Prefiro ouvir a falar (#27)

Uma série de músicas que fazem parte da trilha sonora de Ray Donovan (Show Time). Em específico, as músicas de encerramento dos últimos episódios da série. A primeira é No Sympathy, do Flash Lightnin; a segunda, Banshee, da Kendra Morris; e a terceira, minha favorita, da Rebecca Ferguson, Glitter & Gold, numa belíssima performance ao vivo.

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O silêncio de Deus

A gente vive numa época barulhenta. As cidades estão cada vez maiores, e o barulho é a regra. A poluição visual, os sinais em toda parte. Grandes e pequenas organizações tentam, a cada esquina, capturar nossa atenção. Não há como caminhar poucos metros e não identificar algum sinal de publicidade.

Numa cidade contemporânea, são raros os espaços e momentos em que você é deixado sozinho. Até se pode ficar sozinho na multidão. Esse mal é conhecido. Mas você não consegue, nas circunstâncias atuais das grandes cidades brasileiras, dar-se conta de algumas coisas existencialmente fundamentais.

Não acho que o ser humano deva viver muito tempo no barulho, na “muvuca”, como se diz popularmente. Não acho que o ser humano vive bem com o excesso de códigos, signos, sinais, símbolos. Estes, numa sociedade de consumo de massas, implica sempre no desvio do essencial, na captura do olhar e na fuga para o supérfluo.

Nunca gostei desses autores pós-modernos, sociólogos e, em geral, franceses (parisienses), que idolatram a cacofonia da vida cotidiana, contrapondo-a à monotonia medieval (ou anterior). A monotonia seria não haver nada para ver, para se distrair? Não acredito. De outra forma, como então explicar a profunda monotonia que podemos sentir no meio à balbúrdia de grandes metrópoles?

Vamos para um contraponto. Você já reparou que, na literatura religiosa, Deus não fala? Pelo menos não no sentido verborrágico. Jesus Cristo, como nos mostra a Bíblia, lança todas suas preces no Monte das Oliveiras a um Deus que simplesmente…se cala. O que poderia significar o silêncio de Deus? O silêncio do verbo? O que há quando não há linguagem, falatório, tagarelice?

O silêncio de Deus pode significar que é o real que está diante de nós. Explico. Em um momento de sofrimento, quando nos foge as frágeis proteções da linguagem, do signo e do simbólico, a que recorremos? A algum aplicativo do Iphone? A algum comercial de televisão? Não. Recorremos a um silêncio absurdamente indecifrável. Aí está Deus. Nesse silêncio, nesse “apagão”.

Deus esta, paradoxalmente, nas entrelinhas dos discursos, sejam eles quais forem. Ele está nos interstícios. O silêncio em que ele “se manifesta” é o inverso da egolatria cotidiana, quando nosso pequeno-grande “eu” ocupa toda a cena, com suas preocupações infindáveis, enfadonhas e rememorativas. Deus é, nesse sentido, o não-eu.

Faça o exercício. Você não precisa acreditar em Deus, você pode até mesmo ser um ateu. Mas faça o exercício de calar-se e de calar o barulho a seu redor. Tente. Esforce-se por deixar o silêncio ocupar, “monotonamente”, a sua vida. Apague-se. Desligue-se de tudo e todos. Não busque seu “eu”, mas sim busque “perdê-lo”, esquecê-lo. Despregue de si tudo que em você se colou, o burburinho geral.

Um exemplo de “contexto” para a “escuta” do silêncio de Deus é a própria natureza. Por que será? Em parte, eu tenho uma intuição, mas ela é bem minha: em parte, porque o ser humano, este sim, é um tédio.

Comentários

Você já teve o trabalho de ler os comentários de internautas em portais de notícias ou em outros locais virtuais? Caso não, faça-o algum dia, por pura distração antropológica. Honestamente, quando faço isso, fico com uma dúvida cruel na alma: que povo somos? De um lado, acho que a internet é lugar de gente que gosta de estravasar o que há de pior e mais indecente: ódio, inveja, maldade, conversa fiada. Para mim, justamente a conversa fiada é o pior. Fala-se sem qualquer escrúpulo, em especial dos políticos.

Por exemplo. A visita do Papa.

