Fragmentos, 3

Os afetos com que vamos ao mundo. Acho que existe uma relação direta entre uma realização cognitiva e a tonalidade afetiva com que nos colocamos diante das circunstâncias. Não é só a banalidade de que somos seres afetivos e racionais. Não. Trata-se antes de algum tipo de pano de fundo constitucional a partir do qual canalizamos as impressões que nos vêm de fora. Ora, estas são apenas impressões, mesmo quando já previamente interpretadas e feitas para se atingir um objetivo pré-determinado. Se nos abrimos ao mundo, num dado momento, com um afeto “triste”, é provável que tudo seja circunscrito por tal afeto. Ou então por um afeto de ódio ou medo. Ou de alegria e paz. Pois afetos de base têm uma estranha sustentação em nossas reais pernas (não nessas pernas de carne e osso que exibimos por aí). Os afetos de base são o que realmente nos sustentam. Nos conectam com a terra, com algum tipo de concretude. Achar esse centro afetivo me parece fundamental. Sem isso, há uma completa loucura com ares de normalidade: somos levados a sentir qualquer coisa, e a construirmos nossas cognições com base nesse mesmo sentir. E a partir de certo ponto você não sabe mais se o que sente é reflexo do que você foi levado a sentir (afetos volúveis, falsos em relação à sua essência), ou se o que você conhece é reflexo desse mesmo sentir falso com que você se abre ao mundo. Talvez uma maneira de analisar isso é notar o quanto você se sente ou não massacrado por uma vida completamente estranha, em que você não se reconhece, e de onde se afoga como que pressionado embaixo da água por duas patas de elefante.


Do nada. Sempre aparecem, sorrateiros, tantos pensamentos na minha mente! É como se fossem monções que mexem ou reviram todas as minhas faculdades. Como ventos alterando a conformação da água do mar. Então elas se revolvem, sobem, descem, se contorcem, serpenteiam e, do modo como vieram, se dissipam. Ou como vento no deserto: chacoalha a areia, até mesmo monta com ela formas lindas no ar, e então a deixa cair novamente ao chão, inerte e inanimada, sem vida, como sempre foi, desde que as rochas que a precederam se estraçalharam, perdendo elas também suas formas, por fenômenos velhos como centenas de milhares de anos.


Ao vencedor, as batatas. Estes dias vi um escritor, desses que sempre escrevem para jornais e têm também alguma coisa escrita na forma de livros, dizer que, afinal, havia entendido sua “missão de vida”. No mar de porcaria da mídia, isto me fisgou. O que deve ter alguma razão, se é para acreditarmos em nosso desconhecido interno. Pois fiquei pensando: mas que homem arrogante! Como alguém pode dizer que encontrou sua missão na vida? Por que escreveu coisas, teve alguma fama, conforto material, etc, e se sente um iluminado dentro de algum apartamento iluminado? Isso me deixou profundamente revoltado. Acho que a literatura, ao menos essa pequeno-burguesa desses colunistas de jornal, cria um mundo tão fantástico na cabeça do “criativo” que ele logo faz de suas linhas um castelo moral ou ético em que se julga o senhor, com vida justificada e tudo mais. Se você, meu senhor, achou o sentido e a missão de sua vida, guarde para você e vá plantar batatas!


Aliás, literatura. Você gasta horas lendo um romance. Você percebe que, no fundo, o que acontece é que você acaba sendo colocado na mente de outra pessoa? Ela conduziu você pelos caminhos que ela achou que você deveria seguir junto dela. A mesma coisa quando alguém abre a boca e fala o que Ela acha sobre qualquer assunto. Oras, esse é o mundo dela! Por que ela não guarda para ela? O que ela quer, e você ao deixar, com entrar em seus ouvidos? O mundo acaba muitas vezes sendo vivido na bolha que alguém soltou de sua boca e lançou sobre o mundo para capturar outros. Interlocução? Diálogo? Eu acho que a maioria é corrompida, a maioria desses ditos “diálogos”. E, claro, há os muito mais graves, os que mentem e tentam ganhar vantagem objetiva sobre você, como está cheio pelo Brasil desde que “descobriram” esse lugar. Por que alguém afinal abre a boca? O que quer? Para mim, é inadmissível jornalistas, por exemplo, virarem celebridades e personagens muito bem pagos por criarem suas bolhas, ainda por cima usando, como de praxe, estantes de livro como pano de fundo!


