O tamanho

Considerando todas os planetas e estrelas, a parte observável do universo, e toda a dark energy, tudo o que não é visível no universo, a quantidade estimada total de energia que ele contém é equivalente a:

[67 000000000000000000000000000000000000000000000000000000000000 toneladas de TNT; ou 67 trilhões trilhões trilhões trilhões e trilhões de toneladas]

Esta seria também a medida de quanto o universo pesa.

Enquanto isso…

Estamos preocupados com quanto nós pesamos. Com o quanto temos no banco. Com o número de sapatos que temos. Com o quanto nossa vida, de um modo geral, vez ou outra, ou sempre, parece excessivamente pesada, difícil de carregar.

Proibido fumar

Creio que tenha sido Paulo Maluf, quando era prefeito da cidade de São Paulo, quem tenha decretado uma lei proibindo as pessoas de fumar em locais fechados. A revolta foi tanta que até uma música surgiu tratando disso. Na época, eu estava provavelmente entrando na adolescência. Desse período e fato, hoje me lembro só de uma estranha sensação. A coisa não fazia muito sentido para mim, à época. Não porque tivesse alguma opinião sobre os malefícios do cigarro ou sobre “fumantes passivos”. Nada disso. Só achei o assunto coisa de gente esquisita. Bom, vai ver é exatamente isso que crianças e jovens adolescentes achem hoje em dia de toda essa conversa de políticos ou profissionais da atuando em saúde pública.

Pulando para os dias atuais, acho que temos uma nova epidemia. Mas não de cigarro. Antes, você andava pela rua e era fácil ver pessoas fumando. Muitas delas, dependendo de seu local. Até comerciais de cigarro havia na TV aberta. O cigarro era associado com liberdade de escolha, status, ousadia, especialmente por parte das mulheres.

Nossa epidemia atual, que tem o diferencial de incluir até mesmo crianças, é a do celular, do smartphone. Basta você sair de casa. Pode pensar no lugar que for. Ali haverá quase 100% de pessoas mergulhadas em seus aparelhos. Estes dias, vi uma pessoa na garupa de uma moto segurando seu celular e, sei lá, falando com alguém no aplicativo de comunicação, ou ajudando o motorista a se localizar (olhando no mapa apresentado pelo celular). Se você for na praia, lá estarão eles. No supermercado, idem. Durante uma reunião, claro. Na sala de aula, infelizmente. No médico, então, aí é certeza quase absoluta de encontrar pessoas atarracadas com seus aparelhos.

E sabe o que é interessante? Bom, da mesma forma que no final dos anos 1980 e início dos 1990 ninguém achava estranho outros fumando…dentro de um avião!, ou em um restaurante fechado… hoje também a maioria parece não notar ou então se importar com essa nova epidemia. Inclusive, até mesmo riscos para a saúde o celular pode provocar – por certo, e falo isso por experiência, para os olhos. Para não mencionar o impacto sobre a atenção.

A situação é tão bizarra que, vez ou outra, leio matérias de jornalistas que fizeram algo absolutamente impensável, oh!, ficar uma semana sem celular/internet. Hoje mesmo ouvi uma matéria dessas. O casal resolveu chamar até a operadora de internet para vir desconectar o modem. E então a criatura passa a descrever o que seria a reinvenção da roda: como fazer compras, como chamar o médico, como encontrar um endereço, etc.

Existe, ou existia, um campo de estudos sobre cognição expandida. Segundo alguns dos insights de que me lembro dessa perspectiva, nós tendemos a externalizar partes que antes eram de nosso próprio cérebro/mente para máquinas ou objetos externos. Há nisso, é claro, o potencial de uma simbiose proveitosa para o humano. Por exemplo, contar é muito mais fácil com um pedaço de papel, ou mesmo com os dedos, do que apenas com cálculos mentais (pelo menos, para a maioria da população). O papel, a caneta, o lapis, são externalizações que nos permitem conduzir nossas operações matemáticas. O cérebro em perfeita harmonia com o resto do corpo, e com a concretude ao redor.