Francisco desembarcou hoje no Rio de Janeiro. Ao acompanhar a cobertura do fato, fui até os comentários em diversos portais. As pessoas conseguiam, mesmo com respeito ao Papa e à sua visita, falar bobagens e idiotices. Mas este é só um exemplo. Ao final de qualquer matéria você pode ler tais comentários. No fundo, sem querer ser conservador, acho que a internet está cheia de gente ignorante, semi-analfabeta, covarde, sem noção da realidade.

Vive-se uma vida paralela nesses comentários. Seus autores não sabem, no fundo, o que estão falando. Repletos de erros de português, disparam contra a política, fazem piadinha, liberam seus instintos mais profundos, animalescos, a-políticos.

Por outro lado, esses mesmos comentários refletem um pouco de nossa cultura, de nosso jeito (brasileiro) de ser. Um povo deslumbrado por algo que nem sabe nomear. O brasileiro, parece-me, não sabe lidar com a liberdade – neste caso, a permitida pela internet. Veste um personagem e começa a falar sem qualquer critério. Simplesmente, libera sua mais pervertida e insensata alma. Uma alma pré-civilizacional, ou seja, animal. Desculpem-me a expressão, mas é isso mesmo que acho: alma animal. Uma besta sem modos, sem a menor capacidade de viver a simbologia da vida cotidiana.

Não estou, em nenhum momento, dizendo que o Papa ou qualquer outra personalidade religiosa/política são imunes a críticas ou o quer que seja. Mas tomei este exemplo para falar um pouco de meu mal-estar com comentários na Internet. Algo profundamente decepcionante, a-simbólico, abjeto.

A manifestação da massa

Tenho, como todo brasileiro, acompanhado as manifestações de protesto por todo o Brasil. Hoje, dia 20, no RJ, as imagens são absolutamente impressionantes: no mínimo 300 mil brasileiros tomaram a Avenida Presidente Vargas, em clima pacífico, com cartazes, faixas, com a bandeira do país em punho.

Acho que a quantidade de material antropológico é imensa. Gostaria de registrar algumas impressões.

1. O país do carnaval e da carnavalização. Um país, pense bem, que é um país ‘coletivista’, ‘festeiro’ no bom sentido: como não fizemos isso antes? Se você observar, verá que há de tudo, uma verdadeira miscelânea, quase como vemos no carnaval. A mídia, imbecil como quase sempre, chegou a comentar que se trata de manifestação sem propósito, “uma imensa frescura” de estudantes… . Nada de mais errado, nada de mais ridículo sobre o país, sua cultura e seu povo (embora a mídia, os jornalistas, sejam também brasileiros…);

2. O trabalho não é, em tese, o foco principal do evento, que deixou de ser um grande protesto e se tornou um ritual coletivo. De fato, desde os primeiros eventos, o número de pessoas só tendeu a aumentar. Hoje, nota-se claramente um clima de “convivência coletiva”. Não se trata de uma manifestação com pauta de classe, como eu disse, em relação ao trabalho (em geral, um dos focos de aglomeração – carteiros, professores, etc.). O foco, que no princípio baseou-se na revolta contra o aumento das passagens de ônibus, tornou-se palco de agenda difusa;

3. A Copa das Confederações. Digo isso porque, emblematicamente, Dilma foi vaiada no contexto de um dos eventos coletivos mais fundamentais da nossa cultura: o futebol. Mais uma reação coletiva. Aliás, os políticos, diante de um movimento como esse, viraram nanicos, frágeis, desesperados e, no caso da Presidente, incapaz de sintonizar-se com o “timing” dos acontecimentos (dizer, 10 dias após o início das manifestações, que “reconhecia o direito à voz do povo” é, no mínimo, uma gafe e falta de sensibilidade democrática). Às vezes sinto que o despropósito, a inépcia, dos políticos se deve muito mais ao espírito “para inglês ver” dos brasileiros do que propriamente a uma “despolitização” (em outras palavras: nós, como povo, deixamos as coisas “rolarem”; se realmente nos implicássemos, como está acontecendo, em massa e quase na forma de cartarse, estes políticos não fariam o que vivem a fazer, disto tenho certeza);

Em suma, não tenho opinião maniqueísta sobre o que está acontecendo. Vemos de tudo. Vemos gente se divertindo, vemos pessoas simplesmente ali presentes, como no carnaval ou na comemoração de um jogo de futebol, vejo, em suma, uma vontade aparente de quebrar o fluxo do cotidiano, de resgatar, mesmo que de modo não consciente, um jeito “lúdico” de viver juntos. Vi vizinhos indo à passeata aqui onde moro, e fiquei com a impressão de que estavam indo para um jogo de futebol. Isso não é ‘negativo’, não estou dizendo isso, só estou dizendo que há misturas de gêneros: o protesto é, de algum modo, comemorativo, carnavalesco.

