Ficções 1

Às vezes jorram na cabeça de R. algumas idéias. Jorram, jorram com abundância, mas R. sabe que são tão instáveis, tão insustentáveis, que jamais ele acredita que tais idéias possam constituir um stream of consciousness com algum pedigree. Pobre R., sempre abortado, uma pessoa-quase determinada por pensamentos em forma de relâmpagos, mas profundamente reveladores, profundamente sintonizados com a matéria que constitui, ao nível quase sub-atômico, este mundo. R. é um frustrado, no fundo. Vaga às escuras, mas, mesmo assim, sob certas circunstâncias, R. é brindado com pensamos profundos, em forma de relâmpagos.

Entre esses pensamentos, dois. Um, o leva a crer, ele, R., que tudo se esgota na combinação. Na combinação de ingredientes de um prato, de uma refeição. Não há mediação entre ingredientes e a boca. Todos se encontram no mesmo lugar, a cavidade bocal, e ali dizem ao cérebro que tudo não passa de uma coisa realmente simples. Os mais perturbados, em geral próteses de intelectuais, diriam que não, que não é possível, e que tudo tem de ser “mediado semioticamente”, que se R. sente algo em sua boca, provocada por um conjunto de ingredientes sabe-Deus-como-foram produzidos, isso só pode ser porque ele pertence a uma classe social, a um determinado nível histórico-cultural, pois seu cachorro, caso, claro, R. tivesse um, poderia comer um pedaço de pau com sabor Knorr de carne que ele, o cachorro, acharia que houvera descoberto o supra-sumo dos prazeres.

O segundo pensamento de R. é que há algo profundamente errado com o modo como ele foi criado na infância. R. acha que o ambiente amedrontador em que ele foi criado, o fez mal. Esse ambiente, a todo instante, dava a R. a sensação de que o mundo iria acabar, e que era preciso ficar à espreita. As pessoas ao redor de R. achavam tudo muito irônico, muito sinistro; achavam que era melhor, para R.-criança, se elas fossem cínicas, zombeteiras, apresentando o mundo em sotaques arrastados, com ironia caipira. R. sabia, ou melhor, imaginava, que algo de bem estranho, párvido, sinistro, havia de o esperar no mundo. Embora R., no seu íntimo, pensasse que o “estar no mundo” não fosse uma questão – ele havia sido preparado para ficar só um pequeno tempo nesse mundo, não um tempo muito longo. Num tempo muito longo, o que faria R.? Ele não saberia responder, pois R. foi preparado (este verbo é, neste contexto, pensa R., uma grande condescendência com seu passado….algofake, por assim dizer); R. não foi “preparado”, vejam só isso…

Às vezes, R., sem o saber por completo, concorda, com seus neurônios-vivos, com Husserl, concorda com a necessidade de suspender o juízo, de colocar entre parênteses, de dar um passo para trás e pensar, simplesmente pensar no stream mental que se lhe apresenta no cérebro, nesse cérebro que lhe explode às vezes, lhe jorra algunsinsights.

*** Eu, proprietário deste blog, apenas relatei o que tinha aqui escrito em algumas anotações antigas, referentes à minha convivência com R. Em Ficções, vou revelar a vocês outras coisas bem estranhas de R., um grande amigo meu da infância e adolescência.


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