Similarmente, no início, éramos forçados a manter uma agenda de telefones. Um caderninho, o que fosse. Os primeiros celulares, mesmo sem grande memória como as dos aparelhos de hoje, já nos havia permitido dar um primeiro salto do caderninho para o chip. Mas a evolução desses aparelhos foi tamanha que hoje eles representam o que certamente um computador da NASA representava no passado, ocupando às vezes prédios inteiros. O ponto que gostaria de fazer não é o da nova estética que está sendo criada pelo smartphone, como quando estamos falando com alguém e esse alguém está, em vez de prestando atenção em nós, falando com outro ser humano quilômetros longe. Não. Falo dessa etapa, ainda desconhecida em termos de suas consequências, em que externalizamos praticamente toda nossa vida mental, inclusive nossa sociabilidade, para um aparelho – que, supostamente, nos coloca em contato com outros seres humanos.

É como se estivéssemos numa imensa nuvem de fumaça, mas desta vez não literal, como estavam as pessoas na época em que fumar em público e espaço fechados era cool. E, repito, agora usando uma expressão de George Carlin: nobody seems to notice; nobody seems to care.

Mais do que 100% de identificação

Amei o vídeo abaixo. E não falo “amei” no sentido coloquial que às vezes as pessoas usam essa expressão, no fundo querendo dizer nada. Eu realmente amei, de paixão, o vídeo (o texto, na verdade). Até hoje, nessas explorações aleatórias que faço pela internet, não havia achado uma peça que representasse exatamente o que estou vivendo já faz algum tempo. Lembro de que, em outra crise profunda que tive, “descobri” Schopenhauer e Nietzsche. Eles me ajudaram a atravessar uma dor profunda, dando-lhe algum sentido. Agora, estou em uma nova situação de dor profunda (e sem encontrar sentido), a mais longa que já tive, um inverno longo, longo, mais longo de que tenho lembrança. O tipo de inverno que deixa tudo branco, indistinto, indiferente, gerando, como está no vídeo, calos que me impedem de sentir, ao toque, o mundo e suas texturas. E a maior agonia é que, até aqui, não havia encontrado alguém para dialogar – uma pessoa, ou um autor morto (ou vivo, não importa). O vídeo, e seu texto, não chegam a ser o interlocutor definitivo, mas é o mais próximo com certeza. Engraçado que eu, sempre aos fins de ano (quando, normalmente, estou de férias), acabo citando produções desse canal. Mas este, poxa vida. Gostaria de traduzi-lo e ampliar seu alcance, mas acho que pode haver restrições de direitos autorais. O vídeo, porém, tem legenda em inglês, o que ajuda a disseminá-lo. Mesmo assim, cito alguns trechos a seguir, em tradução livre. É uma peça de arte, sensibilidade, precisão e amor.

Quando você era criança, você era cheio de entusiasmo e sensibilidade. O mundo é pequeno, e seus olhos são grandes. Mas quando você vai envelhecendo, tudo se torna maior, e você praticamente fica do mesmo tamanho – no máximo ganha uns centímetros. O caos, a complexidade, e a impossível obscuridade do mundo te cercam e te tomam à medida em que seu senso de significância e segurança diminuem até virarem um minúsculo ponto. Você segue adiante, segue o fluxo. Você faz coisas, realiza coisas, você obtém coisas. Mas nada nunca mais resolve a questão – aquela inquietação profunda, agitação e desolação. Você se acha sempre no mesmo lugar, independentemente do quão forte você tente ou longe você vá. Pessoas queridas morrem, corações se quebram, coisas horríveis acontecem – você percebe cada vez mais as coisas horríveis que poderiam e vão acontecer. Tudo se torna um pano de fundo esfumaçado para os implacáveis problemas do dia-a-dia.

Finalmente, você aprende a como lidar com tudo isso. Você se torna anestesiado. Indiferente. Você faz de tudo para que nada realmente te afete. Não é uma decisão consciente. Você nem se lembra de tê-la tomado. A vida dói ao toque, e então, obviamente, você para de segurar nela com tanta força. Agora, quase nada te afeta muito, mas você também não sente muito mais as coisas. Não é exatamente apatia – pelo menos não no sentido tradicional dessa expressão. Não é exatamente depressão. É alguma outra coisa; alguma coisa entre ou externa a esses termos. Não é um sentimento de que você está em um tipo de areia-movediça, mas muito mais o sentimento de que as coisas estão “okay”, enquanto você está sentado sobre a areia de uma linda praia.