44. É amanhã. E quero entender por que estou tão sick of myself. Às vezes, acordo e sinto como se houvesse, como os animais, deixado de representar/perceber o mundo e passado a senti-lo. Doce ilusão. Em todo caso, depois de certa idade, ou você metaboliza em linguagem própria o que foi se acumulando ao longo de sua vida, ou você se torna um saco cheio de areia, pesado, sempre infantilmente indisposto a ficar escorado em qualquer coisa.

Pessimismo/Otimismo

You want it darker
We kill the flame


There is a crack in everything
That’s how the light gets in

Fragmentos, 2

Caráter. Talvez muito pior do que a emergência de um líder autoritário ou de caráter duvidoso é sua base de sustentação. Afinal, nenhum poder é poder em si ou absoluto. No caso da política, em sociedades democráticas, o poder central emana de um ato discricionário, tomado em um momento particular, com implicações institucionais. Coloca-se um igual a nós (em termos de direitos naturais) em uma posição, em um papel, cuja essência advém de sua ritualística jurídica e institucional. É por isso que, vezes ou outra, ouvimos o ocupante momentâneo de tais posições dizer que “o Estado sou eu” –obviamente, em sentido figurado, pois o Estado não é, apenas, aquele corpo que, naquele momento, se reveste de poder. Enfim, esse poder é concedido. Pois então, as coisas podem ser resumidas no seguinte: o que faz uma multidão anônima endossar e continuar apoiando uma pessoa que, não sendo mais do que um ocupante de um papel, propõe a destruição dessas mesmas pessoas? Cometemos um imenso, gritante, erro ao resumir tudo à análise da figura do tal líder, personalizando, pois, algo que não é pessoal. Se você pensa que, no fundo, todo o fenômeno incorporado na figura de um líder é, em essência, manifestação de um coletivo anônimo, então as coisas ficam dramaticamente piores, pois, se um líder, num dado momento e substituível, é apoiado não importa o nível moral de suas ações, então isso diz da qualidade geral do povo.

Faladores. Está me ocorrendo o seguinte. Passei a ouvir algumas pessoas. Digo, na mídia; ou comentadores no YouTube. Ao ouvir, automaticamente, começo a achar falhas nos discursos. Por vezes, falhas lógicas; noutras, alguns pontos cegos (para não chamar de falhas) psicológicos. Como quando a pessoa fala de algo nos outros mas não percebe a mesma coisa, ou ainda pior, nela. Trata-se de algo que me deixa chateado, isso de não “comprar” totalmente o discurso. Por vezes, chateado porque, poxa, eu gostaria de me espelhar (embora possa o estar fazendo). Gostaria de encontrar o discurso “perfeito”. Por exemplo, escuto o psicanalista e penso: Mas que diabos esse cara tá falando? Como se pode olhar tudo, ou quase tudo, por um mesmo crivo? Depois, vejo o filósofo; ou se trata de um ser, este um que ouço algumas vezes, que criou uma bolha ou realidade própria, ou é um farsante, vendedor de livro com ideias requentadas. Na matriz de um discurso: o “eles não sabem nada”; a crítica que pulveriza as diferenças, talvez por se achar que se tem perspectiva melhor de análise, mais verdadeira, do que os outros. Mas me chateia ainda mais em perceber, sentir, que quem fala está, no fundo, projetando seu “eu”, tentando, ao falar, não mergulhar no caos do discurso que recebe e que nos fragmenta a todos. Falar, externalizar, virou sinônimo de resistir no grande mar das narrativas. Seria falar um remédio? Não sei, acho que as redes sociais realmente amplificaram esses faladores. A pessoa, quarentenada dentro de casa, com uma câmera, interagindo com 30, 40 mil pessoas, começa facilmente descolar da realidade, e leva um monte de gente fanática por um discurso que as coloque na passividade diante de “um Eu que fala” e, ao organizar narrativas, abre vias prêt-à-porter para os afetos perdidos, tristes, impotentes. Talvez seja melhor ficar com a chateação. Primeiro, porque isso me impede de colar em um discurso e virar algo como um seguidor cego. Simplificador radical de realidades. Segundo, porque talvez eu esteja em busca do “meu” discurso, um que conecte minha boca a meu coração. Será que esses faladores encontraram esse elo?