Roberto da Matta, importante intérprete de nossa cultura, tem um texto em que discute a relação entre a “Casa & a Rua”. Hoje, o povo está indo para a rua. Uma rua que, numa visão metafórica, parece uma grande, imensa, imaginária ao mesmo tempo em que simbólica, Sapucaí, um enorme Maracanã. Muito a se pensar, mas temo que os acontecimentos, embora grandiosos, terminem como se termina o carnaval e os eventos futebolescos. Ou não. No momento, só consigo pensar em Ortega y Gasset e seu livro “A rebelião das massas”. Por ora, estou aqui de camarote esperando a reação de nossos nobres políticos, correndo às pressas e diminuindo o valor das passagens. Teriam eles outra opção? Teriam eles outra opção, caso os movimentos continuassem e elegessem cada uma das safadezas que tais políticos patrocinam por aí, descaradamente, acobertados e protegidos por nosso espírito de “deixa, é para inglês ver”? Duvido!

Quando nada mais importa

Você já teve uma sensação do concreto, mas não do concreto em si (digamos, um fato imediato, algo em que você tenha sido envolvido fisicamente, experiencialmente, no aqui-e-agora com todos os órgãos de seus sentidos), mas de um concreto distante, de um fato que você só viu pela televisão ou pela internet, mas, ainda assim, algo concreto? Provavelmente, numa sociedade televisionada e recoberta de informações em tempo real, sim, você, eu, todos já tivemos isso.

Preciso compartilhar algo, algo que, para muitos, talvez para a grande maioria, passaria desapercebido. Passaria desapercebido mesmo por gente que dedica a vida a defender humanos frágeis e vulneráveis. Alguém que atue em comunidades carentes por este país afora, presenciando violência, descaso, maldade e tudo o que de pior o ser humano consegue fazer a ele mesmo. A cena seria naturalizada por quase todo mundo “de bem”.

E o mais absurdo, disso que estou sentindo e ainda não disse diretamente do que se trata, é que esse sentimento é profundamente aleatório, no sentido de que, se eu não tivesse tido a informação, eu não teria sequer sentido o que senti. E também me assusto, bem no fundo do meu peito, ao notar que esse sentimento não apareceria em qualquer situação, mesmo naquelas situações em que pessoas de bem, como as que relatei acima, ficariam sensibilizadas e tocadas.

E também me assusto ao perceber que, quanto mais a cena dói em mim, mais eu quero saber sobre ela, como se eu quisesse enveredar por algum voyerismo masoquista, algum tipo de autopunição.

Tudo isso foi porque vi uma cena de um cavalo atropelado na Raposo Tavares, em SP. Vi pela internet, nos principais jornais matinais. Vi cada detalhe da imagem como se fosse a última imagem que eu fosse ver na vida.

Não sei explicar o porquê, mas o que eu vi foi um abandono, o abandono quase absoluto, a indiferença asquerosa de nossa vida cotidiana. Fiquei com ódio, com ódio da estrada, da rodovia, dos carros, das motos, do maldito concreto contra o fundo verde das árvores ao redor. Uma cena, um acontecimento banal, na mais niilista banalidade da vida cotidiana, uma cena que hoje mesmo está fadada a um esquecimento protocolar; não haveria nada a relembrar, a defender, a reinvindicar; nenhuma placa anotada, nenhuma família triste, nenhum sistema jurídico acionável, nada, simplesmente nada. Em quase 100% das notícias relacionadas ao incidente, o foco era na “lentidão do trânsito”, nos “20km de congestionamento”, e, portanto, no atraso do começo de mais um dia na capital agitada. Quem atropelou, fugiu. O animal atropelado, no chão, com vida, mas por pouco tempo.

Eu me assustei com o sentimento. Assustei-me realmente, pois é como se um canal adormecido tivesse se reaberto em mim, e infelizmente ele desagua na inação, no nada fazer, pois não há nada que eu possa fazer, não há nada que alguém possa fazer neste momento.