[…]

No fim, a vida move em estações. Não é sempre que estamos energizados ou animados ou principamente sintonizados com o bem. Não conseguimos ser sempre afáveis e receptivos. Nem sempre conseguimos ser brilhantes e transbordar vida. Mas, assim como o solo coberto com neve em uma paisagem invernal contém a habilidade de produzir vida quando a estação muda, assim também você tem a habilidade de fazer germinar uma nova vida quando o momento chegar. Você ainda tem seu mundo interno, suas faculdades, sua perspectiva, sua criatividade, e sua habilidade de adaptar e resistir. Se você não esteve sempre aqui [nessa situação], você provavelmente não estará sempre nela. E mesmo se você estivesse, você ainda conseguiria se adaptar, e você vai ficar okay. Seja em estações de luta, ou em uma experiência de uma vida inteira sentindo a frieza do universo, por meio de sua perspectiva e escolhas individuais, você ainda será capaz de te propiciar conforto, significado, o calor da fortitude invencível. Talvez tudo que tenhamos seja isso – o verão invencível dentro de nós -, mas talvez isso seja tudo de que necessitamos.

Nota. Vale o destaque: “No meio do inverno eu, finalmente, descobri que há em mim um verão invencível” (Camus).

Fragmentos dispersos, 7

Travas mentais. Tive um insight em que penso ter resolvido a questão de que tratava no post anterior, sobre o impacto de um dia de trabalho. Sei que isso não é nenhuma originalidade (veja o conceito de “compartimentalização” por aí), mas pouco importa, desde que funcione. E, até aqui, tem funcionado. É algo bem simples: basta colocar uma espécie de trava na mente. Um tipo de comando em que você se auto-impede de trilhar alguns caminhos de pensamento. Por exemplo: ao chegar em casa, basta colocar uma trava no sentido de impedir o pensamento de ficar remoendo o dia, reensaiando formas de agir diferente nas situações a, b ou c. O dia passou, o dia acabou, ele não existe mais. Todas as impressões desse dia passam a ser fragmentos sem sentido de coisas já vividas. Não podem ser revividos. Não podem ser reproduzidos. Não tinham, para começo de conversa, nenhuma finalidade ou objetivo ou propósito de seguir determinado curso. Foram coisas aleatórias. Umas, agradáveis; outras, nem tanto. É como tomar uma chuva. Você chega em casa e logo troca de roupa. Não fica sentado no sofá com as roupas molhadas pensando que deveria ter levado um guarda-chuva. Você simplesmente chega em casa, tira a roupa, o sapato etc. molhados, toma uma ducha quente e toca a vida. Você nem pensa mais que tomou uma chuva no caminho da casa. Por que não poderia ser a mesma coisa para as atividades e os (maus) encontros durante um dia?

Peak performers. Ouvi um gestor de um grande fundo de investimento falar que ele estava profundamente interessado em “casos exepcionais”. Deu o exemplo de uma cantora norte-americana que fez um sucesso estrondoso com seus shows em 2023. Tal gestor diz ter levado a filha para o show dessa cantora, meio que dando a entender que, como pai, gostaria que a filha aprendesse “com a melhor”. É interessante. Um acontecimento que nunca me esqueço, duas décadas atrás, é quando tive minha primeira experiência como “terapeuta”. Foi durante o estágio do quinto ano da faculdade de psicologia. A paciente tinha uma questão com mulheres em revistas de moda. Dizia achar aquelas mulheres verdadeiros modelos, e que se ressentia profundamente por não ter o rosto, o corpo, o talento daquelas mulheres. Isso de algum modo me inquieta até hoje, essa secular tendência de as pessoas olharem apenas para os top performers, para os extremos de sucesso em cada campo artístico, profissional, pessoal. O tal gestor de fundos de investimento quer que sua filha só olhe para cima, só olhe e só intencione o melhor. Não, não, o melhor não. O excepcional. Todo o resto é só isso: resto e mediocridade. Não haveria nada a se aprender com aquela zona, em um gráfico de distribuição normal, que fica entre os extremos. Quer dizer, nada de bom com os 68,2% do meio (figura; [fonte]). As exigências estão ficando mais rígidas, e agora estaríamos apenas interessados nos 0.1%. Nos anos 1990 alguns psicólogos e sociólogos franceses chamavam o fenômeno de culto da performance ou da excelência. De lá para cá, o fenômeno só tem se intensificado. Não é interessante? Quanto mais o mundo caminha para números surreais (atualmente, mais de 7 bilhões de humanos vivem, e bilhões mal ganham o suficiente para ficarem vivos), mais vamos puxando para o 00000000000.alguma coisa do lado direito da figura abaixo?

