deviam prestar muita atenção umas nas outras. Engraçado, não? Hoje, vivemos em imensas cidades em que um amontoado de gente se esbarra em cada canto, cada qual falando sem parar umas com as outras, quase sempre fazendo vistas grossas aos detalhes e às sutilezas do que é dito (ou não dito).

Muito certamente essas idéias de Glenn Gould me vieram à mente hoje impulsionadas pelo sentimento secular (?) de pertencer a uma multidão solitária.

Acham que isso é “negação da potência de vida”?… uma frase bem nietzschiana, por assim dizer. Mas o próprio Nietzsche vivia a maior parte de sua vida como um nômade. Aliás, ele adora as alturas das montanhas (não é de uma que desce Zaratustra?). Recolher-se ao isolamento, a meu ver, não implica em negar a Vida (com “V” maiúsculo)…talvez signifique, sim, negar um tipo particular de vida… .

O Brasil e os outros

O Brasil cresceu, em 2010, algo em torno de 7%. Enquanto isso, olhe o crescimento de outras economias, grande parte das quais muito pouco comentadas por aqui ou mesmo alhures (até onde eu parcamente sei…).

Ano-novo, vida nova (Contardo Calligaris)

UMA LEITORA, que me autoriza a citar seu e-mail, mas prefere que seu nome não seja mencionado, pergunta: “Gostaria de saber sua opinião sobre parceiros que simplesmente somem, desaparecem mesmo, sem deixar rastro. Cancelam telefones, e-mail, conta no Skype e somem, sem se despedir, sem nem mesmo um MSN. E não falo de um relacionamento de alguns dias, mas de anos. Oito para ser mais precisa. Nem falo de um adolescente, mas de um homem de 57 anos.

Ele foi trabalhar no Oriente Médio, num alto cargo, a empresa fechou e ele desapareceu. Não morreu, não foi sequestrado por terroristas. (…) O que leva alguém a agir assim? Obrigações econômicas não estão em jogo”.

A cada ano, mundo afora, há centenas de milhares de pessoas que somem e nunca mais dão notícias a familiares e amigos.

Quando se trata de adultos sem obrigações jurídicas (dívidas ou pensões alimentícias, por exemplo), a polícia descobre, eventualmente, o novo paradeiro ou a nova identidade de quem sumiu, mas só o próprio desaparecido pode autorizá-la comunicar estas informações aos parentes e amigos de sua vida, digamos assim, “anterior”.

No passado, nesta página, se me lembro direito, já assinalei o fato de que, estranhamente, em geral, quem some não vai longe: acaba numa cidade parecida com a que ele abandonou, a poucos quilômetros de distância. Também, na maioria dos casos, o desaparecido reconstrói uma vida próxima da vida da qual ele fugiu -encontra um ofício parecido com o que ele praticava e cria uma família similar à que deixou.

Essa “constância” nos surpreende porque imaginamos que, em regra, alguém suma por querer uma vida nova. Por alguma razão, o caminho gradativo, que consistiria em se despedir, fazer as malas, fechar as contas etc., pareceria impraticável ou insuficiente aos olhos de nosso fugitivo: talvez ele tenha esperado demais e sua paciência excessiva (para com os outros ou para consigo mesmo) exija, de repente, uma explosão, um corte sem conversa alguma. De qualquer forma, supomos (ingenuamente) que, se alguém decidiu sumir, foi para mudar radicalmente.

De fato, como disse antes, os desaparecidos acabam reconstruindo uma vida parecida com a anterior ao seu sumiço, e isso nos leva à conclusão oposta: talvez quem some não queira mudar de vida -então, ele some por quê?

Conheci pouquíssimos que sumiram, mas conheço muitos que expressam a vontade de sumir. Todos explicam sua vontade da mesma forma: trata-se de fugir de exigências impossíveis de serem satisfeitas. Mas, cuidado: “Eles me pedem demais” é a tradução projetiva de “eu me peço demais”. Quem foge das exigências do mundo está quase sempre fugindo das exigências que seu próprio desejo lhe coloca.

Vamos agora ao que acontece com quem decide sumir apenas para alguém -um familiar (se não a família inteira) ou um parceiro.

Às vezes, é justificada a sensação de que, sem um sumiço, uma relação se eternizaria pela simples dificuldade de qualquer um dos dois reconhecer que acabou. Onde está a covardia, e onde a coragem? Não sei. Talvez haja covardia em não conseguir declarar que um amor terminou, assim como talvez haja covardia na incapacidade de escutar essa declaração. Há a covardia de quem some e também de quem sobra, quando ambos parecem precisar do sumiço de um dos dois para aceitar que a história chegou ao fim.

Há covardia também em fingir que a relação continua, quando ela já morreu. Alguém, aliás, pode sumir para fugir de sua própria covardia, que o mantém calado, ou para fugir da covardia do outro, que não quer ouvir uma frase de despedida.

Seja como for, muitas vezes, alguém acaba uma relação e some porque o que era (e talvez ainda seja) seu desejo se transformou numa exigência intolerável.