Vamos celebrar?

Fragmentos, 1

Pornografia. Às vezes, quando olho para o que estamos vivendo nesse grande teatro nacional, com essas figuras mentecaptas e platéia volúvel, sinto como se estivesse vendo algum filme chocante por não fazer nenhum sentido evidente, misturando violência, transe e pornografia. Pornografia no sentido de algo totalmente explícito, embora com algum nível assumido de proibição e transgressão, mas que, não obstante ou por causa mesmo de ser assim, traz alguma forma de gozo. Pessoas abrindo a boca, deixando algo entrar ou sair, se achando mais certas do que as outras, a suspensão da vida cotidiana por uma narrativa única, a conversa de dinheiro misturada com morte, a alucinação de jejuar para combater um vírus, pastores entrando na justiça para abrir suas igrejas, empresários chamando a morte de dentro de seus carros, sob o disfarce de não fazerem os outros passarem fome…a lista é imensa, e não é exclusividade do brasileiro. Pornografia a céu aberto.

Ciência. Quando todas as referências de verdade estão embaralhadas, e num momento em que a produção de versões e anti-versões de fatos chegaram a níveis astronomicos, eis que a ciência se torna um porto seguro de uma classe média assustada como nunca. Essa classe média perdeu dinheiro na bolsa. Alguns perderam o emprego, ou temem perdê-lo. Ou então não suportam a ideia de não ver seus negócios funcionando normalmente. Temem porque eles têm algo a perder. Sua vida é precária, no sentido de não ser garantida. A mídia é 100% porta-voz dessa classe média; a mídia, ela própria, é classe média. Até antes da chegada do vírus, estavam ou aparentavam estar tranquilas com a enxurrada de esgoto expelida de Brasília e desses programas salafrarios de auditório cuspindo pornografia todo dia sobre o espaço público. Não se importavam com a verdade. Agora, quando temem seu cotidiano ruir sobre seus pés, recorrem à ciência. Hipocrisia, malandragem ética, acovardamento geral. Só estamos vendo os porões desse navio podre.

Um e muitos. Quando uma só pessoa fala, e calha de ela ser o presidente de uma república, ela consegue ter um discurso muito mais poderoso do que o da cacofonia de 300 ou 400k de inscritos em redes de esquerda no YouTube, por exemplo (as mais assistidas não passam de 2 ou 3 milhões, e nem de esquerda ou política stricto senso elas são). O presidente de uma república tem, a sua disposição, um imenso aparato. Que se torna mais forte ainda quando é uma voz que reduz a ambiguidade. Não por ser brilhante, mas por ser, acreditem!, genuína. Essa voz, desse tal presidente, fez emergir, tirar das sombras, muita gente de quem nunca se ouviu falar. Assim como tal presidente elegeu deputados e governadores, promoveu muita gente que, da noite para o dia, encontrou um objeto sobre o qual aplicar seu instrumental “filosófico”, “psicológico”, etc. Assim como o coronavírus promoveu um punhado de “cientistas de divulgacao”. Muito divertido como a fortuna, o acaso, faz o monge. Mas enquanto um presidente fala para 200 milhões, ele tem o domínio da narrativa. Ele institui a narrativa. Não dá para competir, dá? Se você abrir um portal de notícias, quantas manchetes vai encontrar? Sei lá, no mínimo umas 50, e isso apenas no espaço de uma tela, sem “rolar”. Quem escreve? Às vezes, nem o nome dessas pessoas nós temos. Como confiar? É uma cacofonia. Mas, sempre há uma narrativa organizadora. Identifique-a. Pode ser sobre um vírus ou, num regime presidencialista, a narrativa do indivíduo presidente. Que, aliás, acaba mostrando uma coisa: a maioria das pessoas é muito, mas muito, perdida. Bocas, dentes e línguas que falam inspiradas por vento.