Caixa rápido

Hoje eu estava no supermercado e, naquele ímpeto comum de querer sair logo das filas, aderi à de “caixa rápido”. Espera-se que, em tais caixas, realmente o adjetivo funcione, e a coisa realmente opere de maneira eficiente. Mas, no meu caso, aconteceu o inverso. No caixa, provavelmente uma atendende novata. Uma sensação agoniante ver que a fila ao lado desaparece e você fica no lugar. Logicamente, exceto se você estivesse de férias (e ainda assim se poderia duvidar), isso causa certa irritação e ansiedade. Nesse momento, você só olha para si mesmo e para sua situação. Não considera nada mais. Age como um consumidor irritado e, como todo consumidor, com “direito” de reclamar, de espernear.

Agora, um olhar de psicólogo do trabalho, que é o que supostamente sou.

A caixa era, realmente, uma funcionária nova de empresa, apesar de ser de idade mais avançada, comparativamente às outras atendentes. Ainda estava aprendendo o trabalho. Ainda não tinha os “macetes” de funcionários mais velhos, experientes – por exemplo, ainda não devia saber de cabeça o código de certos produtos (as caixas têm de realizar hoje muitas funções, sendo uma delas a de pesar alimentos – hortifrutis, em geral; há, nessas circunstâncias, códigos afixados a um “folheto” que elas têm junto a si). Nessa situação de aprendizagem, a pessoa “briga” com os produtos, com o scaner que lê as etiquetas/códigos de barras, com a operação do cartão de crédito.

Um psicólogo organizacional (e não um do trabalho), poderia dizer que faltou treinamento a essa funcionária, que ela não deveria ter sido “deixada” dessa maneira. Um profissional de administração poderia dizer que isso depõe contra a gestão e, consequentemente, contra a percepção de serviço do estabelecimento.

Mas o episódio me mostrou outra coisa. Ali, diante da caixa em treinamento, podemos nos sentir superiores. Podemos sentir que “temos o direito” de reclamar e de ser logo atendidos, com “eficiência”.

Porém, se formos menos cínicos, vamos lembrar de todas as vezes em que estivemos em situação similar, quando alguém teve de ter paciência para que apresentássemos certo nível de proficiência. Vamos nos lembrar de muitas e muitas situações em que ficamos inseguros, em que titubeamos, em que não sabíamos como agir mais despachadamente.

Mas nos esquecemos que há pessoas melhores do que nós (no sentido de mais habilidosas, mais treinadas, mais capacitadas). Diante do fraco, aproveitamos para descontar nossa falsa consciência de seres dotados de habilidades superiores. No fundo, muitos de nós somos cegos.

Muitas situações da vida cotidiana nos confrontam com a necessidade de simplesmente olhar o outro por aquilo que o outro é ou pela situação em que ele está. Mas parece que estamos perdendo a tolerância. Estamos perdendo uma tolerância que, na situação inversa, em que nós ali estivéssemos, iríamos desejar. A tolerância é a capacidade de sair de si por algum momento e acolher a situação como algo dado, como algo disposto diante de nós e sobre o qual não temos grande poder de interferência.

Ademais, se, em nossa vida, não tivéssemos encontrado pessoas que nos tolerassem, aceitassem nossa “lerdice” (quando crianças, por exemplo, mas, evidentemente, não só!), jamais nos desenvolveríamos. Crescemos porque alguém nos aceita, nos tolera, alguém supostamente em outro estágio de desenvolvimento.

Diante da caixa de supermercado, lembrei de todas as vezes em que me senti paralisado diante de alguma situação em que não conseguia ter certo desempenho. Lembrei-me de todas as pessoas que conheço e que, considerando as características que valorizo, são melhores do que eu e com quem eu aprendo. Coloquei-me em perspectiva.

É isso que de mais e mais somos incapazes de fazer, nos colocar em perspectiva.

