O ovo que chocou

O que é uma pessoa? Esta é uma pergunta que, na aparência, parece banal. Uma pessoa é, claro, um ser vivo. Um corpo. A materialidade deste último é inegável e, por si só, é condição necessária, embora não suficiente, para que haja uma pessoa. Primeiro, porque esse corpo precisa ser “montado”. Refiro-me a “montar” no sentido de um cavaleiro que monta sobre um cavalo. Há, nesse gesto, o assumir controle sobre o cavalo. Sei que esta metáfora pode ser capciosa, pois, de algum modo, poderia sugerir que nosso corpo precisa ser dominado (a mente dominando o corpo etc.). Mas considere a metáfora de outra forma: montar é assumir. Como uma modelo em uma passarela, que precisa incorporar, vestir, empossar-se, tomar conta de um personagem do qual seu corpo será o veículo, o signo.

Segundo, o corpo precisa ser colocado em situações. Precisa interferir, agir, coexistir, mas essencialmente entrar em contato com o mundo físico e social. Ou seja, o corpo, e por extensão a pessoa, é um meio de ação, uma forma de mediação com a realidade. Interessantemente, nosso corpo é um duplo: mediação entre o “eu” e o mundo, mas também entre o sujeito e si mesmo – como em “eu me vejo”. Quem é esse “eu” que vê? Ele vê o “mim”. Mas o que, ou quem, é esse “mim”? O “eu” vê o “mim” em um espelho, digamos. Nosso corpo é aquilo que gostaríamos de ver? Por que nem sempre conseguimos assumir o corpo que temos? Em outras palavras, por que não conseguimos “montar” nosso corpo? Por que o “eu” está em oposição ao “mim”? Enxergamos uma coisa (um objeto real no mundo, nosso corpo), mas vemos outra no lugar. Esse exemplo evidencia a duplicidade da experiência da pessoa na sua própria corporeidade – mas isso não se limita a ela, obviamente.

Uma pessoa é também uma projeção. Uma projeção de inúmeras possibilidades a serem realizadas. A pessoa é uma potência. E é aqui que gostaria de chegar. Uma pessoa pode ser como uma cesta de inúmeros ovos que podem ou não chocar. A trajetória em que estamos no momento não é nada além de uma possibilidade realizada, dentre tantas outras que não o foram (os muitos ovos que não chocaram) mas que ainda existem no cesto, como potências.

E o que ocorre quando o número de ovos não chocados cresce tanto que a pessoa prefere negar-se a si mesma em vez de empreender em uma direção específica? Ela deixaria de ser uma pessoa? Ou então, quando diz para si mesma: “Todos os ovos têm a mesma probabilidade de chocar. Além disso, um ovo é completamente intercambiável por outro. Qualquer um poderia ocorrer. Tanto faz.”? Com pensamentos assim, a pessoa conclui que sua trajetória atual é tão aleatória e sem valor relativo que poderia muito bem não ter ocorrido. O mundo de possibilidades transforma-se, então, em um mundo niilista. Um mundo de indiferença.

Aqui fica uma reflexão: se você está em uma certa trajetória de vida, ela é, com certeza, um dos ovos que chocaram. Poderia ter ocorrido tudo de forma diferente? Incrivelmente diferente? Sem dúvida. E, se examinar a fundo sua trajetória, descobrirá que, por trás das “grandes decisões” da sua vida, houve dezenas de outras pequenas decisões banais e impensadas (ou pensadas com justificativas duvidosas) que, juntas, levaram à grande decisão.

Você pode viver outras infinitas vidas? Aqui as coisas se complicam. Primeiro, porque talvez não tenha tempo suficiente, independente da sua idade cronológica. Ou energia, inclusive física. Segundo, porque a outra trajetória que viesse a escolher cairia no mesmo problema da anterior: poderia ter sido diferente. De um lado, o excesso de confiança em si mesmo merece escrutínio. Pessoas assim podem estar escoradas em ideais e desejos alheios, nos quais baseiam-se tão intensamente que acabam sendo “montadas” por eles, e não o contrário. Por outro lado, pessoas extremamente inquietas, autocríticas e permanentemente problematizadoras de si mesmas podem agir como apostadores frustrados: sabiam que estavam fazendo uma aposta – e uma aposta pode dar certo ou errado –, mas, quando perdem (no nosso exemplo, quando materializam uma trajetória concreta), ficam inconformadas.

Uma cena do filme Our Sunhi, do diretor Hang Sang-soo, cujo diálogo entre esse dois personagens inspirou este post, especialmente os próximos parágrafos. Credito da imagem aqui.

Como descobrir quem você é? Pegue sua trajetória atual e vá fundo, cave profundamente, vá até o fim, com tudo, com força. Se, nesse processo, você descobrir que algo deu errado, então você saberá quem você é, qual seu limite e o quão verdadeiramente “montado” você está nessa trajetória, ou se, na verdade, foi simplesmente lançado nela como uma moeda jogada ao ar, dependente da pura aleatoriedade. Uma pessoa deveria ser mais do que uma aleatoriedade. Mais do que um mero acaso. Embora a vida seja exatamente isso: uma aleatoriedade que se materializou, deu certo e se firmou como algo que, retrospectivamente, dizemos que valeu a pena. E que fique registrado, apenas para efeito de argumentação: se não houver eternidade, onde a pessoa viveria para sempre tal como é hoje, então é isso que temos: uma única vida.

Agora, pense: diante da última frase, de que só temos uma única vida, qual é a recomendação mais comum? A de que devemos nos reinventar sempre. De que a mudança é a regra, a única coisa “permanente”. E aí, no final da vida, com o intuito de justificar essa visão rasa e cacofônica, típica de uma época volátil como a nossa, a pessoa diz que “viveu intensamente, com muitas experiências”. Sabe o que eu acho? Falta o oposto: gente que não esteja o tempo todo querendo mudar, se reinventar, se “desconstruir”, etc. Gente que vá fundo em algo. Que se radicalize nesse algo e se descubra verdadeiramente no processo. Não precisamos de infinitos ovos para fazer uma omelete saborosa e nutritiva.


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