Esquerda e direita. O que vou falar é sem qualquer base de pesquisa. Mas você já reparou que a esquerda pinta a realidade sempre catastroficamente, ao passo que a direita pinta tudo como “resfriadinho”? Estava vendo. Um canal de “esquerda” arrecadou 10k reais estes dias por fazer “lives”. Outro “filósofo” está garantindo uns 4k mensais para repetir as mesmas informações que, sem revelar, pesca aqui e ali lendo os jornais ou usando bom senso de pessoa escolarizada em país de analfabetos e medrosos sem qualquer originalidade existencial. Para falar mal da direita. Caramba, como você se sente, sendo ouvido devido ao pavor dos nem-direita-nem-esquerda perdidos, querendo alguma ordem? Você está ganhando grana graças ao presidente que organiza uma narrativa e gera sensibilidade em torno de temas que de outra forma passariam desapercebidos pela dispersão cacofônica que virou nossa sociedade de celulares com planos de dados e bites para desperdiçar em “redes sociais”. Você está só “reagindo”, espertinho.

Ainda atuais (2)?

Para quem já leu Espinosa

Veja este, e reflita com o coronavírus como “atualização”

O tipo calado

Há um tipo de personagem em filmes que sempre me atrai: o que fala pouco. Pode variar desde aquele tipo durão, como, principalmente, aquele que, embora sinta coisas profundas e seja empático, não tem pernas para verbalizar tudo o que gostaria – às vezes, talvez nem saiba como expressar, mesmo tendo as palavras, o repertório linguístico. Pensamento e palavra não se sobrepõem, necessariamente.

Claro que deve haver razões inconscientes para essa atração, ou identificação ao inverso, com tais personagens. Costumo falar mais do que gostaria. Ao menos em uma avaliação a posteriori. E na minha carreira eu tenho, basicamente, de falar. Acho que muita fonte de sofrimento do trabalho docente tem a ver com o falar.

Eu sei que esse mesmo falar que traz sofrimento é fonte de satisfação. Acho que tudo tem a ver com permitir alguma sintonia entre X e Y. O que seriam X e Y neste caso?

Nossa, aqui podemos ir longe. X pode ser o desejo, e Y a expressão linguística, corporal, artística, o que for, desse desejo. Mas o ponto é que o desejo não está lá esperando para ser expresso; ele se constrói à medida que ele se materializa, se externaliza, na linguagem (Y).

Mas X pode ser um fato, ou algo que diga respeito à ‘realidade’. Mas temos alguns problemas com isso. Por exemplo, estamos agora, em março de 2020, no início do que parece ser uma epidemia de grande alcane, mas algumas autoridades chegaram a dizer que é ‘fantasia’. Para tais autoridades, X não é o vírus que se espalha, seguindo um padrão já mais ou menos identificado pelo pessoal da saúde. Não. X é alguma verdade mais oculta, que só eles sabem, e que expressam em sua verbalização (Y).

Pode haver o inverso também. Y é imposto sobre X. Nesse caso, falamos o que querem que falemos. Ou falamos algo que achamos que precisamos falar para sermos aceitos, reconhecidos, ou simplesmente para passarmos desapercebidos. Desapercebido, neste caso, é um tipo de alívio, pois, ao usar o Y disponível por aí, não nos obrigamos a lidar com o abismo profundo que parece existir nesse relacionamento entre X e Y. Não acredito, porém, que exista um Y totalmente pronto, feito sob medida, para se ajustar ao nosso X, ou, mais genericamente, para se ajustar a quem somos. Não haveria arte se existisse um certo Y para um certo X. Agora me ocorreu que talvez seja também por isso que me atraio por personagens mais quietos no cinema: eles acabam sendo misteriosos. Interessante o efeito do silêncio, não é mesmo? O silêncio é uma espécie de hiato entre X [ ] Y. Mas o silêncio pode ser apenas…vazio, e então a gente acha que há mistério quando, na verdade, não há nada.

