Inspirado por coluna recente do filósofo Paulo Ghiraldelli, a qual recomendo que o leitor leia antes de ler este post, escrevo algumas idéias sobre a relação entre egocentrismo e infantilização no desenvolvimento cognitivo (e moral) de certa juventude contemporânea…
Egocentrismo, em matéria de desenvolvimento cognitivo e mesmo moral, consiste em a pessoa colocar as referências de seu pensamento nela própria, nas questões que ela, a partir de sua percepção pessoal, julga que é o certo e o valioso. Em termos culturais, o egocentrista cognitivo tem dificuldade de interagir com o ‘outro generalizado’ da cultura. Não é por menos que, nos dias de hoje, proliferam as redes sociais, pois nelas tudo o que acontece é um grande monólogo assistido por ‘colegas virtuais’.
Em termos de percepção, o egocentrista não consegue ir muito longe de sua própria pele. Obviamente, muito de nosso conhecimento provém de nossas experiências, o que alguns estudiosos chamam de ‘first order experience’, quando vivenciamos uma situação dentro dos limites existenciais que, não obstante estejamos num contexto sociocultural, podemos (ou pretensamente pensamos) chamar de nosso, afinal, quem sente um cheiro somos nós (com nosso equipamento olfativo), quem vê uma outra pessoa somos nós (com nosso equipamento viso-perceptivo), quem ‘sente’ uma dor, uma emoção, etc., somos nós (por meio de nossos aparatos psicomotores, psicofísicos e assim por diante).
Contudo, há algo no pensamento que nos obriga a sair de nós próprios, em certo sentido. O pensamento é profundamente marcado pela semiótica do outro – pensamos com as ‘vozes’ de outros. Nossa linguagem ‘privada’, como demonstrou Wittgenstein, é uma grande ficção: a linguagem (essa matéria-prima essencial com a qual nos constituímos como sujeitos) é inteiramente social. O que ocorre é que nos apropriamos da linguagem em sua faceta social, devolvendo a esse mesmo ‘social’ uma estilização própria, a qual será, então, utilizada por outros como equipamento cultural. Mas, quando se é um egocentrista, não se consegue discernir o que há do outro em seu próprio pensamento, e então este é confundido como sendo algo brilhantemente inédito. Como consequência, e numa imagem, é como se a pessoa fosse como uma Idade Média ambulante, acreditando que ela é o centro do universo (ainda que, moralmente, publicamente, não assuma isso).
Muitas pessoas não conseguem ir além delas próprias. Quando são chamadas a falar em ‘terceira pessoa’, simplesmente embrutecem, ficam de ‘bico’, como uma criança. Aliás, a criança, egocêntrica por natureza (Piaget explicou isto), não consegue, cognitivamente, discernir ela e o outro – a partir do ‘eu’, generaliza o mundo que é, na verdade, uma espécie de projeção de seu mundo, e não do mundo mais amplo, marcado pela alteridade. Adultas, estas pessoas tendem a tomar o mundo delas como a medida de todas as coisas; tendem a julgar e a medir o mundo a partir de questões que são pessoais, no sentido mais egocêntrico do termo. Por meio de uma metonímia, confundem a parte pelo todo. Isso porque são, em geral, incapazes de empatia com o outro, incapazes mesmo de se verem a si próprias com outro olhar que não o seu olhar egocêntrico.
Ainda em termos cognitivos, e pensando no contexto de sala de aula, o jovem egocêntrico, muitas vezes desassistido por seus professores (eles também fruto de geração egocêntrica), não consegue desenvolver a capacidade de articular as idéias de outros (os autores). Não conseguem mergulhar em sistemas de pensamento e entender de que se trata tal sistema. Em vez disso, repetem alguns bordões, algumas leituras de orelha-de-livro, e nem isto muitas vezes fazem bem. Acometidos de dificuldades básicas de escrita e pensamento (problemas no ensino médio?), não conseguem redigir um texto escrito para um outro capaz de lê-lo (no caso, o professor). E, provando da surpreendente infantilização de nossa época, questionam a ‘capacidade didática’ do professor: se eu não consigo entender um autor, articular ideias, redigir um texto coerente, etc., a culpa só pode ser do professor. Isso lembra muito certa perversidade de filhos agindo na janela de culpa dos próprios pais, graças a qual conseguem muitas de suas conquistas. Ambos, professores e alunos, são igualmente responsáveis pelo processo de ensino-aprendizagem.
O aspecto que mais me chamou a atenção na reflexão de Ghiraldelli é de que nem o trabalho está mais cumprindo seu papel de passagem à vida adulta. Pois, de fato, o que é ser adulto? Na nossa imagem ocidental ‘clássica’, duas coisas principais ‘transformam’ alguém em adulto: o trabalho e a constituição de família. Por que o trabalho nos tornaria adultos? Primeiro, pelas responsabilidades que ele exige de nós; depois, porque, no trabalho, somos continuamente confrontados com nossos limites e incapacidades, e a elas temos de reagir, em vez de corrermos para debaixo da saida de nossos pais. No trabalho, além disso, somos colocados diante de conflitos sociais de ordem bastante séria, como a divisão de pessoas conforme o quanto ‘contribuem’ para a sociedade (o que culmina, entre outras coisas, na divisão de classes). O trabalho é, em certo sentido, o lugar do confronto, do embate, da imposição de si e da dominação.
Ora, quando o trabalho não cumpre seu papel de “civilizar as crianças” (em sentido amplo), o que pensar da própria educação, a qual, em nossa sociedade, acaba se justificando em nome do trabalho? Professores dizem: “Olha, vocês devem tratar a situação de sala de aula como um trabalho, pois lá, no trabalho, não vai ser moleza não!”. Será verdade? Será que nossos alunos, quando não estão muito a fim de levar a sério uma aula (pois seu interesse é no diploma), eles estão arriscando seu futuro? Qual futuro? Um futuro num mercado de trabalho igualmente infantilizado? (Uma prova disso: a abundância de literatura de auto-ajuda que existe hoje nos contextos corporativos, e certa cultura de “pragmatismo”, que desvaloriza a reflexão e coloca, cada vez mais, o peso decisivo de tudo nos “resultados”, não importa como são obtidos!).
Um pouco mais de reflexão sobre este assunto pode ser encontrado aqui.