O esteta

Don Giovanni, ou Don Juan, é uma peça de Mozart. Nela, D. Juan é um sedutor. Ele seduz mulheres sem qualquer consideração escrupulosa. Destroi casamentos, reputação, honra. Vai até as últimas consequências em seus planos, manobras, “lábia”, mentiras e artifícios. Ao conquistar uma mulher, ele então a abanona e passa para a próxima. Não se satisfaz com uma conquista. É como se seu desejo não tivesse objeto, a não ser o próprio desejo de desejar.

Nunca dei muita importância a essa história. Lembro-me de ter assistido um filme (ou séria, já não tenho certeza) sobre D. Juan, e tinha em minha mente que ele era um homem bonito, ou pelo menos bem apessoado, um galã, como se diz, ou um “garanhão”. Esta última palavra era usada no meu tempo de adolescência e juventude para descrever homens (geralmente) que “pegavam” muitas moças (“pegar” pode já estar fora de moda, ou ser uma palavra “cancelada”, assim como “garanhão”). Don Juan seria como esses personagens de vampiro que ficaram famosos, especialmente com adolescentes, ao menos no que diz respeito à beleza, à nobreza e ao potencial sedutor (embora vampiros, ao menos os da televisão, acabem se acalmando “pela eterninade” com um único amor…).

Vai tarde quando descobri que Don Giovanni foi escolhido por Kierkegaard como uma espécie de ideal-tipo, um modelo para a descrição de uma forma de relação com a existência que esse filósofo denomina de estética. A existência estética é uma em que o sujeito vive pulando de uma sensação para outra, de uma aventura para outra. Em termos atuais, poderíamos dizer que o esteta é um típico sujeito consumista. Ele não se importa muito com o conteúdo do que consome, desde que esteja consumindo, comprando e destacartando coisas e… pessoas. Aliás, o consumista como ideal-tipo é uma condição praticamente inescapável em uma economia capitalista de mercado.

Kierkegaard usa uma metáfora muito interessante para capturar essa existência. Nessa imagem, o esteta procede como que “rotacionando culturas”. Por exemplo, hoje você planta milho em seu pedaço de terra. Após a colheita, você resolve plantar cenouras. A terra nunca é cultivada de modo a acomodar uma plantação mais perene, como pés de café, ou mesmo árvores, algumas das quais, como sabemos, podem ser centenárias.

O esteta está permanentemente frustrado, incompleto, com um desejo que nunca se aquieta. É como aquela pessoa que começa um emprego e logo o deixa para fazer outra coisa. Começa um relacionamento e, assim que este começa a exigir um pouco mais de compromisso e estabilidade, ele o deixa, começando tudo de novo, como fazia Don Giovanni. Lê livros pela metade, ou então em passagens aleatórias. Responde a uma mensagem em um aplicativo de mensagens, e depois nem lembra mais direito o que quis dizer – pois fala sem compromisso, sem a substância de seu próprio corpo, seu coração, sua alma. Em nossa época, até patologias foram identificadas em relação a pessoas cuja atenção não consegue repousar em uma única coisa de cada vez.

O esteta, em termos morais, é um sujeito sem comprometimento, um flaneur, um avião que nunca aterriza. Sempre mudando de “culturas”, vive uma vida de curtição, de escapadas, de duplicação ou triplicação de frentes existenciais, de palavras vazias dadas ao outro. Um insaciável; em português direto: um mentiroso. Como um viciado em drogas, dobra a aposta quando sente o vazio bater à porta. Ele se imagina livre e autônomo, incapaz de ser capturado por estruturas sociais (como, por exemplo, pelos costumes de seu tempo), de ser moldado, forçado a servir a um único mestre. Ele se sente indomável, rebelde.