Quando alguém fica em silêncio diante de nós, ou numa conversa, tendemos a falar, a preencher o espaço. Vamos supor, nessa linha, que o mundo todo seja um grande silêncio — como de fato é. Silêncio de vozes humanas, pelo menos — no sentido de que, sem tais vozes, o mundo, o planeta no caso, vai seguir absolutamente o mesmo, talvez até melhor, considerando a destruição que fizemos até aqui. Pois foi isso que nossos ancestrais, antes do domínio da linguagem escrita/falada, tinham diante de si: um imenso planeta. Imagine: eles olhavam para a lua e… silêncio. Quando, por algum mecanismo da evolução, eles esboçaram as primeiras palavras, e estas culminaram nas primeiras frases, e então nas primeiras perguntas, por exemplo ‘Por que estamos aqui?’…silêncio.

Por algum tempo, nossos ancestrais se limitaram a contemplar o silêncio. Seu cérebro ainda não tinha emergido plenamente. A estar com o mundo, corpo-mundo, não se vendo à parte desse grande silêncio. Mas, em algum momento (só para simplificar, pois foi um processo dinâmico e que durou milhões de anos!), a coisa se tornou insustentável e, novamente por algum mecanismo da evolução, a linguagem se articulou e se tornou uma ferramenta para lidar com esse mesmo mundo. Em outro episódio evolutivo, ou cognitivo, descobrimos que X existe e pode ser identificado e objetivado, simbolizado, por Y (linguagem). Foi aí então que aconteceu, ao mesmo tempo, nossa humanização e nossa danação. E não penso no sentido de danação que poderia ter sido (ou que ainda pode) ser evitada. Não, não; danação porque nos demos conta de uma ruptura essencial, fundamental, irreconciliável: X não é igual a Y, mas preciso de Y mesmo assim para sequer cogitar X. E X é mais que Y, sempre.

Para encurtar essa história, e voltar às minhas inquietações iniciais. Quando o relativismo, em ciências humanas, se popularizou; quer dizer, quando a população, mesmo sem saber, passou a aceitar e a viver, sem grandes dores de cabeça, num mundo de versões, conflitos de interpretação, violência simbólica, etc., a partir desse momento começamos a esquecer como tudo começou, de que fomos nós, para todos os efeitos, que, como espécie, não conseguimos, ao preço de ruir nossa própria humanidade, tolerar o silêncio e que começamos a infinita cadeia de X = Y’, Y”, Y”’, Y”’….Yn.

Na vida moderna, no plano mais geral, creio que um exemplo perfeito dessa dinâmica X e Y ocorre com as mídias, sejam elas quais forem. No plano pessoal, a conexão X e Y, como comecei sugerindo, envolve outra dramática. Acho que é, no fundo, a coisa mais importante que qualquer ser humano enfrenta em seu íntimo. A origem, em um plano psicológico, da grande angústia. Só um exemplo: quando falo sobre X, e X é meu desejo, tenho aí um grande desafio. Qual é meu desejo? Quando falo, por certo manifesto meu desejo, em aceitando que o desejo é uma força motora (longa história). Mas também invento sintomas, ou seja, me deixo levar por minhas próprias construções linguísticas ou performáticas, ao ponto de que, se por um lado não consigo mergulhar no silêncio (não como solução para tudo…), por outro minhas construções podem se autonomizar, podem virar uma espécie de religião particular. E mais: pode afetar outras pessoas e criar uma folie à deux (obviamente, deux/dois é só um exemplo; deux pode envolver grande parte de um país, ou do planeta).

Qual o sentido?

