Beleza como convenção?

Fiquei impressionado com um experimento realizado pelo jornal norte-americano The Washington Post. Joshua Bell, considerado um dos maiores violinistas do mundo, tocou, por quase uma hora logo no início da manhã em um metrô de Washington. Performando em um violino avaliado em 3,5 milhões de dólares, não conseguiu atrair senão a atenção de alguns poucos curiosos. Logo à primeira vista fiquei pensando: seria a beleza algo que se mostra por si, impondo-se aos nossos sentidos (nesse caso, auditivo), ou dependente de um contexto? Alguns interpretaram a reação do público como sendo de descaso, falta de tempo ou de preocupação com as coisas belas; em outras palavras, como se Bell houvesse jogado “pérola aos porcos”. Contudo, para mim há uma outra possibilidade: nosso julgamento do que é belo, bonito, esteticamente agradável etc., depende de local, predisposição e de um propósito coletivo. Seja como for, é muito provável que Joshua Bell tenha se sentido um pouco constrangido, afinal, talento é talento. É mesmo?

Felicidade

A leva de estudos sobre felicidade tem proliferado nos últimos anos. Há quem diga que felicidade se tornou uma área de estudos, à semelhança dos “estudos culturais”. Teríamos então algo como “happiness studies”. O foco: o que é a felicidade, por que somos ou não felizes, qual a origem do conceito e coisas do tipo. É verdade que, pelo menos nos livros que tenho visto, não há pretensão em se dizer “como ser feliz”, sobretudo porque a maioria desses livros é escrita por acadêmicos, em específico filósofos. Em termos de abordagem metodológica, não parece haver linha única. Vejo estudos focados em psicologia evolutiva, cognitiva e neurociências; há também os estudos genealógicos ou históricos, de cunho mais filosófico. Entre estes últimos, vale a pena o livro do professor de filosofia Darrin McMahon, “Felicidade – uma história” (Editora Globo, 2007). Em uma entrevista do autor ao Estadão, ele diz:

No mundo moderno, felicidade é um conceito ligado ao hedonismo, fundamentalmente. Ora, não dá para ser feliz num país onde, por exemplo, se pratica a tortura. Aristóteles definia a felicidade como a associação entre prosperidade e virtude. Os países subdesenvolvidos sofrem porque sabem que esse tipo de felicidade é quase impossível. Então, é inevitável a desilusão de alguém que se entrega a uma forma hedonista de ver o mundo. É provável que os sociólogos e cientistas sociais nunca cheguem a um consenso sobre o que torna os homens mais felizes, mas uma coisa é certa: a mídia e o marketing criaram uma idéia falsa de felicidade e vai ser difícil controlar essa onda hedonista no mundo desenvolvido.

A diagnóstico semelhante chegou o psicanalista Contardo Calligaris, em matéria da Folha dedicada à questão da felicidade (para assinantes). Nela, Calligaris também comenta, com elogios, o estudo de McMahon.  Transcrevo, agora, uma passagem do texto do psicanalista:

Na modernidade, a definição do que nos faz felizes fica bastante incerta, mas, paradoxalmente, a exigência de sermos felizes (sem saber direito o que isso significa) torna-se irrenunciável. Esse imperativo enigmático é uma peça essencial de nossa organização social. Explico. A felicidade é, hoje, uma aspiração obrigatória que, por sua indefinição, não pode ser satisfeita. Portanto, ela alimenta uma sede insaciável de objetos e prazeres. Essa sede sustenta nosso modo de produzir e consumir e nos leva a organizar nossas diferenças sociais segundo os “sonhos” que cada um conseguiu realizar (ou seja, pela inveja).

De minha parte, fico muito confortável para aceitar o diagnóstico de ambos. De fato, felicidade, hoje, significa prazer e consumo como obrigações morais. McMahon é cético quanto a esse novo ideal social; Calligaris não fica longe: na medida em que é obrigatória, a felicidade gera movimento de procura de satisfação, a qual é maximamente encontrada no consumo. Acho o seguinte: é pobre uma sociedade que encontra seus ideais de felicidade em um sabonete de banho, ou então em uma roupa, ou ainda na posse de um carro. Vivendo pelo e para o efêmero, isso é o que rege a ideologia da felicidade individual de nosso tempo.