Mas a vida do esteta não segue sem rachaduras, falhas e potenciais ameças. Primeiro, essa vida depende de sorte, ou de um berço de ouro, e ainda de uma quantidade infinita de tempo, uma em que doença, velhice e morte não fazem parte da cena. Segundo, ela apresenta um problema observado em finanças, conhecido como “lei de retornos decrescentes” – a mesma coisa, ao longo do tempo, se mantidas certas condições (por exemplo, uma peça sem manutenção), tende a se depreciar, a perder o valor, a parar de funcionar. Terceiro, uma ameaça particularmente preocupante para uma vida estética é o tédio. Aqui temos uma espécie de ironia do Criador, pois, por alguma razão, quando fazemos sempre a mesma coisa, ainda que por “mesma coisa” queiramos dizer “fazer coisas sempre diferentes”, somos corroídos pelo tédio. Não à toa, o Sedutor, figura usada por Kierkegaard em um de seus livros (do qual Don Juan é o protótipo), é cercado de tédio. Ele, em algum nível, sente que sua vida tem algo de errado, que não é inteiramente justificada em si mesma. Na tentativa de ser livre acaba se tornando dependente de fatores externos para manter seu zest. O esteta se torna dependente de distrações – e, para tê-las, paga um preço cada vez mais elevado.

Na análise de Kierkegaard, a vida estética é abalada pela intromissão do ético. Uma vida que apenas perambula sobre ela mesma não é mais do que uma coleção aleatória de momentos ou trills. Ela não tem algo que a amarre a si mesma em um conjunto, que lhe impulsione a partir de um eixo, ou de uma narrativa coordenada. À cada excitação e aventura, intensa mas fugaz, o esteta é deixado consigo mesmo, no vazio, já novamente pensando em o que fará a seguir para preencher esse vazio com uma nova forma de sedução (de objetos ou outras pessoas).

Finalizo esse breve rascunho com a ferida do esteta: o desepero. É o desespero que abre a lacuna crucial para a vida estética ceder à vida ética. O desepero é o que demanda que o esteta pare de “viajar na maionese” e aterrize por um momento e passe a encarar o fato de sua vida estar girando no vazio, por mais empolgante que alguns momentos possam ser. Aprender a encarar o desespero é a oportunidade para levar a vida a um nível mais elevado de desenvolvimento.

Em algum momento, se inspirado, pretendo voltar ao tema do desespero, da angústia, e da vida ética, uma vida em que temos de nos comprometer, temos de aterrizar, temos de considerar que existem outras pessoas e que, no limite, estamos aqui para servi-las. Não se trata, pelo que entendo, de abandonar por completo elementos da vida estética, mas de não deixar que tudo se defina por ela. De fato, aspectos da vida estética são valiosos, pois, do contrário, tudo seria muito maçante, como a vida de um juíz imaginário (que, aliás, é o ideal-tipo usado por Kierkegaard para ilustrar a vida ética), duro, rigoroso, obediente à lei.

4.5 bilhões de anos

Fragmentos dispersos, 6

Após um bom tempo de pausa (quase havia esquecido que tinha este espaço), vou tentar retomar algumas anotações. Como sempre disse aqui, praticamente escrevo para mim mesmo. Gosto de voltar a algumas anotações de tempos em tempos, na curiosa ociosidade de tentar ver se ainda penso certas coisas.

