O eterno e o efêmero

Na vida humana há um entrelçamento fantástico entre o eterno e o efêmero. Entre a vida cotidiana, com suas banalidades, e a vida longa, a vida plena, onde as grandes decisões e os grandes acontecimentos se dão.

A vida cotidiana, banal, é a vida da ida ao supermercado, da troca de uma lâmpada queimada; a vida eterna, sem conotações religiosas (embora pudesse também haver!), é a vida que imaginamos para nós no futuro, nossos sonhos, o nascimento de grandes projetos, incluindo filhos, em suma, a vida eterna abarca o campo do sentido (na acepção de propósito [por quê] e direção [para onde]).

Tenho a sensação de que, para cada esfera de nossa vida, há um binômio, um par, um duplo, uma simbiose entre o efêmero e o eterno, a vida se dando entre a leveza e despretensiosidade de uma pluma e a seriedade, a dramaticidade, de um evento vital decisivo (o nascimento, a morte, a doença, um casamento, uma separação, um acidente, ou meramente uma inspiração, um desprender-se momentâneo em direção ao sublime – seja ele religioso ou não).

Por exemplo, na vida profissional. Ora, você deve, seja qual for seu campo de atuação (tomo sempre o meu próprio como referência, pois é nele que está vinculada toda minha experiência de vida), viver no interjogo de um duplo: de um lado, você tem de participar de reuniões, sentado em cadeiras desconfortáveis, em salas deprimentes (verdadeiros não-lugares), com pessoas com certo desânimo de ali estar ouvindo sobre critérios e normas de produtividade do seu Programa de Pós-graduação. De outro, você tem o conhecimento, a amplitude que ele supostamente lhe dá, a super-visão que ele te oferece, o gosto e o sabor elevado de grandes ideias, grandes feitos, grandes mudanças promovidas no cotidiano, seu e de outros – e, claro, “a fama” (palavra pouco usada no metiê acadêmico… talvez seja mais polido falar de “reconhecimento”).

Outro exemplo: nosso próprio corpo. Mal nos damos conta, mas a cada dia a vida vai jogando a duplicidade de sua essência, banal e eterna, de modo irreversível. Nosso corpo, aliás, é a prova viva, a materialização definitiva, de uma fusão de milhares de anos, pela qual somos, simultaneamente, nulidades e talvez uma das espécies mais brilhantes deste planeta – independente de você pensar que isso é um tipo de “especismo” (tendência de julgar uma espécie superior à outra, no caso, a humana). Deságua em nosso corpo as forças profundas e irrefreáveis da ontogênese e da filogênese, a sensação da singularidade (e sua manifestação objetiva) com o atravessamento anônimo, cego, despótico e indiferente da “vida genérica” da espécie.

Nossa vida, nosso corpo, é a manifestação do enlace entre o eterno e o efêmero.

Basicamente, há três modos de o eterno se colocar no nível da vida-corpo: primeiro, como disse, pelo próprio substrato da espécie (nosso DNA – já pensou o que “ele” teve de passar para chegar a esse estágio de programação e execução?); segundo, pelas nossas obras, e aqui penso em amplos conjuntos de atividades humanas, da arte à arquitetura, passando pela literatura, pela ciência, mesmo pelas ideias religiosas transmitidas de geração a geração; em terceiro lugar, a eternidade se manifesta em um filho, réplica mitológica do “À imagem e semelhança de…” (Deus, do pai, da mãe, em suma, daquela sepa específica pela qual se diferenciaram as diversas “linhagens” humanas: a família). Para a grande maioria dos humanos, ter um filho é o modo mais visceral, mais concreto, ao mesmo tempo mais metafísico, de lidar com o efêmero e o eterno, com a sensação de que se é absolutamente essencial (para criar o filho e no seu amor, depois de grande), e, ao mesmo tempo, radicalmente dispensável – e, mesmo quando se sabendo dispensável, narcisicamente feliz por ter “contribuído e deixado sua parte”. Um filho, lógico, jamais suplantará seu pai e sua mãe, nesse sentido mais profundamente “ontológico”.