Funciona assim: um dos jeitos de nos autorizarmos a querer o que desejamos consiste em transformar nosso desejo numa obrigação. Desejar é mais fácil (embora menos alegre) quando imaginamos desejar a mando de algum outro. O problema é que esse desejo, facilitado por ser mandatário, logo aparece como uma exigência da qual, eventualmente, vamos querer fugir.

Meu voto para o Ano Novo: que nos preocupemos menos em mudar nossas vidas e encontremos jeitos de conseguir desejar o que já desejamos sem transformar nosso desejo em obrigação.

Fonte: Do site do próprio autor

Cadelinhas em ação (1)


Tenho duas cadelinhas Pinscher, a Gabi (na foto), e a Bentha. Como todo fanático por animais, eu não poderia deixar de “exibir” minhas beldades caninas por aqui (e numa série…aguardem mais!). Bom domingo pós-1 de janeiro!

O buraco no peito

Tirinha do artista Dresden Codak (via blog de Alessandro Martins).

O Cisne negro – imperdível

Acabo de assistir ao filme O cisne negro (2011), estrelado por Natalie Portman. Trata-se da história de Nina (Portman), uma bailarina cuja vida é totalmente consumida pela dedicação à arte do balé – e mais do que isso: pela obsessão pela perfeição.

Nina faz parte de uma companhia de balé de NY em que o papel da bailaria principal (Winona Ryder) acabara de ficar vago – precisamente o do cisne, na peça “O lago dos cisnes”. Nina é a escolhida por seu ponto forte: a capacidade de interpretar o cisne branco (gracioso, inocente…). Mas seu ponto fraco é a dificuldade de interpretar o cisne negro (astucioso, sedutor). Uma colega de Nina, Lily (Mila Kunis), personifica o cisne negro, o que é suficiente para disparar uma rivalidade destrutiva entre ambas.

O filme narra a transformação de Nina a partir de sua “incorporação” do personagem do cisne negro (ou das características que seriam capazes de suportá-lo). Trata-se de um pesado enredo psicológico que mistura fantasia e realidade. Ao final, fica-se com a impressão de que uma vida inteira vale por um ato de perfeição – a incorporação plena do papel do cisne negro às custas da própria vida do personagem.

Em defesa das mãos

Comecei a ler o livro de Matthew Crawford sobre o trabalho manual, Shop class as soulcraft: an inquiry into the value of work. Nele, seu autor considera o trabalho manual ou “técnico” como uma espécie de “antídoto” ao trabalho “pós-industrial”, com sua apologia à “manipulação de idéias” e conhecimento em vez de objetos reais, com resultados tangíveis.

Pesquiso, desde 2006, as “indústrias criativas”. Um dos principais mentores dessas indústrias, Richard Florida (pelo menos seu mentor “pop”), defende que os empregos, na pós-modernidade, são criativos-orientados. Nessa perspectiva, não resta espaço para uma infinidade de outros trabalhos cuja principal atividade consiste em manipular objetos com as mãos. Florida é um dos alvos deste livro.

Crawford escreve este livro para mostrar que os trabalhos técnicos (aqui no Brasil, pensem em todos os profissionais formados pelo sistema S: Sesi/Senac/Senai), ou seja, aqueles que dependem de um curso profissionalizante, e não de um diploma universitário, são uma fonte fundamental de prazer e significado, pois permitem atender a uma necessidade ontológica da modernidade: a capacidade de agência, isto é, o fato de sentirmos que temos controle e que podemos afetar, concretamente, a realidade (por exemplo, ao consertar uma moto – Crawford é proprietário de uma oficina que conserta motos antigas).

Estou gostando das idéias do autor. Ela nos alerta para os aspectos invisíveis de muitos “metiês” (ou trades) desvalorizados pela histórica cisão entre trabalho manual e trabalho intelectual. Crawford, apoiando-se em boa literatura, mostra a falácia dessa separação, além de nos chamar a atenção para a perigosa situação dos trabalhadores “intelectuais”, alienados pelas ideologias da sociedade “pós-industrial”.

Vamos ver o que mais a leitura deste livrinho interessante, e premiado com o The New York Times Book Review (e muitos outros), tem a nos ensinar.

Contradições do Natal

O ser humano é realmente uma espécie contraditória. Nestes dias de festas, é comum a maioria de nós abrandar o coração e ampliar a gentileza, especialmente ao desejarmos os melhores votos uns aos outros. E não há como negar que é realmente fascinante ser afetado por um momento coletivo e social como esse, carregado de representações as mais positivas.

Na vida cotidiana, porém, como funciona o “clima natalino”? Vou dar um pequeno exemplo. Fomos ao supermercado fazer compras. Isso foi ontem. Não é de se surpreender que, dada a festividade (com um claro componente gastronômico!), as pessoas tenham ido, “todas”, ao supermercado ao mesmo tempo.

