Precisamos transformar TUDO em fato científico? Só os obsessivos…

Max Weber disse, no início do século passado, que os empreendedores capitalistas (na ocasião, ele se referia aos norte-americanos), não iriam parar até que o último combustível fóssil deste planeta fosse queimado. Estou parafraseando. O contexto do argumento era o capitalismo. A analogia serve para pensar em algo semelhante, porém não na esfera da economia: a ciência não faz a mesma coisa? O desejo de explicar tudo, de transformar tudo em um “fato científico” parece não ter medida.

1. Primeiro, pensemos no mundo pequeno da pesquisa: todo aluno que deseja fazer mestrado ou doutorado tem de “descobrir um tema” para pesquisar. Vale tudo: a engrenagem teórica tritura tudo o que encontra pela frente. Na psicologia, se você é um afeito à psicanálise, você pode querer explicar desde porque crianças não tomam leite ou gritam demais até porque as pessoas não obedecem a lei ou são violentas. Se você é um comportamentalista, pode querer entender desde a vida das formigas, macacos e outros animais até porque suamos frio quando ouvimos o sino da igreja tocar em um sábado à noite. Exagero, simplificação minha, mas o ponto está correto: tudo vira fato científico. Quem é que já não presenciou o desespero dos jovens que entram para um mestrado, antes de se tornarem “estáveis” em algum nicho disciplinar?

2. Tornar tudo passível ser pesquisado, escrutinado, explicado, é, mutatis mutantis, semelhante ao que faz um pensamento religioso ingênuo: tudo é explicado recorrendo a Deus. Chouveu? Foi porque Deus quis; o dia amanhece, a noite cai: Deus quis. E assim por diante. O desconforto é incalculável para o devoto alienado que não consegue encontrar no mundo senão a teleologia divina. O cientista alienado, idem. Seu desejo de saber, de dominar, de prever, pode não alcançar fim. Cientistas, na versão caricata do indivíduo que vê o mundo como um laboratório, tem uma curiosidade obsessiva. Ou então é um competente e disciplinado agente capaz de transformar o mundo físico em nosso benefício. De fato, o que seríamos sem eles? Provavelmente, um bando de bípedes sem penas caçando com lanças primitivas.

3. O que é um fato científico, pensando, particularmente, nas ciências humanas? O que pode ser passível de ser explicado, convertido no jargão científico? Há quem diga que um fato científico surge de algum desfuncionamento: o que não funciona conforme o planejado deve ser reparado. O amor se torna um fato científico quando se revela uma esfera problemática para os animais humanos; o trabalho, idem. O mesmo para a saúde, a educação, o lazer. Metemos o nosso nariz científico em como as pessoas jogam futebol, como elas fazem sexo, como elas dormem, como elas comem, como elas lidam com as perdas, com seus medos, com esquisitices….enfim, tudo.

4. Mas não é só o Lattes que anima a transformação compulsiva-obsessiva de tudo em fatos científicos. É a falta de criatividade, a dificuldade de um pensamento autônomo, em suma, falta da capacidade de ser adulto, de debater as coisas entre adultos, e de resolvê-las. Mas, não: é preciso passar pelo crivo científico, pelas normas da APA, da ABNT-2, dos objetivos claros e “focados”; é preciso passar pela crítica de que você não respeitou as regras básicas do método científico. Patético, pois, enquanto isso, o mundo gira em sua órbita indiferente. Pior: o mundo humano parece pouco se importar com o que se produz nas ciências humanas. Tem-se ali forças muito mais poderosas de explicação, enraizadas profundamente em hábitos, cultura, pressupostos. E não adianta, defensivamente, dizermos que “são ingênuos”. Santo Deus – qualquer pessoa, em universidades brasileiras, sente na pele o que, de fato, é ingenuidade.

5. Às vezes, dá vonta de dizer: que cada um viva sua vida e faça dela o que quiser; não precisam DESSA [ambiguo, certo?] ciência para lhes dizer o que fazer.

6. Vamos admitir um possível “fato”: que nós precisamos inventar fatos para moermos, na máquina científica, dissertações e teses. Veja bem: não quero dizer que fazer isso é coisa de não-adulto; há valor nisso, mas é preciso procurar com lupa. Portanto, talvez parecendo autoritário, concordo com decisões de um terceiro (o Estado) sobre quais áreas são ou não “prioritárias” para se investir dinheiro. O investimento deste último está, claro, sujeito a humores políticos, bem como podem induzir pesquisadores a construirem a “indústria da pobreza” ou algo similar só para conseguir recursos públicos, ostentar seu status de “pesquisador do Cnpq”, etc. Mas precisamos de algum critério de valor que nos ajude a decidir, pela esfera pública, o que é desfuncional e merece um escrutínio, sério, científico.


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