Por estes dias estava com algumas ideias na cabeça para um post. Uma, era sobre o sentido de ver a vida pelo retrovisor, vamos dizer assim. Qual o sentido do passado? Estava pensando que podíamos vê-lo quer como nostalgia, é claro, mas também como lembrança (com conotações afetivas isoladas dentro do nosso psiquismo – de tal modo que a gente se lembra dos afetos envolvidos, mas, misteriosamente, nos tornamos como um duplo em relação a eles: sentimos mas não nos afetamos como se estivéssemos ainda lá, naquela imagem vivida no passado), ou como objeto de luto.

Tudo isso foi disparado quando um colega, em relação a um assunto profissional específico, me disse, “well, then move on“, ou algo assim, ou “past through”. Ele não tinha ideia do impacto que isso teria em mim, tampouco eu próprio. Mas, dentro de mim abriu-se esse insight de que podemos de algum modo nos separar, de fato, das experiências vividas no passado e “nos movermos para além delas”, ou, em bom brasileiro, “tocar a bola”.

Mas é sobre a outra ideia que gostaria de falar um pouco mais. Estava refletindo, dia desses, sobre uma situação bizarra, embora provavelmente real, que me veio à mente: como uma pessoa, particularmente uma mulher (não sei por que, mas a imagem feminina incorporou esse pensamento em mim), consegue justificar o fato de estar com alguém? Para ser mais específico, fiquei pensando: como algumas mulheres permanecem casadas com algumas figuras aí da nossa vida política, pública, atual (não me interessa citar nomes, afinal, eles são completamente irrelevantes, especialmente essas pessoas em quem estou pensando)? Como elas justificam seu amor? Teriam elas a capacidade de enxergar algo de bom nessas pessoas com quem estão vinculadas?

Não creio que seja amor. Ou até pode ser, eventualmente. Mas não creio, mesmo, que seja amor. Ocorreu-me, num viés um pouco sombrio, admito, que essas pessoas conseguem justificar, racionalizar, a situação; por extensão, ocorreu-me que todo mundo consegue justificar tudo, pois a linguagem tem uma ampla maleabilidade, permitindo a construção de histórias que, sem uma análise em perspectiva, parecem verossímeis. Acho, inclusive, que tais histórias despertam algum nível de dependência primária dessas pessoas, dessas mulheres, no meu raciocínio (pense, por exemplo, nalgum presidente da república em algum país, ou então em algum ator de cinema, ou jogador de futebol, ou então em qualquer personalidade de moralidade muito duvidosa: não são pessoas solitárias; em geral, são casadas, sem mantêm em algum relacionamento; ou seja, contam histórias, constroem narrativas, à noite, em casa).

Mas, enfim, meu ponto todo é chegar a uma incrível coincidência do destino. Assisti o filme A hidden life, o último do diretor Terrence Malick. O personagem principal tem uma profunda convicção: a de que não é moralmente correta a guerra de Hitler, e ele simplesmente se recusava, como cidadão austríaco convocado para a guerra (e obrigado a tanto, sob risco da pena capital), a ir para o front de batalha e jurar, ainda que “só para inglês ver”, lealdade ao ditador. Ele colocou tudo, absolutamente tudo, em segundo plano em relação a essa convicção, especialmente mulher e filhos. E a mulher aceitou, compreendeu e entendeu essa escolha.

Ao mesmo tempo, o filme provoca sobre uma questão mais ampla: qual o sentido da vida? Bom, eu não tenho pretensão de discutir em profundidade o filme aqui, pelo menos não por hora. Só achei, como disse a pouco, uma tremenda “coincidência” ter me deparado com essa narrativa que constroi uma história que tem o total apoio, no caso, da mulher do protagonista, apesar da imensa perda a que ela é sujeita. Ela acreditava na narrativa do marido, e o apoiou até as últimas consequências.