Qualidade de vida

Todo mundo, especialmente habitantes de grandes metrópoles, fala sobre (e deseja ter) qualidade de vida. Mas o que seria tal coisa? Obviamente, rico não tem qualidade de vida; para começar, isso deve ser algo inventado para a classe média. Vamos pensar em uma teoria intuitiva sobre qualidade de vida: não pegar trânsito, não se estressar demais no trabalho, ter controle sobre o próprio esfincter, conseguir caminhar até a padaria e voltar, comer bem, dormir bem, ter segurança… A lista pode ser infinita. Mas há algo de muito importante mascarado nessa estória.

Qualidade de vida é uma versão desinflacionada, popular, da idéia de “vida boa”, no sentido grego. Uma vida vivida com excelência, quase heroísmo, com virtude. A qualidade de vida de que se fala no vulgo é uma teoria fraca sobre a “vidinha” boa. Notem que, quase nunca, se computa como fazendo parte do conceito uma relação saudável na esfera pública – ser bem tratado, tratar bem, pequenos gestos e modos que configuram a fibra de nossa vida cotidiana. Exceto da perspectiva do consumidor, que é, penso eu, a base epistemológica desse conceito de qualidade de vida! Para mim, que sou, pelos critérios do IBGE, membro da classe média, ter qualidade de vida é ser bem tratado nos pequenos detalhes: ter opção de escolha na cidade, ter bons médicos, não ser tratado como um número. Aplico a mim mesmo o comentário anterior, sobre ser a “qualidade de vida” um tema que poderia ser traduzido por “animais, mamíferos, gostam de prazer”.

Hoje fui fazer um exame de esteira, chamado “ergoespirométrico”. Passei mal ao final do teste. Mas, e apesar de não ter sido expulso da sala onde tive de permancer deitado (até fui tratado “com dignidade”…), a enfermeira chega e diz ao médico que havia dois pacientes esperando. O moderno critério da quantidade, do pagamento por unidade… medicina, hoje, não deveria mais fazer parte de nossa idéia pequeno-burguesa de qualidade de vida. Medicina é o exemplo mais bestial do que vivemos no mundo acadêmico: produtivismo. Só que tal produtivismo, no mundo acadêmico (pensem nas Humanas), é inócuo: serve para alimentar vaidades menores, de gente pequena. Na medicina, o produtivismo é pernicioso. Um olhar antropológico na rotina diária de clínicas médicas, Brasil afora, deverá ser suficiente para deixar qualquer pessoa em estado de choque.

Sabe o que é pior? Minha crítica aqui não vai, jamais, alterar o cotidiano, onde sua vida parece que vale pela sua assinatura numa requisição de exame. Nem quero pensar no que vive uma pessoa doente neste país. Enquanto isso, as criaturas vão achando que ter qualidade de vida é ter acesso à praia (com péssimo serviço, com gente querendo te roubar a céu aberto), tomar cerveja Skol, comer uma vez por mês em restaurante de quinta…olhe pela cidade (meu cenário é Natal-RN): descuido, sujeira, agressividade no trânsito…e por aí vai.

O que faz um lugar ser “rico”?

Como já disse incansáveis vezes aqui, que bom que a febre-blog/internet nos permite falar (quase) sem escrúpulos teóricos. Pois bem. Hoje vou colocar aqui outro tema, analisado sob uma ótica muito particular: por que certos lugares são ricos, enquanto outros, não? Por que há cidades, estados, países, muito mais ricos do que outros?