Há outras formas de vivenciar a eternidade, embora essas possam se dar como engodo. Por exemplo, o próprio consumo é uma forma de viver o eterno e o efêmero, com este último se passando, na consciência do sujeito, pelo primeiro (isto é, o efêmero do consumo sendo interpretado como eterno). Num comercial de carro, você é, como consumidor, levado a “viajar” em ideias de liberdade, de perfeição, de potência, de força, de design, de beleza… mas, em dois ou três anos, você se vê com um produto que já precisa ser trocado, tamanha a “efemeridade” com que suas peças e seu conjunto é feito. A própria propaganda, aliás, lhe dará novamente o insumo para julgar que seu atual carro está, na verdade, ultrapassado, que precisa ser trocado – você vive, nesse momento, a consciência (falsa, mas profundamente conectada com as sensações e às ideias que até parece verdade!) do efêmero, mas não se atém a isso, não se delonga nessa sensação, pois ela é logo engolfada por um novo carro, pelo “cheirinho” de novo…

A arte soube captar a relação entre o eterno e o efêmero. A arte, inclusive, já foi deveras criticada por supostamente ter, em várias de suas correntes, abandonado a miragem do eterno e ter se voltado, perigosa e arriscadamente, para o efêmero (o que dizer, digamos, da chamada “art pop”?). Mas há muitos movimentos que sugerem o inverso na arte, e isso, penso, praticamente desde seu nascimento. A arte eterniza o efêmero. A pintura de uma mera paisagem, ou de uma folha, o minimalismo obsessivo de certos pintores ou ainda escritores, institucionaliza a passagem do efêmero, da plumagem da vida cotidiana, digamos assim, para o eterno, para uma “forma ideal” – para, faceiramente, citar uma conhecida colocação de Platão.

Por fim, podemos optar por viver no efêmero. Podemos optar por, digamos, viver “em festa”, em celebração. Podemos abrir mão da busca pelo eterno, pela inscrição de nosso nome num grande e relativamente estável gênero (profissional, cultural, etc.). Podemos, simplesmente, “deixar rolar”, deixar ser. Claro que não conseguiremos fazer isso de modo profundo, a menos que, de fato, façamos nossa vida algo “insustentavelmente leve”. Digo que talvez não possamos, pois, como disse no início, sempre estaremos no interior de um enlace, de um duplo. Até podemos correr para a primeira igreja da esquina, ou então nos voltarmos para nossa própria espiritualidade; podemos, sim, podemos. Ali, numa simples casa-igreja (ou mesmo num suntuoso templo), teremos contato, de modo imediato e quase “pop”, à imensa fragilidade e, paradoxalmente, à insuperável “consistência” de nossa vida como espécie. Se a pessoa não se deixar alienar (pois, acredite, o mero pensamento da finitude e da fragilidade huamana serve para nos tornar susceptíveis e imbecis), ela terá ali um momento de contemplação do sublime.

Mas contemplar o sublime, muitas vezes, não é suficiente para fazer você voltar à realidade, ao cotidiano, a seu movimento miúdo, a sua “corriqueiralidade”. Você tem de ser forte para, digamos, vislumbrar o sublime no âmago, no interior mesmo, do cotidiano. Só um exemplo para terminar. Imagine o trabalho, o emprego: ambos poderiam ser muito mais do que eles efetivamente são. Muitas vezes, a pessoa passa horas, dias, semanas, anos, décadas… a vida toda, fazendo a mesma coisa (ou coisas diferentes, não importa…). Se você parar para pensar, por mais que lhe digam que seu trabalho é “profundamente cheio de sentido”, ele é efêmero: o melhor presidente de empresa será, logo mais, substituído; a empresa mais sólida e orgulhosa de sua marca pode (e, provavelmente, será) vendida, mudada de nome, dividida, fragmentada, tratada como um pedacinho de ações numa bolsa de valores qualquer. Mas ele também poderia ser sublime, não? Como? É impossível responder a isto se pensarmos como indivíduos, como seres singulares, “especiais”, diferenciados; só responderemos a esta questão se, paradoxalmente, esquecermos de quem somos, se nos abrirmos para uma anônima e inexplicável impessoalidade. Talvez seja isso. Talvez, para encerrar, o sublime seja exatamente isso: a impessoalidade, o anonimato, a insignificância ao nível do indivíduo com nome X ou Y, identidade A ou Z.

Como pode ser potente, o anonimato.

Vamos para os EUA?

Hoje quero comentar uma banalidade que me veio ao espírito por conta de um episódio, de uma ocasião de que fui testemunha de ouvidos. Realmente, prepare-se: é um post no ótimo estilo “non-sense”.