A coisa mais assustadora sobre o universo. O NYT fez, por estes dias, uma série de breves áudios por ocasião do feriado de Halloween. Em uma delas, o autor escolheu o que para ele seria a coisa mais assustadora do universo. Outros escolheram diferentes coisas – o poema, o filme, o livro mais assustadores. E eis o que realmente é assustador sobre o universo, muito mais do que um buraco negro devorador até de luz, ou um meteoro acertando a Terra: o fato de que todo o Universo poderia desaparecer completamente, e sem nenhum aviso prévio. Isso poderia acontecer a daqui alguns bilhões de anos, ou neste exato instante. Tudo o que já existiu, tudo o que poderia existir, isto é, o passado, o futuro, até mesmo as leis da Física: tudo simplesmente esvaneceria sem deixar o menor traço. Todos os grandes pensadores da humanidade, toda a história das civilizações, todos os livros escritos, as artes, os amores, as dores, as memórias, deuses, etc. Seria como se nunca tivéssemos existido. Nada do que você fez, ou do que você deixou de fazer, nada disso realmente importaria absolutamente. A razão de tudo isso é a existência de uma partícula sub-atômica chamada Higgs’ boson, o qual é uma manifestação de uma energia chamada de Higgs’s field. Esta energia permeia todo o espaço-tempo, imbuindo todas as outras partículas com massa. Sem ele, nenhuma das outras partículas teria qualquer massa. O universo não teria átomos ou estrelas. Esse campo, ou field, é instável. Sem aviso, ele pode mudar de forma. Como água virando gelo. Essa mudança alteraria toda a realidade que conhecemos, dissolvendo todos os átomos e, por consequência, tudo o que conhecemos e experimentamos. Sem átomos não haveria DNA…não haveria pessoas. E tudo se dissolveria na velocidade da luz. Você não sentiria nada. E seria o fim de tudo. O autor lembra Shakespeare: Somos feitos da mesma coisa que os sonhos são feitos, e nossa vidinha é cercada pelo sono.

Ainda sobre o universo. Em uma outra reportagem recente do NYT, a autora questiona sobre o que aconteceria com um corpo humano no espaço. Esquecemos o quão acolhedora é a Terra, mesmo com todos os riscos naturais que presenciamos de tempos em tempos. Quando comparada ao Universo, a Terra é uma estufa inacreditável, um sistema absolutamente fantástico, tão perfeito no nível macro como no nível microscópico. No espaço, entre outras coisas, não teríamos duas coisas fundamentais: gravidade e proteção contra radiação. É óbvio que não há oxigênio também, de modo que morreríamos asfixiados em questão de segundos, muito antes de a ausência de gravidade ou excesso de radiação nos incomodar. A ausência de gravidade talvez seja o fator mais pervasivo, pois essa condição alteria todo o equilíbrio de forças em nosso corpo: nossa massa muscular, a distribuição de sangue entre os vários compartimentos corporais, fluidos (como o de urina), nosso aparelho digestivo, até mesmo a distribuição de nossa microbiota intestinal. Astronautas, que via de regra são selecionados por suas capacidades físicas excepcionais, têm uma sobrevida menor que a de outras pessoas que nunca tiveram a chance de conhecer o espaço. As forças magnéticas produzidas pelos dois pólos terrestes agem como um manto a envolver o planeta, dispersando o grosso da radiação. O espaço é um ambiente inóspido, vazio, averso a qualquer forma de vida (pelo menos, a nossa vida humana), brutal em seu dançar de forças violentas. Infinito. É interessante como, em nosso cotidiano, ficamos tão introspectos, tão fechados em nós mesmos, em nossos afazeres, que simplesmente não consideramos esses pensamentos. Eu mesmo às vezes me pergunto por que tanto dinheiro, energia, expectativa e trabalho estão sendo aplicados em explorações espaciais. Por exemplo, alguns empreendedores estão pensando, em um futuro próximo, criar estações espaciais que funcionariam como uma espécie de resorts ou hotéis para gente com muito dinheiro poder explorar a Lua ou Marte. Por que não devotamos todos esses recursos para resolvermos problemas na Terra? Mas no fundo dá para entender. Somos uma espécie fascinada, sempre se colocando desafios monstruosos, incapaz de aceitar nosso simples estar em um local, mesmo em um único planeta. O gênio humano precisa ser canalizado, concentrado, focado em uma missão como essas. Muitas sub-áreas são criadas dessa forma – por exemplo, medicina espacial. E é interessante, pois, no fundo, tais missões só vão aprofundar nossa compreensão do básico, do essencial: como a Terra, e a vida nela, são condições excepcionais. E melhor: nos foram dadas gratuitamente.

Why?

O lugar na fila

Quando eu era pequeno, havia uma situação que eu odiava. O momento em que ficávamos numa fila esperando sermos convocados para formar dois times de futebol. Eu e um outro sempre ficávamos por último, quando não havia mais a quem escolher. Hoje, muitos anos depois, ainda sinto uma dor grande quando sou o último da fila. Mas deixar alguém por último na fila e uma prática normal. Até mesmo na universidade isso ocorre. Justamente onde deveríamos olhar para exatamente o fim da fila. Não sei do destino da maioria daqueles meus coleguinhas de colégio. A maioria por certo sequer chegou à universidade. Custa para entendermos que estar no papel de selecionar os melhores pode ser uma arma nas mãos de quem não tem outra coisa.