A riqueza é um termo relativo: pode referir-se a uma dimensão econômica (mais óbvia), mas também a uma dimensão cultural, política, social (IDH, por exemplo), etc. Quem já circulou por várias cidades, no Brasil e no exterior (e não precisa ter sido muito!), deve notar a diferença: na fachada dos prédios, no cuidado das ruas, na beleza e estética das praças públicas… e no jeito de as pessoas se vestirem (não me refiro à moda propriamente dita, mas ao “grosso”, à média da população-média). Em algumas cidades, a beleza (que não é relativa, convenhamos!) salta à vista; em outras, a desolação: sujeira, terra, grosseria visual, caos urbano. Obs.: esqueçam, por um minuto, certa “fenomenologia” do “olhar estrangeiro” (exemplo: turista em lugar obviamente subdesenvolvido achando tudo “maravilhoso”).

Riqueza (econômica) está associada à disponibilidade de capital. O sudeste brasileiro, historicamente, é o mais atrativo economicamente. Por quê? Muitos motivos: maior mercado consumidor, custo de logística mais baixo, concentração de empresas, aeroportos com fluxo gigante de pessoas, etc. Mas, no fundo: mercado consumidor.

Mas a pergunta menos óbvia é: de que modo a pobreza pode ser associada ao “comportamento” das pessoas? À sua mentalidade? Riqueza, em sentido não-econômico, arrisco dizer, está associada à disposição, à vontade (interna ou não) de colocar-se a serviço de algo. Riqueza é capital de natureza não propriamente (ou somente) econômica: se eu trabalhar, se eu “servir bem”, e se TODO MUNDO fizer o mesmo, haverá uma elevação geral da riqueza compartilhada.

O capital (econômico) é uma derivação; sempre, uma derivação. O que o vulgo não entende é que a equação que frequentemente cria está ERRADA: quanto mais dinheiro, mais motivação, mais vontade, mais desejo de fazer algo bem feito; essa é a mentalidade que contamina todo o circuito de trocas, a base sociológica do que entendemos, genericamente, como mercado. Mas como somos enganados pela mitologia do dinheiro, não?

Redução de escopo

Olá, pessoal
Aos que me acompanham aqui no blog, esporádicos e contínuos, informo que estou reduzindo o escopo de minha “inserção” na Internet. Estou excluindo minhas contas no Facebook e no Twitter. Ficarei só por aqui no blog e na minha página pessoal (https://www.pedrobendassolli.com). Portanto, nada muda: continuamos a nos encontrar neste endereço. Já está bom para mim!

Os pobres das Américas

Hoje li duas pequenas notas que me chamaram a atenção. A primeira, do Brasil, é sobre uma estatística absurda relacionada à demissão de pessoas no país. Ao redor de 42 milhões de brasileiros foram demitidos sem justa causa nos últimos quatro anos e meio (sobre 73 milhões de demissões). O ministro do trabalho diz que isso tem a ver com a falta de qualificação do trabalhador: os patrões demitem porque precisam de gente mais preparada para realizar as atividades.

Não entendo de economia, mas quando esse número de pessoas são demitidas, e quando, ao mesmo tempo, as taxas de desemprego são relativamente baixas, isso significa que há uma elevada rotatividade: a pessoa não fica muito tempo no mesmo emprego. Também não é dito em que nível isso ocorre, mas tenho a impressão que é na chamada base da pirâmide, com os trabalhadores de menor instrução. Obviamente, há também o desemprego de colarinho branco, mas alta mobilidade em massa só pode ocorrer entre a força de trabalho mais vulnerável.

Como psicólogo organizacional, me pergunto se há alguma novidade nisso – pelo menos se considerarmos a velha máxima do “exército de reserva”, de Marx. Além disso, maior mobilidade também pode indicar aquecimento econômico e maior facilidade para o trabalhador encontrar empregos mais interessantes para sua vida (que pague um pouco mais, por exemplo). Em suma, podemos relativizar esse número impressionante de demissões. Porém, talvez seja igualmente interessante se perguntar o que está se passando nas relações de trabalho, mais particularmente nos processos de gestão, para alimentar essa cifra. Teria o trabalho perdido seu significado subjetivo, e estariam empregadores (e, quem sabe?) e empregados se desfazendo de seus vínculos como se troca de roupa?