Claro, neste caso fica “fácil” analisar as coisas, pois temos o feedback histórico e sabemos o que aconteceu com Hitler e sua guerra. Sabemos, agora, que a decisão do personagem faz algum sentido moral mais amplo, e que, de algum modo, a mulher dele havia percebido isso (estou apenas supondo; afinal, um casal, no arranjo do amor, talvez funcionasse dessa maneira, com um apoiando o outro na radicalidade de sua individualidade, sem jamais esperar que o outro “pense” na situação daquele que não está abarcado por essa radicalidade). Mas a mulher sabia, à época? Haveria como ela ter a ideia mais ampla, universalmente falando (humanidade) do que estava em jogo com Hitler, a Alemanha, o resto do mundo?

Voltando a meu raciocínio inicial, e aproveitando a metáfora: saberiam essas mulheres desses personagens de nossa vida pública atual algo que não sabemos? Estariam elas enxergando algo mais amplo, ainda que inconscientemente? Não, eu duvido. E, de novo, o filme é claro nesse sentido: acreditamos em qualquer coisa, não vamos muito além em defender valores e moralidade de alcance, digamos, universal. Justificamos tudo, na pequenez mais abjeta. Achamos que nossa vida vale muito, que, portanto, tudo o mais é “só para inglês ver”, e que pequenos deslizes aqui e ali não representam a escória do que pode se tornar um ser humano, mas apenas algo “menor”, não importante. Achamos que pessoas orientadas por valores universais são idiotas, e que uma vida é muito mais importante que um ideal ou do que a cumplicidade com algum preceito ético kantiano, imperativo.

O valor de uma vida, na nossa sociedade atual e na concepção dessas mulheres (só as estou utilizando, repito mais uma vez, alusivamente), é o valor de uma narrativa, de uma crença, cujo conteúdo de verdade não sabemos ao certo, exceto que são verossímeis em um dado contexto. Especialmente narrativas ao redor do corpo (prazeres, conforto, segurança, aparência). Mas nunca, ou só em casos excepcionalmente raros (como ilustrado pelo personagem no filme do Malick), um ideal é ‘confirmado’ com o corpo. Em última instância, só sabemos o quanto estamos dispostos a sustentar um ideal quando, no mesmo ato, estamos dispostos a ‘financiá-lo’, por assim dizer, com esse mesmo corpo mimado que serve de palco para nossas narrativas atuais, capazes de justificar as maiores atrocidades, os mais insuportáveis absurdos.

Cito a frase com que o filme é encerrado, e que é muito bonita, e que deixo registrada, quem sabe, para a ela voltar algum dia. É de George Eliot:

..for the growing good of the world is partly dependent on unhistoric acts; and that things are not so ill with you and me as they might have been, is half owing to the number who lived faithfully a hidden life, and rest in unvisited tombs.”

Nenhum sentimento é final

Let everything happen to you: beauty and terror. Just keep going.
No feeling is final

Rilke


Neste exato momento alguém acaba de chegar em casa após um dia cheio, rico, com a sensação de que venceu uma batalha digna. E há gente que não fez nada o dia todo e não sabe o que fazer com a própria vida. Tem alguém que conseguiu uma promoção há muito desejada e pela qual lutou muito. Tem gente indo para uma viagem dos sonhos. Tem gente saindo de uma cirurgia, sem saber se vai sobreviver. Tem gente que acaba de ser despedido. De perder um pai, um filho. Tem gente que está se casando. Tem gente fazendo um sexo inesquecível, num lugar inesquecível. Tem gente que recebeu uma notícia triste. Tem gente saindo para jantar fora. Tem gente passando fome. Tem gente que está se reencontrando após uma longa separação, e tem gente que se separou e talvez não vejam mais um ao outro. Tem gente que passou num exame difícil, e tem gente que desistiu no meio. Tem gente sendo humilhada, tem gente sendo exaltada. Tem gente que ganhou muito dinheiro; tem gente que está assinando o contrato de falência. Tem gente que tomou uma decisão muito acertada, tem gente que meteu os pés pelas mãos. Tem gente que está beijando. Tem gente que está apanhando.