Mas o que há no medo de ser o último da fila? Não creio ter crescido ressentido, do tipo que “vai se vingar”. Talvez eu seja o tipo que “vai provar”. Tão triste quanto. Pois provar para quem? Onde estão esses expectadores imaginários do meu “eu”? Por outro lado, acho que meu medo, mesmo, é de não aceitar a lógica do mundo, a qual podemos observar em qualquer lugar na natureza. O fraco é deixado para trás. Se fôssemos cuidar de todos os fracos, com certeza não estaríamos aqui. Estaríamos, é claro, em uma outra humanidade. Diferente. Meu medo é de não corresponder a essa lógica subjacente. E suponhamos que eu não corresponda, mesmo (o que, aliás, é bem claro que não correspondo, a menos que me compare com formigas). O que vai acontecer? O que se perde? Qual o ponto em esbarrar-se com uma parede?

Relativizar: Ah, se eu estudar duro, se eu praticar, se eu me esforçar a ponto de me matar, aí o verdadeiro talento aflora. Subjugar-se: Sou assim mesmo, não há nada que eu possa fazer; o mundo é cruel mesmo, injusto. Racionalizar: Não posso ser culpado pelos meus fracassos; há um mundo cruel aí fora, com critérios artificiais, com pessoas competindo em condições desiguais.

O que você enxerga se encarar seu fracasso, dentro da lógica em que ele pode ser, sim, um fracasso? Ah, como existem respostas a esta questão. A maioria “fracassa”, logo, esse é um assunto sobre o qual muitos quebram a cabeça para ter algo a dizer. O pessoal da auto-ajuda é especialista em fracasso, por exemplo. E há também a religião, um poço infinito de antídotos ao fracasso – necessário, aliás, ou talvez chegássemos a uma guerra ou a uma sociedade dopada (infelizmente, você deve saber que é este último caso). Há filósofos que escrevem sobre como tirar lições do fracasso etc.

Volto à questão: o que há, no fundo do fundo, de ser alguém deixado por último na fila? Existe um não-ser. O não-amor. O abandono, a indiferença ou a humilhação. Para não falar das consequências materiais. Contra isso, me parece que há uma saída necessária: é preciso “construir” um ser que se contraponha a esse nada. E aí vamos para questões realmente profundas, reais: qual o “lastro” desse ser? Talvez seja uma situação trágica, pois não há lastro único, digamos, interno (o que poderia ser no fundo uma racionalização de um ser, como nas opções que coloquei acima). Porque veja: um crente (religioso; ou um crente “sábio” de tipo pagão), ele vai resistir ao nada com suas racionalizações e vai se espelhar em outros que simplesmente, pelas mesmas razões, se copiam entre si. Todo mundo, lá no fundo, anda por aí com essa questão no centro de sua existência. Discordo de quem diga que há tantos alienados e tal. Não, em relação a esta questão: em algum momento, à noite, num ponto de ônibus, dirigindo, etc., todos estão conscientes. A alienação talvez venha das estratégias para responder a isso. Então, o ser precisa se colocar, se afirmar, inclusive ou sobretudo quando é deixado para o último lugar da fila. Porque todos, na ponta da fila, são iguais; os da última fila, estes que sofrem, estes sofrem cada um a sua maneira.

Uma vez me ocorreu que talvez o corpo fosse a resposta. Porque o “eu” é, no fundo, um corpo, e nada mais do que isso. Em segundo lugar, esse “eu” está contido dentro da potência desse corpo. E, por fim, esse corpo e esse eu estão contidos na potência do universo. Cada corpo, na sua perfeicao, foi dado a todos com a mesmíssima gratuidade. Mas há algo em nos que nos draga para profundezas abissais quando nosso “eu” não é validado, positivado. Há um descompasso. A tentativa de colocar o mar num buraco. Quer dizer, o “eu” tenta colocar o mar nele.


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