Outra notícia que li vem dos EUA. Uma imensa massa anônima, auto-intitulada de os 99% da América, está postando na Internet declarações que vão desde um espírito anti-Wall Street até algo que lembra muito a filosofia dos Alcoólatras Anônimos misturado com certa auto-exposição vitimizante. Veja aqui uma tradução do texto em que tais 99% se definem. Aqui no Brasil, lembro-me de ter visto algo similar (embora em muitíssimo menor escala): a pessoa desempregada tentando chamar de alguma forma a atenção. Nos EUA, dentro de seu individualismo cultural de massa, o átomo (indivíduo) se junta a uma infinidade de outros para gerar alguma reação no plano público. Lá, talvez a tentativa chame realmente a atenção (Sociedade do Espetáculo?); aqui, acho difícil, pois todos os dias assistimos pedintes pelas ruas, entregues à sua própria sorte, e duvido que nos sensibilizemos em massa. Sozinhos, vamos vivendo os dramas diários de “empregadinhos” facilmente descartáveis. Isso é tão dramático que nem sei como concluir este texto (a não ser assim: de forma abrupta).

Focas e bestas

Uma vez eu li um livro no qual o autor, que discutia sobre “ética animal”, propunha a existência de três tipos de posturas éticas em relação animais: (1) há aquela pessoa que NUNCA sentiu nada pelos animais, tratando-os como objetos indiferentes; (2) há pessoas que têm dentro si uma sensibilidade adormecida: basta um pouco de reflexão ou de estímulo para fazerem despertar seu respeito e sentimentos pelos animais; (3) há aquelas que SEMPRE, desde quando saíram do berço, sentem algo pelos animais.

Hoje vi este filme abaixo. Imediatamente, fiquei imaginando os covardes matando esses bichos. E, sabemos, o fazem da forma mais cruel possível. Acho que a razão traz consigo responsabilidades: SABEMOS, ou deveríamos, que torturar os animais e matá-los é uma atrocidade. Sabemos disso, não há dúvida. Mas, claro, o conservador que me lê pode pensar: ué, mas deveríamos também saber que maltratar uma criança, matar outro ser humano, roubar ou coisa que o valha, são atividades inaceitáveis, pois desestruturam o equilíbrio social e fazem os outros sofrerem. Mas, há uma diferença: trata-se de seres humanos racionais, cientes do que estão fazendo (exceto o psicopata mais doente). Nossa relação com os animais é diferente: eles não têm razão, eles não compartilham conosco o mesmo campo ético; mas, ao mesmo tempo, e por conta justamente disso, merecem nosso respeito – pois temos possibilidade de escolha.

Aos covardes do mundo que fazem mal aos animais, aos conservadores mais desalmados, lamento fazer parte da mesma espécie que vocês! Eu me envergonho de dividir o mesmo “dom” da racionalidade que vocês.

Quanto vale um pardal?

Uma metáfora muito forte, que comove a todos ou que mobiliza nossos afetos mais ocultos, é a de um pássaro sendo solto de uma gaiola. Ver o animal voar, depois de ter sua liberdade tolhida ou mutilada, é algo com o qual nos identificamos – afinal, também somos, sob muitos aspectos, criaturas cativas.

Hoje pela manhã tive essa sensação atualizada. E em circunstâncias especiais: estava passeando com minhas duas cachorras em uma praça pública perto de minha casa. Acidentalmente, quando passava debaixo de uma árvore, notei que havia um passarinho (um pardal) preso por uma das pernas. Quando prestei mais atenção, percebi que ele não estava preso por puro acaso ou acidente: ele havia sido preso ao galho por uma linha – na verdade, praticamente por um novelo inteiro de linha!