Claro que não tenho números exatos. Porém, quantos brasileiros gostariam de mudar-se para os EUA? Arrisco dizer que esse número não deve ser baixo.

Os EUA são, ainda, o sonho da pequena classe burguesa brasileira – e, com isso, não me refiro apenas à óbvia classe média, mas mesmo a certa sub-classe (em termos econômicos). Não o lumpen, mas um grande grupo social semi-qualificado.

Mas é da classe média que temos o sonho mais vívido de mudar-se para os EUA. De viver lá… lógico que seria bom!, mas, em isso não sendo possível, ao menos de lá estudar por um tempo, de conhecer o país a turismo, de consumir as coisas vendidas em seu imenso mercado.

Os EUA, como ideia (não como império bélico-econômico), são ainda uma miragem. Um sonho: o lugar das possibilidades. Para as ciências “hard”, um paraíso; para a psicologia (sobretudo a “psicologia científica”), não deixa a desejar, obviamente…

Há um aspecto subjacente a esse desejo de ir ou de morar nos EUA. O fato de ser o país em que as coisas “funcionam, dão certo”. Ora, mesmo após tamanha e recente crise, o país está dando mostras de já estar com um nível respeitável de crescimento econômico!

E quem não gosta de coisas que funcionam? De “journals” que publicam rápida e eficientemente? De um sistema institucional e jurídico (e, claro, econômico) funcional, confiável?

País de gente grande. Ir e voltar dos EUA, sobretudo se “a negócios ou estudos”, é sinal de que o neófito volta com “know how“, pronto para encarar a realidade “tupiniquim”.

[Aliás, a própria designação “tupiniquim” é ideológica e moralmente carregada, ok?]

Imagine. Se você faz um pós-doutorado nos EUA, você é, na volta, visto como alguém que foi para um país “sério”, profundo, que o marcou com as insígnias da “competitividade” (“Essa pessoa só pode ser boa, indo para os EUA…”).

Se vai para um país europeu, volta “filósofo”… E as estereotipias não param por aí.

O tempo todo, consumimos a ciência produzida nos EUA (dizemos que “adaptamos” o que se produz por lá para o contexto local, mas isso é ficção…); consumimos suas séries (eu mesmo, adoro!); consumimos seu “way of life”, seu modo de encarar a vida, de povoar e colonizar a Terra.

Alguns aí podem me acusar de retrógrado. Podem me dizer que parei, me fixei, nos anos 1970 ou antes, quando o “americanismo” era uma bandeira da esquerda “mais genuína” dos países “colonizados e subdesenvolvidos”, Brasil incluso.

Mas, fato é o seguinte: estou cansado, estou farto, estou enjoado de nossa tendência cultural a nos dimininuir como país e cultura, embora possamos ser tudo isso: atrasados, “gente não séria”, país de oportunistas, de gente sacana, de cretinos.

Virar um Policarpo Quaresma? Não, não falo disso. Virar um turista pragmático, que para lá viaja (neste ponto, espero que tenha ficado claro que uso os EUA como metáfora!) e usufrui do que seu cartão de crédito pode pagar ou financiar? Não. Não falo disso.

Falo em sermos menos idiotas. A impressão que tenho é de que miramos esses países como instâncias superiores de vida. Em parte, isso é fantasia. E, com isso, justificamos a lambança que achamos por bem administrar em nossa vida cotidiana, em nosso país, nossa cidade.

Prefiro ouvir a falar (#40)

Saber e ignorância = a relação proporcionalmente positiva

Quero propor uma analogia. Eu a ouvi uma vez, e me veio à memória hoje. Está vendo as esferas acima? Pois imagine que cada esfera representa o quanto você conhece. Seu grau de conhecimento.

E imagine que todo o espaço ao redor da esfera represente o desconhecido.

Pronto. Agora considere o seguinte. Quanto maior o tamanho da esfera, maior a área em que ela “toca” o desconhecido. Portanto, quanto mais você sabe, mais você tem a clareza do desconhecido.

Isso explica porque algumas pessoas, que pouco conhecem, se acham as mais “entendidas”. Não é por maldade ou porque são empoladas: é porque elas, simplesmente, não conhecem, não sabem. Ou, se conhecem, conhecem pouco. Conhecem quase…nada!

A arrogância, a visão dogmática, tacanha, o caráter filisteu, reacionário, mesquinho, ignóbil, nada mais é, pois, do que pura e simples manifestação da ignorância, de uma “esfera” de saber minúscula.