A captura de um momento [ou pathos]

Agora tenho 33 anos de idade e sinto que muito tempo passou e vai passando mais rápido a cada dia. Dia após dia preciso fazer todo tipo de escolhas sobre aquilo que é bom, importante e divertido, e depois preciso conviver com o confisco de todas as outras opções que essas escolhas eliminam. E começo a perceber que à medida que o tempo ganha ímpeto minhas escolhas vão se dar num campo mais estreito e as eliminações serão multiplicadas em ritmo exponencial até eu chegar a algum ponto de algum ramo qualquer dentre as suntuosas ramificações complexas da vida onde estarei completamente trancado e cravado num único caminho e o tempo passará voando por mim em fases de estase, atrofia e decadência até eu cair pela terceira vez, toda a luta em vão, afogado pelo tempo. É apavorante. Mas como serei trancado pelas minhas próprias escolhas, parece inevitável – se desejo ser adulto de algum jeito, preciso fazer escolhas e lamentar eliminações e tentar viver com isso

De David Foster Wallace, em Ficando longe do fato de já estar meio que longe de tudo (Cia das Letras, 2012)

Renúncia

Bento 16 anunciou sua renúncia ao pontificado. Para os mais de 1 bilhão de cristãos espalhados pelo mundo, surpresa: decerto, ninguém imaginava que um papa pudesse, tivesse a audácia, de abdicar de sua posição – a que pouquíssimos ao longo da história da Igreja alcançaram.

glamour da notícia tem a ver, é claro, com o fato de se tratar de um papa. Porém, todos os dias, mundo afora, pessoas renunciam, abrem mão de algo a que consideram importante e valoroso. A renúncia tem a ver precisamente com isso: com deixar algo que se considera importante. Em tese, ninguém renuncia o que gera desprazer, dor, sofrimento.

A renúncia tem a ver com um sujeito que se afirma, que escolhe; a renúncia pressupõe a liberdade, a autonomia. Uma relação entre a pessoa e o papel que desempenha. Foi Ratzinger que renunciou Bento 16. Pode tê-lo feito, como alguns analistas sugerem, para assegurar a permanência da centro-direita no comando da Igreja. Mas como renunciar ao que Deus nos legou como missão? Assumindo nossa fraqueza, nossa pequenez, nossa incapacidade? Mas, ao nos escolher, Deus já não sabia disso? Jesus não teria escolhido Pedro justamente por isso, por sua fraqueza, sua personalidade titubeante?

O ato de Ratziger me fez pensar no por que de nossas renúncias. Pois, como disse, não renunciamos o sofrimento, mas o prazer. Pois até conseguimos pensar no porquê de certas escolhas que fazemos (quero certa carreira para ter dinheiro; escolho casar porque amo…); mas qual o porquê da renúncia, do deixar para trás?

1) Renúncia como ato de auto-aniquilamento. Ratzinger, com seu gesto, mostra que papas podem, perante o mundo, assumir suas limitações, chamando a responsabilidade de outros mais “preparados”; mostra, ainda, que até mesmo missão dada por Deus pode ser “revista” (a misericórdia de Deus aceitando nosso lado “humano”). Com isso, Ratzinger assume-se menor que Bento 16. Abre espaço para outros, para um outro movimento histórico (a Igreja é maior que Ratzinger…);

2) Renúncia como recomeço: deixo tudo o que tenho para trás para recomeçar uma vida nova, em novo patamar. Veja-se o caso da renúncia de S. Francisco de Assis: renúncia à “vida terrena” em nome da vida eterna, a vida do espírito. De acordo com o que lemos na mídia, Ratzinger, após deixar o pontificado, vai “recolher-se” em oração num mosteiro no interior do Vaticano, “desaparecendo” da vida pública. A renúncia de um estado de coisas nos dá a possibilidade de reorganizar nossa vida;

3) Renúncia como um tipo de negação da vida. O estado máximo de renúncia é a própria morte. Pois, ao longo de nossa vida, vamos acumulando coisas ao nosso redor; renunciar a estas coisas é diminuir o peso dos próprios investimentos que fazemos na realidade. Renunciar simplifica a vida. O extremo da renúncia é quando abrimos mão de nossa própria vida. Ainda no terreno religioso, falamos dos mártires…

Não posso esconder que fiquei perplexo com a decisão de Ratzinger. Ao mesmo tempo, ela me inspirou a pensar – e o que pensei não se limita a isto que escrevi aqui. Por um breve instante, quero esquecer tudo o que li a respeito do episódio e, principalmente, as versões mais “inteligentes” de analistas, que buscam as “estratégias” ocultas, políticas, etc., levadas em conta por Ratzinger. Se calarmos por um instante essas vozes “savantes”, podemos pensar em muitas outras possibilidades de interpretar e aceitar o que fez Bento 16.