Imediatamente, subi em um banco, quebrei o galho e comecei uma dolorosa (para mim) tentativa de libertar o passarinho. Ele havia sido efetivamente bem preso: foi passada em torno de todos seus pequenos dedinhos uma linha que os prendia ao galho. Cortei o feixe principal de linhas e fui, ao longo de uns 20 minutos, soltando uma-a-uma, até que finalmente consegui o livrar das amarras. E, claro, esse momento foi muito gratificante, pois, ao soltá-lo, ele voltou imediatamente a voar. Mais impressionante, durante todo o tempo em que fiquei me esforçando para libertá-lo, ele ficou imóvel, como que agradecido. Não há nada que pague isso.

O que fez alguém fazer aquilo? Minha primeira hipótese é de que se tratava de uma atividade popularmente conhecida como “macumba”. A segunda hipótese é de que se tratou de algum exercício de maldade, no seu estado mais puro. Num caso como no outro, creio que posso usar a palavra “mal”. E não a uso em sentido religioso, mas em sentido prático: no sentido de uma ação cuja motivação é fútil ou extremamente egoísta, maquiavélica, desprezível.

Sei que podemos olhar a realidade de muitas formas. Para muita gente, o que importa é atentar-se ao que é “útil” para os seres humanos: por exemplo, fatores macro-econômicos, política, taxa de emprego, saúde e educação. Não discordo. Porém, se colocarmos um “zoom” nas práticas cotidianas mais imperceptíveis, vamos ver que muito da natureza humana se deixa revelar aí – alguém que faz isso com um pardal, que, não fosse a sorte de eu tê-lo visto, a esta hora estaria ainda lá se debatendo para escapar (o que dificilmente iria acontecer), será com certeza conivente ou apático a tudo o que diga respeito às outras esferas da vida em sociedade. O mal, o desprezível, a ignorância, a crueldade, a covardia, a mesquinharia, tudo isso acontece, antes e acima de tudo, nesses pequenos micro-gestos, mergulhados no caldo de nosso cotidiano e desprovidos de qualquer conteúdo ético mínimo.

Vergonha diante da Itália (shame in face of Italy)

O episódio surreal da decisão de libertar Cesare Battisti deixou muitos brasileiros profundamente envergonhados. É provável que nem todo mundo esteja a par do ocorrido, nem, por esse motivo, conscientes da injustiça cometida contra a Itália. Sob o disparate de afirmar que a decisão levou em conta a “soberania nacional”, alimentamos uma mentira coletiva que, certamente, não corresponde senão às nossas instituições e às pessoas que as comandam. Gostaria que os italianos soubessem que a sociedade civil brasileira se solidariza com eles e não é, de forma alguma, conivente com assassinos nem, muito menos, com certa idéia propagada, segundo a qual no Brasil os espertos se dão bem…

Mensagem aos leitores italianos que por ventura passem por aqui:

I would like to send a message to the Italians. I would like you know that we Brazilians, as a Civil Socity, are deeply embarrassed by the decision made ​​by our institutions concerning the non-extradition the murderer Cesare Battisti to Italy. We are very sorry for this, and remain confident that justice will be done.

Animais [por Voltaire]

Que néscio é afirmar que os animais são máquinas privadas do conhecimento e de sentidos, agindo sempre de igual modo, e que não aprendem nada, não se aperfeiçoam, etc.!