Não vamos, portanto, inverter a ordem das coisas, ok?

Vem aí…

E a família vai ficar maior. Um grande passo para nós, que acabamos de perder uma de nossas cachorras. O grande passo é porque haverá uma importante mudança de “conceito”, digamos assim…Alguém saberia de que estou falando? Olhando as fotos abaixo? A segunda foto, inclusive, é famosa (Eli and David, por Lucien Freud).

Aumentando a diversificação pelas raças, cores, comportamentos…são uma beleza! A nossa está a caminho…

Fonte (1); Fonte (2)

Improdutivismo acadêmico

Faz tempo que tenho evitado entrar na discussão sobre o produtivismo exacerbado que vivemos hoje na ciência brasileira (mundial, claro), mais particularmente nas ciências humanas, e na psicologia – onde me insiro.

A tese, por mais que haja variações, é de que nos preocupamos muito mais com a quantidade de artigos em nosso currículo do que com a qualidade, o conteúdo. A resposta do “sistema” não demorou a aparecer, e temos hoje uma “métrica” que avalia também (quantitativamente, diga-se de passagem) a “qualidade”.

Mas os argumentos vão ainda mais longe. Graças ao produtivismo, diz-se, estamos sacrificando o ensino, a extensão. Estamos “fatiando” pesquisas que ganhariam em complexidade se articuladas na sua totalidade, e tudo para produzir mais, tirar mais “leite de pedra”, como se diz popularmente. Estamos (professores-pesquisadores) adoecendo. Estamos criando um circuito psicossocial tóxico: concorrência por recursos, por bolsas, por status/prestígio, o que muitas vezes culmina até mesmo em atitudes ilícitas, como plágio, auto-plágio e assim por diante…O produtivismo leva ainda culpa por matar a inovação – se, por exemplo, cruzarmos número de artigos publicados e patentes registradas, a distância é lunar, para não dizer do amontoado de lixo virtual que vamos produzindo agora que não se precisa mais derrubar árvores para fazer o papel em que se materializaria o famigerado “paper”…

No fundo, me pergunto: a quem interessa o tal produtivismo? Mas ocorreu-me que um modo talvez mais criativo de pensar seja perguntando o inverso: a quem interessa o improdutivismo, se é que, de fato, uma coisa é o inverso da outra?

1. Não nego que talvez os que critiquem com tanta veemência o atual sistema de produção acadêmica sejam seres com uma visão profunda das coisas, do conhecimento, alguém que enxerga para além da burocracia weberiana do mundo acadêmico – não seria, aliás, por isso que se alastrou certa tendência a usar ganhadores de Prêmio Nobel para criticar o sistema de produção acadêmica atual? (Ora, se eles, que são tão iluminados, dizem que não seriam “nada” pelas métricas vigentes, então algo deve realmente estar errado com o produtivismo…);

2. Mas também não podemos deixar de conjecturar que o sujeito “improdutivo”, e que critica o “produtivo” (nessa dicotomia aqui usada apenas para efeito didático), talvez tenha uma concepção mais rasa do conhecimento do que pensamos. Fico me questionando: em qual momento da história não havia algum tipo de pressão para que as pessoas provassem a que vieram no trabalho? Lembro-me aqui da tese de A classe ociosa, de Thorstein Veblen. Acadêmicos alegam que precisam de tempo e condições para pensar. Concordo. Mas, assim como o produtivismo debanda para o insano, esse tipo de visão sobre o “improdutivismo” também não poderia nos levar a uma situação inversa, em que produzimos apenas e quando isso nos bate nas ventas, se é que isso acontece? Pois pode haver um professor improdutivo, que não prepara aulas, que repete as mesmas coisas sempre, que simplesmente vai na universidade (se ela for pública) para “dar carga horária mínima” e pegar o resto do tempo para cultivar bonsais em casa ou então ler seus livros, suas poesias ou o que quer que deseje. Pode haver extremos dos dois lados, não?

>> Adendo 1: certas pessoas acham que a “boa produção” é aquele livro escrito após 20 anos debruçado sobre os papéis, e que, quando lançado, revoluciona o mundo. Não há como negar certo viés “aristrocrático” na crítica ao produtivismo, pois qualquer um, desde que tenha as condições mínimas, pode publicar um artigo;

>> Adendo 2: Muitos dos que criticam o produtivismo não revelam, mas eles falam de algum lugar. Por exemplo, alguns falam do lugar de quem olha para isso tudo e diz, de sua “superioridade”: bando de imbecis. Em geral, usam como argumento, explícito ou (na maioria das vezes, implícito), que os clássicos viam muito além do pontinho que representa um artigo, como se este artigo não fosse mais do que poeira cósmica. É a crítica feita da posiçao da arrogância.