Em muitos anos não me deparava com uma frase tão incrível. A do Rilke.
Nenhum sentimento é final. Nem o de mais absoluta alegria, nem o de mais pura desgraça e devastação. Ganhar não é, apenas e tão somente, “ganhar”. Você perde algo quando ganha. Perder não é simplesmente “perder”, um estado final, definitivo. Você ganha algo quando perde. Hoje você está feliz; amanhã, triste.


Não se ater a um sentimento, agarrando-se nele. Apenas deixá-lo passar. Se não conseguimos resolver algo terrível que nos aconteceu, uma perda, uma dor, não façamos nada, apenas deixemos o tempo agir. Da mesma forma, não adianta querer se agarrar a um sentimento de felicidade. O tempo vai te tirar desse sentimento, vai dilui-lo da mesma forma que acontece com uma gota de tinta caindo num rio. O que você está vivendo na sua vida neste exato momento vai passar, seja beleza, seja terror. O tempo nos separa de nós mesmos, assim como a expansão do universo está o separando dele mesmo neste exato momento, por assim dizer. Nem o universo é o mesmo, no dia seguinte.

Da imperfeição

É engraçado como as “estações” da vida vão nos levando e trazendo para as variações mais amplas de temperatura, paisagens, odores, texturas, imagens. Uma das frases deste livro de Greimas está como epíteto de meu blog desde, acho, que o lancei, em 2007. Depois de tanto tempo, algo volta, como trazido pelas ondas, um desejo de rever a imperfeição, seu sentido na minha vida. Vivemos, no discurso pelo menos, em uma cultura/sociedade que valoriza a perfeição, a performance, o fato de ser ‘o melhor’ e estar sempre no ‘topo’, por mais que, por ‘topo’, signfique ver quem tem mais sapatos, o sorriso mais caro, ou whatever. Não há limites no esforço de se tomar o chão pelo teto. É certo que Greimas é um semioticista, portanto, tem sua crença inabalável no poder, na função central, na estética do sentido. Mas se pensarmos na literatura, no cinema, nas artes em geral, veremos isso de modo mais extremado, decisivo: a tentativa de resistir à imperfeição criando outras perfeições, estas humanas. Mas, de fato, o que nos resta? O mundo fora da linguagem é um oceano sem fim; ele é uma passagem que pode nos entrangular com a força mais extrema, gerando os temores mais arcaicos e absurdos, viscerais, mas também uma espécie de fuga para o profundo, para um “disforme”, porém paradoxalmente “tudo” (no sentido de que uma experiência te toma “em bloco”), para a vibração espontânea dos afetos, misturados e agitados, sem controle. Mas não a perda de controle banal, tradicional, mas o por assim dizer a-controle. Após essa passagem, após esse trecho no “além da linguagem”, a própria linguagem volta diferente, se constrói diferentemente, acomoda as vibrações internas de outra forma, e assim a vida vai seguindo, de mergulho ao fundo do além-linguagem, no ‘imperfeito’, vamos dizer, e os períodos de calmaria, de apenas boiar de costas nas mesmas águas do oceano.

Edificar sobre a areia não é por acaso cultivar a espera do inesperado?

Querer dizer o indizível, pintar o invisível: provas de que a coisa, única, adveio, que outra coisa seja talvez possível. Nostalgias e esperas alimentam o imaginário cujas formas, murchas ou desabrochadas, substituem a vida: a imperfeição, desviante, cumpre assim, em parte, seu papel.

Vãs tentativas de submeter o cotidiano ou dele esvair-se: busca do inesperado que foge. E, todavia, os valores ditos estéticos são os únicos próprios, os únicos que, rejeitando toda negatividade, nos arremessam para o alto. A imperfeição aparece como um trampolim que nos projeta da insignificância em direção ao sentido.

O que resta? A inocência: sonho de um retorno às nascentes quando o homem e o mundo constituíam um só numa pancália original. Ou a vigilante espera de uma estesia única, de um deslumbramento ante o qual não nos encontraríamos obrigados a fechar as pálpebras. Mehr Licht!

A. Greimas, p. 90


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