Pode lá ser… Então esse pardalzinho que constrói o ninho em semicírculo quando o prende a uma parede, que o constrói num quarto de círculo quando o faz num ângulo e em um círculo num ramo de árvore – faz tudo de igual modo? O cão que ensinaste a obedecer-te durante três meses não estará a saber mais ao cabo desse período do que sabia no início das lições? O canário a quem tentas ensinar uma melodia repete-a logo no mesmo instante, ou não, levarás um certo tempo a fazer-lha decorar? E não reparaste como se engana, com frequência, e vai corrigindo depois?
É só por eu ser dotado de fala que julgas que tenho sentimentos, memória, ideias? Pois bem, não te direi nada; mas vês-me entrar em casa com um ar preocupado, aflito, andar a procurar um papel qualquer com nervosismo, abrir a secretária onde me recorda tê-lo guardado, encontrá-lo afinal, lê-lo jubilosamente. Calculas que passei de um sentimento de aflição para outro de prazer, que sou possuidor de memória e conhecimento.
Transfere agora teu raciocínio, por comparação, para aquele cão que se perdeu do dono, que o procura por todos os lados soltando latidos dolorosos, que entra em casa, agitado, inquieto, que sobe e que desce, percorre as casas, umas após outros, até que acaba, finalmente, por encontrar o dono de que tanto gosta no gabinete dele e ali lhe manifesta a sua alegria pela ternura dos latidos, em pródigas carícias.
Algumas criaturas bárbaras, agarram nesse cão, que excede o homem em sentimentos de amizade; pregam-no numa mesa, dissecam-no vivo ainda, para te mostrarem as veias mesentéricas. Encontras neles todos os órgãos das sensações que também existem em ti. Atreve-te agora a argumentar, se és capaz, que a natureza colocou todos estes instrumentos do sentimento no animal, para que ele não possa sentir? Dispõe de nervos para manter-se impassível? Que nem te ocorra tão impertinente contradição da natureza.
Mas os mestres-escola perguntam o que é e onde está a alma dos animais? Não entendo tal pergunta. Uma árvore tem a faculdade de receber nas suas fibras a seiva que nelas circula, de desabrochar os botões e criar seus frutos; e ainda me haveis de perguntar o que é a alma dessa árvore? Esta beneficiou de alguns dons, como o animal beneficiou doutros, dons do sentimento, da memória, de um certo número de ideias. Quem criou todos estes dons? Quem lhes concedeu todas essas faculdades? Aquele que faz crescer a erva nos campos e gravitar a Terra à roda do Sol.
As almas dos animais são formas substanciais, afirmou Aristóteles; e, depois de Aristóteles a escola árabe; e, depois da escola árabe, a escola angélica; e, depois da escola angélica, a Sorbonne; e, depois da Sorbonne, mais ninguém no mundo.

As almas dos animais são materiais, proclamam outros filósofos. Mas também não tem tido mais sucesso que os primeiros. Foi sempre em vão que se lhes perguntou o que é uma alma material; viram-se forçados a convir que é matéria passível de sensações: mas quem foi que lha deu? É uma alma material, isto é, trata-se de matéria que dá sensações à matéria; e não saem deste círculo vicioso.

Escutai agora outros animais discutindo acerca de animais; a alma destes é um ser espiritual que morre com o corpo: mas que provas tendes disto? Que ideia fazeis desse ser espiritual que, com efeito, experimenta sentimentos e sensações, memória, e a sua dose de ideias e de combinações de ideias, mas que nunca poderá vir a saber o que é uma criança de seis anos? Em que base imaginais que esse ser, que não tem corpo, pareça com o corpo? Mas, de todos, os maiores animais ainda foram aqueles que afirmaram que a tal alma não é corpo nem espírito. Que rico sistema! Só podemos encarar como espírito algo de desconhecido que não é o corpo; logo o sistema destes cavalheiros vem a dar nisto: a alma dos animais é uma substância que não é corpo nem outra coisa qualquer que seja menos ainda que um corpo.
Qual a origem de tantos e tão contraditórios despautérios? Do hábito que os homens sempre tiveram de examinar e definir o que é uma coisa, antes de saberem se ela existe. Costuma chamar-se à lingueta, que é a válvula dum fole, a alma do fole. Que alma vem a ser esta? Apenas um nome que dei a essa válvula, que desce, sobre, deixa entrar o ar e impele-o para um canudo, quando aperto o fole. Ali não há, pois, alma nenhuma distinta do instrumento. Mas quem faz mover a válvula dos animais? Já vo-lo disse, aquele que faz mover os astros. O filósofo que afirmou Deus est anima brutorum (2) tinha razão; mas não devia ter ficado por aí.

Autor: Voltaire.


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