Na nossa cultura, desistir raramente é visto de forma positiva. A persistência é amplamente valorizada e exaltada como virtude. Quando alguém desiste de algo, as explicações costumam apontar para falta de força de vontade, caráter, ânimo, “estamina” ou coragem. O desistente é frequentemente percebido como fraco e pouco confiável.
Reconheço que, em determinadas situações, desistir pode ser prejudicial. Por exemplo, quando o objetivo é tornar-se pianista, é inegável que será preciso enfrentar muitos desafios. Essa escolha, por si só, já carrega uma exclusão: ao decidir seguir esse caminho, você voluntariamente aceita abrir mão de diversas gratificações imediatas em troca de uma possível recompensa futura. Um obstáculo – ou mesmo uma série deles – não deveria, por si só, ser motivo para abandonar um propósito.
O problema é que, em geral, tomamos decisões sem saber o que enfrentaremos pelo caminho. Voltando ao exemplo do pianista, no momento da decisão, imaginamos uma plateia extasiada aplaudindo nossa performance magistral. O resultado idealizado, antecipado no instante da escolha, é muitas vezes o combustível inicial. Porém, quanto mais fantasioso for o objetivo, maior pode ser a frustração ao lidar com a realidade. Assim, uma das razões para desistir é perceber que o caminho é difícil, tedioso, ou exaustivo demais para ser trilhado.
Persistir, por sua vez, é também uma forma de renúncia. Mas renunciar não é o mesmo que desistir. Renunciar significa aceitar os sacrifícios inerentes a uma escolha, adiando recompensas que, aliás, podem nem se concretizar. Afinal, o futuro é incerto, o sucesso não depende apenas de esforço, e as idealizações frequentemente sucumbem à dura realidade. Desistir, por outro lado, é algo completamente diferente.
Desistir implica abandonar uma decisão já tomada. Esse ato pode ocorrer em diferentes níveis: desistir de uma carreira, de um relacionamento, de um sonho. Também existem desistências cotidianas, como abandonar uma fila no supermercado ou deixar de procurar promoções entre diversas lojas. Em casos mais extremos, pode significar desistir de viver.
A desistência muitas vezes envolve cálculos racionais de custo-benefício: investimento versus retorno. Mas há algo mais profundo no ato de desistir. Trata-se da relação com o que realmente desejamos. Quando conhecemos nosso desejo, somos capazes de justificar, para nós mesmos e para os outros, o sofrimento temporário em prol de um bem maior no futuro – como o exemplo do pianista renomado. Esse mecanismo também é evidente nas religiões, onde pessoas renunciam a prazeres terrenos em busca da promessa de recompensas divinas.
De forma semelhante, persistir – o oposto de desistir – é sustentado pelo desejo. A questão central, então, é compreender o sentido do que se deseja, e não apenas seu significado social. Essas dimensões, no entanto, estão profundamente entrelaçadas. Pensemos no caso de muitos jovens brasileiros que aspiram ser médicos. Será que esse desejo é puramente pessoal? Difícil acreditar. Desde cedo, esses jovens são expostos a ideais e valores que exaltam a medicina, muitas vezes transmitidos pela família, pela mídia ou pelos pares. Com o tempo, os significados sociais associados à profissão vão se internalizando e se confundindo com o desejo individual. Em outras palavras, o que começa como uma expectativa externa pode se transformar na própria vontade do sujeito, carregando nuances particulares.
Sob a perspectiva do desejo, desistir significa abrir mão de uma escolha que parecia pessoal. Então, por que desistimos? Uma possibilidade é que o desejo que julgávamos nosso era, na verdade, o desejo de outra pessoa – dos pais, por exemplo. Nesse caso, desistir significa abandonar não apenas uma decisão, mas também uma parte de si mesmo que antes parecia central à sua identidade. Trata-se de um ato que exige enorme coragem, muito diferente da visão estereotipada de fraqueza frequentemente associada à desistência.
Desistir, nesse contexto, não é simplesmente recuar, mas abrir mão de certezas em troca de possibilidades incertas. Afinal, apoiar nossas escolhas no desejo dos outros oferece uma forma de certeza – ainda que apenas aparente. Os significados, que são herdados socialmente, tendem a ser mais estáveis e definidos do que os sentidos, que precisam ser construídos individualmente, comportando risco e profundas incertezas. Desistir pode ser um gesto profundo e transformador, capaz de desafiar convenções culturais e provocar uma reflexão sobre o que, de fato, constitui o próprio desejo. Na essência, discutir a desistência é discutir o querer – ou o não querer.