Sobre o amor

Estive em Assis (Assisi, em italiano), a cidade-natal de São Francisco (de Assis…). A pequena cidadezinha é absolutamente maravilhosa. Li em algum lugar que “há pouco a fazer ou a ver em Assis”, mas discordo completamente: a vista é repleta de reflexão; a cidade é silenciosa, mas de um silêncio particular, que nos chama, nos convoca na verdade, a pensar. Claro que, para isso, é preciso superar o tempo presente: é preciso, por exemplo, esquecer ou abstrair o fato de a pequena cidade ter sido capitalizada pelo turismo, e de que você se esbarra, a todo momento, com gente de todo canto em busca de seus “15 segundos de flash”. Mas tudo isso é, com um certo esforço, superável.

Assis é uma “típica” cidade medieval; é cercada por uma muralha, e dá-se a impressão de que, desde sua fundação, ela já nasceu com vocação para o distanciamento, para o afastamento contemplativo. As casas são feitas, literalmente, de pedra, e logo se vê que não vieram para durar pouco. Por toda a parte, encontram-se franciscanos (refiro-me aos irmãos), mais de 800 anos depois da morte de S. Francisco, repetindo e seguindo seus passos: no refúgio da cidade, rezam pelo mundo…(inclusive uma pessoa que, mesmo sem ser frade, perambula pelas ruas com uma “missão penitencial pessoal”, o carismático Massimo Coppo!).

Fotos de Ila (minha esposa) e minhas

Arquitetura à parte, saí de Assis com uma certa dúvida sobre em que consistiria o amor a que tanto fez referência S. Francisco de Assis. Pensei em coisas como estas: seriam os frades, os franciscanos e beneditinos, as irmãs clarissas (não sei se é assim que são chamadas, as adeptas de S. Clara, também imortalizada na cidade), “negadores” da vida, no sentido de que, em estando em Assis, afastam-se da necessidade, pesada e muito presente, de amar no cotidiano, o cotidiano, com toda sua confluência de impedimentos? Seria mais plausível amar à distância, por assim dizer, do que do coração da vida corriqueira? Qual o objeto do amor, qual seu propósito? Amar no (ou do) desprendimento?

Saí de Assis com a sensação de que a experiência induzida em mim por essa cidade precisa de algum nível de generalização, precisa ser transportada de lá para o resto do mundo e para as outras contingências de nossas vidas. É possível “amar” sem a bela e abundante visão dos vales da Úmbria, onde está localizada a pequena cidade? Seria possível amar de dentro de um carro apertado, no engarrafamento de uma grande cidade como S. Paulo,por exemplo? Seria possível amar SEM um objeto definido? Por exemplo, amar a mulher com a qual você está (ou o homem) pelo fato de amar, verbo intransitivo? Amar sem esperar nada em troca (como falou S. Francisco… e tantos outros antes e depois dele), perdoar sem esperar nada em troca, simplesmente deixar-se, entregar-se ao mundo e à sua maravilha (como criação de Deus, na perspectiva cristã)?

Não tenho respostas para nenhuma das questões. Nem do porquê elas vieram a mim, exceto pela minha “exposição” (em elevadíssimo bom sentido) à Assis. Acho que tudo estaria resolvido se, simplesmente, a própria cidade de Assis “se internalizasse” em mim – mas nossa dependência do lugar não é desprezível. Talvez seja por isso que muitos monges/frades não saiam de suas selas, fiquem a olhar para o horizonte, para o “desvelar da criação”, daí voltando novamente para dentro de si-mesmos. Ou talvez eu esteja subestimando a experiência religiosa…e haveria formas mais sutis de transcendência na vida cotidiana. Sem essa transcendência (que você, mesmo sem grandes “treinos” em meditação ou algo que o valha, consegue em Assis!), a vida cotidiana assume talvez sua principal característica: a total falta de sentido/propósito.