3. Acho que existe uma moral no improdutivismo (um tipo de ethos). Num sentido, o improdutivismo, como na antiga ideia de O direito à preguiça, de Paul Lafargue, nos lembra que o trabalho não é tudo. Que o trabalho não é uma atividade que se restrinja ou se plasme, pura e simplesmente, à métrica da produção (quantas peças, quantos botões produzidos, quantos carros vendidos, quantos artigos aceitos para publicação, etc.). Ou então que o trabalho pode ser muito mais do que, neste exemplo, o produto “artigo”. Seja como for, não há trabalho sem um produto, sem algo gerado, uma obra, um serviço, qualquer coisa. O ciclo do trabalho não se fecha se inexistir alguma “produtividade” (no sentido amplo de um sujeito que aje sobre o mundo e o transforma);

>>Adendo 3: Isso significa que, muitas vezes, a crítica ao produtivismo confunde coisas absolutamente diferentes: a produção do conhecimento com sua forma de divulgação. Acho lamentável que muitos transmitam a ideia de que precisamos “produzir artigos” (publish or perish) como se isso fosse a forma par excellence de produzir conhecimento (ou que o fato de “está publicado = conhecimento”). Porém, divulgar críticas ao produtivismo, do jeito que muitas são feitas hoje, leva nossos alunos a desenvolver um trauma sobre a vida acadêmica, a ver com desgosto e antipatia a arte de produzir um artigo – um artigo pode ser bom, pode ser ótimo, pode ser muito inovador, e pode, sim, produzir conhecimento…

Para não me alongar mais (isto é um post, não um ensaio!), quero dizer o que penso sobre tudo isso:

1) Se o produtivismo está nos levando à imbecilização, o improdutivismo implício nas críticas geralmente feitas deveria ser, a meu ver, explicitado, numa relação de gente adulta: de que tipo deveria, então, ser a vida acadêmica? Deveríamos ser mais improdutivos (no sentido já aludido, de ócio, de direito à preguiça, de direito a fazer as coisas do nosso jeito, no nosso tempo)? O que entendemos por “improdutivo”?

2) A improdutividade significa, para além de tudo o que eu disse acima, variabilidade. Tanto é assim que podemos facilmente dizer quem é produtivo (pela métrica), mas definir alguém “improdutivo” é mais difuso, por mais que você pense que não, que seja fácil. Pois uma pessoa pode ser improdutiva para uma coisa, mas muito produtiva para outra;

3) Repetindo: produzir muito, academicamente, não é privilégio de nossa época. Pegue grandes tratados de filosofia, por exemplo, e você não vai encontrar ali poucas páginas. O leitor pode argumentar que, digamos, 3 mil páginas escritas por Espinoza são muito mais duráveis historicamente do que 100 artigos Qualis A1. Aí temos um critério de valor. Mas não há como negar que o trabalho acadêmico gera sofrimento, gera angústia, gera dilemas sobre a relação com o saber, e não há saber sem que este seja passado, materializado, objetivado num “produto” (pode ser um artigo, um livro, um aluno formado, etc. etc.);

4) A questão-chave para mim é a seguinte: se há a “liberdade individual”, se uma pessoa não pode ser impedida de NÃO publicar, se há, como diria Adam Smith, uma mão cega a guiar nosso egoísmo (ação moral), o ponto é: quais as consequências para o coletivo de uma série (homogênea/convergente) de ações individuais (no caso, tudo mundo correndo e se atropelando para publicar nos mesmos lugares, das mesmas formas, com os mesmos objetivos)? Quais “distorções” geram os comportamentos individuais não limitados (pois, de fato, não estamos numa ditadura)? E o inverso: que consequências surgem se deixarmos as pessoas em sua própria dinâmica, no seu próprio ritmo, na sua própria concepção sobre o que seja o mundo acadêmico e aquilo que ela deve dar em troca? No fundo, a velha luta entre o prescrito e o real…

Prefiro ouvir a falar (#39)

Nem vou mais falar que estou saindo do estilo de música do blog…

Prefiro ouvir a falar (#38)

Mais uma vez, saindo do estilo de minhas indicações (majoritariamente, dos anos 80s). Mas vale a pena a interpretação. De onde tirei? Cena final de Defiance (s1e5).

