O lugar na fila

Quando eu era pequeno, havia uma situação que eu odiava. O momento em que ficávamos numa fila esperando sermos convocados para formar dois times de futebol. Eu e um outro sempre ficávamos por último, quando não havia mais a quem escolher. Hoje, muitos anos depois, ainda sinto uma dor grande quando sou o último da fila. Mas deixar alguém por último na fila e uma prática normal. Até mesmo na universidade isso ocorre. Justamente onde deveríamos olhar para exatamente o fim da fila. Não sei do destino da maioria daqueles meus coleguinhas de colégio. A maioria por certo sequer chegou à universidade. Custa para entendermos que estar no papel de selecionar os melhores pode ser uma arma nas mãos de quem não tem outra coisa.

Mas o que há no medo de ser o último da fila? Não creio ter crescido ressentido, do tipo que “vai se vingar”. Talvez eu seja o tipo que “vai provar”. Tão triste quanto. Pois provar para quem? Onde estão esses expectadores imaginários do meu “eu”? Por outro lado, acho que meu medo, mesmo, é de não aceitar a lógica do mundo, a qual podemos observar em qualquer lugar na natureza. O fraco é deixado para trás. Se fôssemos cuidar de todos os fracos, com certeza não estaríamos aqui. Estaríamos, é claro, em uma outra humanidade. Diferente. Meu medo é de não corresponder a essa lógica subjacente. E suponhamos que eu não corresponda, mesmo (o que, aliás, é bem claro que não correspondo, a menos que me compare com formigas). O que vai acontecer? O que se perde? Qual o ponto em esbarrar-se com uma parede?

Relativizar: Ah, se eu estudar duro, se eu praticar, se eu me esforçar a ponto de me matar, aí o verdadeiro talento aflora. Subjugar-se: Sou assim mesmo, não há nada que eu possa fazer; o mundo é cruel mesmo, injusto. Racionalizar: Não posso ser culpado pelos meus fracassos; há um mundo cruel aí fora, com critérios artificiais, com pessoas competindo em condições desiguais.

O que você enxerga se encarar seu fracasso, dentro da lógica em que ele pode ser, sim, um fracasso? Ah, como existem respostas a esta questão. A maioria “fracassa”, logo, esse é um assunto sobre o qual muitos quebram a cabeça para ter algo a dizer. O pessoal da auto-ajuda é especialista em fracasso, por exemplo. E há também a religião, um poço infinito de antídotos ao fracasso – necessário, aliás, ou talvez chegássemos a uma guerra ou a uma sociedade dopada (infelizmente, você deve saber que é este último caso). Há filósofos que escrevem sobre como tirar lições do fracasso etc.

Volto à questão: o que há, no fundo do fundo, de ser alguém deixado por último na fila? Existe um não-ser. O não-amor. O abandono, a indiferença ou a humilhação. Para não falar das consequências materiais. Contra isso, me parece que há uma saída necessária: é preciso “construir” um ser que se contraponha a esse nada. E aí vamos para questões realmente profundas, reais: qual o “lastro” desse ser? Talvez seja uma situação trágica, pois não há lastro único, digamos, interno (o que poderia ser no fundo uma racionalização de um ser, como nas opções que coloquei acima). Porque veja: um crente (religioso; ou um crente “sábio” de tipo pagão), ele vai resistir ao nada com suas racionalizações e vai se espelhar em outros que simplesmente, pelas mesmas razões, se copiam entre si. Todo mundo, lá no fundo, anda por aí com essa questão no centro de sua existência. Discordo de quem diga que há tantos alienados e tal. Não, em relação a esta questão: em algum momento, à noite, num ponto de ônibus, dirigindo, etc., todos estão conscientes. A alienação talvez venha das estratégias para responder a isso. Então, o ser precisa se colocar, se afirmar, inclusive ou sobretudo quando é deixado para o último lugar da fila. Porque todos, na ponta da fila, são iguais; os da última fila, estes que sofrem, estes sofrem cada um a sua maneira.

Uma vez me ocorreu que talvez o corpo fosse a resposta. Porque o “eu” é, no fundo, um corpo, e nada mais do que isso. Em segundo lugar, esse “eu” está contido dentro da potência desse corpo. E, por fim, esse corpo e esse eu estão contidos na potência do universo. Cada corpo, na sua perfeicao, foi dado a todos com a mesmíssima gratuidade. Mas há algo em nos que nos draga para profundezas abissais quando nosso “eu” não é validado, positivado. Há um descompasso. A tentativa de colocar o mar num buraco. Quer dizer, o “eu” tenta colocar o mar nele.


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