Aí começa o show de horrores. Por exemplo, você vai pagar suas compras num caixa que parece menos “congestionado” e, de repente, aparece uma pessoa com dois carrinhos cheios. Alguém ficou “guardando fila” para ela. Outro exemplo: a pessoa que está passando suas compras, mesmo notando a balbúrdia ao redor, não tem a gentileza de ajudar a funcionária do caixa (já por demais atordoada de trabalho) a empacotar suas coisas. Mais um pequeno exemplo: pessoas deixando muita mercadoria nos carrinhos, especialmente mercadorias que não poderiam ficar fora da geladeira. Provavelmente, o olho foi mais “gordo” do que o olho que se surpreende com os $$$$ a pagar. Os exemplos poderiam ir longe…

Uma conclusão “gerencial” – esses pequenos atos de indelicadeza da vida cotidiana contribuem, somados ao despreparo e ao desânimo de funcionários (ou a seu cansaço e mal-estar), para que o simples ato de fazer compras na véspera de natal se torne algo da ordem do “desperdício”.

Uma conclusão “antropológica” – não é engraçado, contraditório, sermos tão “carinhosos” pelo embalo do “clima de natal” e, na prática (como no exemplo que dei das compras), sermos egoístas, mesquinhos, indelicados com o outro, “esfomeados” para corrermos para encher nossos carrinhos e comemorarmos, no mais cândido sentimento de solidariedade, com nossos “entes queridos”? Sei lá, para mim, o Natal parece estar se tornando algo só “da família” (dos iguais).

Feliz Natal meu amigo!

Nada me faltará

Acabo de ler o novo livro do paulistano Lourenço Mutarelli (o mesmo autor de “O cheiro do ralo”, que virou filme). A história narra um insólito incidente que aconteceu com o personagem principal, Paulo. Desaparecido a um ano, ele reaparece do nada e, pior, não se lembra do que aconteu. Para ele, um ano era equivalente a um dia. Antes de sumir, Paulo vivia uma vida “normal”: era casado e tinha uma filha.

O que mais incomoda os amigos e a mãe de Paulo (além da polícia) é que este não demonstra qualquer preocupação pelo paradeiro da mulher e filha, que sumiram ao mesmo tempo que ele, mas, ao contrário de sua sorte, continuam desaparecidas. A indiferença de Paulo é interpretada como prova de que ele deve ter alguma culpa no sumiço das duas. O personagem, porém, admite, em sua sessão de terapia, que não sente absolutamente nenhuma falta delas (daí, provavelmente, o título do livro).

Numa interpretação livre, fiquei com a sensação de que o livro aborda o significado de “realidade”. Toda a ambiguidade gerada pela narrativa tem a ver com a alternância entre acreditar no personagem principal (que dizia não ter nada a ver com o desaparecimento da mulher e filha) ou em seus amigos e parentes. Em grande parte do livro, Paulo é lacônico, de uma concretude discursiva radical. Os outros “falam” para ele, dele, sobre ele.

O final da estória, apesar de aberto, deixa entrever uma pista sobre o que, afinal, pode ter acontecido – o último livro comprado por Paulo foi Eu, Pierre Rivière, que degolei minha mãe, minha irmã e meu irmão, de Foucault. Quem conhece, sabe que se trata de uma história verídica de parricídio/fatricídio narrada pelo filósofo francês. Eis aí, além da prazeirosa (como sempre) leitura de Mutarelli, um convite para voltarmos a alguns clássicos.

Depressão (2)

Ainda pensando sobre depressão, há uma leitura complementar à que fiz no post anterior. Uma leitura, porém, que segue na linha de entender parte da origem da depressão em um fenômeno de mal-estar civilizatório, ou seja: derivado da ruptura no “pacto civilizatório” (lembro-me de ter lido uma vez um belo texto de  Hélio Pelegrino sobre isso).

Nesse sentido, poderíamos entender a depressão como uma “doença” dos inertes numa época em que a inércia é o pior de todos os males. Equivalente a dizer que o deprimido é alguém cujo desempenho fica aquém do esperado pela “civilização” (leia-se, neste caso, a “civilização mercadológica”).

Há um bom par de décadas atrás, a doença que mais incomodava aos “disciplinadores” (higienistas, médicos etc.), era a euforia. Lógico, nada pior do que uma pessoa eufórica numa sociedade regrada e estática (regida pelo casamento pudico, pelas falsidades das aparências sociais etc.).

O inverso, lógico, pode ser verdadeiro – hoje, vivemos na euforia do momento. Fazemos várias coisas ao mesmo tempo; somos às vezes várias “pessoas” ao mesmo tempo. Não há, para os típicos pequenos burgueses de classe média que somos, alternativa senão a euforia profissional e pessoal em todos os sentidos.

Portanto, além de estimulado pelo desejo de espantar o sofrimento e a dor vinculados à depressão, o indivíduo é também pressionado para manter-se em dia e em forma psíquica. É isso de que precisam as empresas, nossas famílias e tudo o mais. Logo, a depressão, nesse seu aspecto, digamos, “social” (não simplemente “biológico”), é uma doença de época.


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