Amamos, na vida cotidiana, desde que tenhamos um objeto para este amor: eu te amo se você me amar de volta; faço-te algo se você me der algo em troca; ou faço-te coisas para que você não faça outras para mim…A vida cotidiana, em geral, reflete a “ontologia de um ser social” que é, no fundo, um ser econômico, calculador, instrumental, IMANENTE. Por mais que se fale em “mercado futuro” (na bolsa de valores…), a economia é bastante imanente…só que, ao mesmo tempo em que isso a torna desprovida de grande valor “místico” (o sentido da vida não está, decerto, na economia, ou não deveria estar, contra qualquer bom senso antropológico), ela reflete o que somos na modernidade. E nada mais avesso à Assis. Só um último exemplo: em Assis, cobrar para entrar numa igreja, para conseguir recursos (como nos museus, que vendem coisas para arrancar dinheiro das pessoas), é uma contradição METAFÍSICA!

Seja como for, Assis é mais do que um simples destino num guia de turismo; para mim, Assis foi uma verdadeira experiência religiosa, mas sem religião, se é que me entendem…

Cultura da criança

“A família brasileira não lê. Nós temos a internet que pode ser a fonte da vida e do conhecimento, mas o computador é usado como brinquedo. Muitos pais não percebem, mas seus filhos se tornaram idiotas”

A frase acima foi dita por Ziraldo ao UOL, por ocasião da Bienal do Livro que acontece neste instante em SP. O pai do “garoto maluquinho” acerta ao identificar a parte de um fenômeno bem mais profundo. Na frase, está contida a ideia de que os filhos, por cada vez mais não saberem ler, estão destinados, para ganhar a vida, a jogar futebol ou então a lutar no UFC.

Analogias ou metáforas à parte, há uma outra parte do mesmo fenômeno, interligada com esta. Os pais fazem dos filhos o centro de suas vidas. Talvez, pelo fato de terem vivido num período de transição (daquela época em que criança tinha lugar de criança para uma época em que os pais, movidos por culpa, querem dar à criança tudo o que não tiveram), esses pais não saibam, não queiram ou simplesmente não consigam tirar seus rebentos de seu foco primário de atenção, perdendo, inclusive, para o trabalho (aliás, um grande “adversário” da família é justamente o trabalho…veja o caso crescente de jovens que optam por não terem filhos ou os adiarem até “se estabilizaram na carreira” – ou entrarem num concurso público!).

Nossa sociedade parece, de mais e mais, uma sociedade voltada para as crianças, para o “futuro e a esperança”, como se diz frequentemente em relação às crianças. Nossa vida social está se tornando tão ridícula que “a melhor parte de nós” é devotada aos filhos – isto é, o sujeito, ao ter para si que está cuidando bem de seus filhos, sente-se que alcançou uma espécie de “glória” terrena, mesmo com todos os sofrimentos implicados em ter um filho. Bom, há quem diga que ter um filho é o gesto máximo de altruísmo. Eis aí uma coisa que ninguém vai me convencer a acreditar!

Com a falência ou, sendo otimista (ou polido), com a mutação do significado de “viver juntos em sociedade”, os projetos ou ideais de construção da subjetividade voltam-se, mais uma vez, para a esfera privada, aquela da criação dos filhos. A criação destes, e as fantasias envolvidas, passam a nutrir a própria união dos casais, que muitas vezes já não têm mais outra fonte de contato entre si que não essa (pois já faz tempo que o casamento deixou de ser uma obrigação moral). Filhos tornam-se, paradoxalmente, mediadores e motivos de uniões e separações. Alguém pode dizer que um filho é “trans” casamento: larga-se do esposo/mulher mas os filhos continuarão a ser filhos…

A questão é que mimamos nossos filhos em exagero. Infantilizamos nossos filhos, mesmo quando já adultos. Estamos criando uma sociedade de imbecis, adultos mimados, dependentes, com dificuldade de lidar com o sofrimento, incapazes de assumir algo que seja um pouco maior do que seus egos paparicados. Visite um shopping no final de semana e vai entender: ou você vê “famílias” (leia-se, pais e filhos) curtindo as vitrines e as “alamedas de serviços”, ou você vê casaizinhos felizes, adolescentes, vivendo seu momento de fantasia às custas dos pais, em casa (e “felizes e aliviados”, por saberem que seus filhos estão “seguros” no shopping).

Minha dúvida é: o que fazem as duas principais “instituições” responsáveis pela transição para a vida adulta, universidades e organizações de trabalho? Quem me responde?

Em uma coluna sua recente, Contardo Calligaris nos ajuda a pensar em possíveis respostas (ou em mais dúvidas!…)


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