Prefiro ouvir a falar (#36)

Desta vez, mudando um pouco o estilo das músicas que posto aqui. A inspiração vem da cena final de Leftovers (s1e1).

Dia 23

Gosto de muitas coisas no mês de junho, em especial no Nordeste brasileiro, onde vivo no momento. A começar pelo fato de que é nesse mês, precisamente dia 23, hoje, que faço aniversário. Fazer aniversário é sempre algo magnífico. Já ao acordar você se sente agraciado. Dia desses uma aluna, em uma aula sobre a visão do cristianismo/protestantismo sobre o trabalho (primeiro, Santo Agostinho, depois, na Refoma, com Lutero e Calvino), lembrou-nos sobre a “teoria” da Graça. Para começo de conversa, não merecemos nada; Deus nos dá numa espécie de “voto de confiança”. Gosto dessa idéia. Gosto profundamente da ideia de que somos absolutamente nada, como seres humanos, apenas salvos pela Graça e recuperados pela Fé. Não sou mais religioso (já fui seminarista); mas isso ainda me afeta. Então, no dia de nosso aniversário, somos confrontados com esse fato metafísico: somos uma nulidade viva, podendo, no momento ao menos, desfrutar (não há palavra melhor!) a vida em sua simples ocorrência (não precisa de nada: festa, bebida, simbólico: é um fato que se impõe no silêncio mais absoluto: a vida).

Depois, há algo que gosto tanto quanto: vésperas do feriado (no Nordeste) de S. João. As maravilhosas festas juninas e, mais especialmente ainda, as fogueiras de S. João. Se você já esteve aqui no Nordeste nesse período, vai perceber. O cheiro de pinho queimado é simplesmente… indescritível. Não sei explicar ao certo de onde vem essa minha fascinação. E o cenário hoje é impecável, de meu ponto de vista: chuva e um cheiro de fumaça no ar – fraco, infelizmente, mas perceptível. O suficiente para me deixar extasiado. O cheiro me lembra algo de colonial, de rural, de campestre. Talvez tenha a ver com minha infância (sempre!), pois nasci e fui criado, até os 11 anos, no campo. O cheiro de madeira queimada, sob a noite disforme da cidade, me lembra de onde eu vim, de minha origem, por assim dizer. O campo é, para mim, sinônimo de retorno, de religação com algo absolutamente superior a mim. O campo é o retorno à natureza, o retorno ao barro de que sou feito. Para mim, o feriado de S. João é a coisa mais sublime, aquele momento esperado do ano. Mesmo que eu não vá (e não vou) às festas típicas aqui da região (bem diferentes das festas juninas do interior de SP, em geral, nas paróquias….que saudades!), eu vivo plenamente o “espírito da coisa”.

O cheiro das fogueiras entrando casa a dentro… sinto-me como se tivesse voltado a ser criança, quando o mundo era, paradoxalmente, pantanosamente complicado, opaco, um tijolo caindo na minha cabeça, mas repleto de possibilidades. Aliás, acho que só percebemos as possibilidades quando avançamos na vida, quando já optamos por muitas coisas, deixando, consequentemente, muitas outras para trás. O cheiro das fogueiras me lembra de certo ponto de centramento que perdi em alguma curva monótona da vida.

A madeira, a chuva, o fogo, a destruição ardente. O fogo é fantástico: ele transforma, ele engole, ele é uma força entrópica que nasce e morre em si mesma. Do fogo, de sua provação, nasce algum tipo de “virtude”. A destruição pelo fogo é, exceto nos casos lamentáveis de trajédias, sublime: o fogo nos mostra (junto a muitas outras ‘oportunidades’) que tudo é volátil, destrutível, provisório, leve, supérfluo. Por que o fogo é prova de virtude? Por que quem passa por ele alcança algum tipo de graça? Por que fênix ressuscita das cinzas? Renasce do fogo? O fogo é um portal, um meio de a energia sair de um estado para outro. O fogo é movimento. Transformação.

A verdade é que, dia 23, meu aniversário, às vésperas do dia de S. João, com as fogueiras a queimar, a chuva a cair, a sensação é de … felicidade.


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