Lapsos obtusos (1)

A) Por vezes, imagino o prazer indescritível de um escritor que, enfim, acha a combinação perfeita e implacável entre forma e conteúdo. Já sentiu algo próximo do vislumbre desse momento, quando o sentido (pessoal) transcende, mas incorporando, o significado (coletivo, instituído)?

B) Em eleições gerais – por exemplo, como as para presidente, você consegue entender como a democracia, pelo menos à brasileira, é um impropério. FHC, nosso antigo presidente, diz que quem vota no PT é “desinformado”. Fazia tempo que não me lembrava do velho FHC, mestre em metafísica sociológica, a sinalizar a todos nós o quanto ele sabe, o quanto ele está próximo à “verdade” e nós não. Ou ele realmente estaria?

C) O que significa, essencialmente, o mito de Narciso, aquele lindo rapaz que, deslumbrado com sua própria miragem refletida na água, nela morre? Por que ficar às voltas com o mesmo, ou a mesmidade, é algo mortífero? Por que dar as costas para a alteridade (como se isso fosse possível) é o primeiro passo para a loucura, para o monólogo interior, o qual leva a uma ausência plena de tensão, motor de qualquer mudança?

c.1. Não seria porque o mesmo faz sentido? Mas, se sim, então o sentido é uma pequena ilhota, um ponto nulo na imensidão de um mar grávido de possibilidades (desculpem a redundância!), mas cansativo? Pois ‘infinitas possibilidades’ é algo belo no discurso, mas pesado na prática. A fisiologia é a melhor medida para avaliar o quanto somos: 1) escravos (no sentido de Hegel); 2) livres. Podemos preferir o conforto da ilhota-sentido ao inigmático (e mítico) mundo aberto.

c.2. Não seria porque, como indivíduos, embora influenciados pelo ‘social’ (blá-blá-blá), conseguimos capturar, controlar, segurar e ‘sistematizar’ algo da existência quando giramos em torno de nós mesmos? Pergunto ao espírito de Nietzsche: é pecado negar a vida? É pecado simplesmente reduzir a velocidade, o ritmo, a amplitude dos investimentos em coisas e seres que, no fundo, você despreza completamente?

c.3. Ficar ‘em torno de si mesmo’ é anti-natural, alguém poderia dizer. O mesmo não gera a diferença. Um homem não gera um filho sem uma mulher. O filho é a síntese dialética, o produto dos opostos. O que poderia gerar um self sem o outro, a alteridade? Mas qual o problema de Narciso morrer? Não sei, talvez haja algo que estou deixando passar…

c.4. Paradoxalmente, ‘sair de sei’ dá trabalho; na verdade, isso é, precisamente, o que define ‘trabalho’

D) Eu poderia (acho!) ficar olhando para um cachorro durante a eternidade. Mas me custa ouvir 10 minutos de conversa enfadonha de um outro ser humano. Freud, velho Freud, seria por que o ‘outro’ (cachorro) não é uma alteridade no sentido estrito e, portanto, não exige e não é exigido? Ou seria esta maneira de ver algo desatualizada com o que está envolvido na relação afetiva entre humanos e animais?

d.1. Talvez a fórmula de Glenn Gould, segundo a qual, para cada X  horas com um outro ser humano, é preciso ficar X vezes N horas sozinho (onde N varia de pessoa a pessoa, mas, segundo ele, ou para ele, era algo bem alto), se aplique a animais: eu, para cada X horas com seres humanos, preciso ficar, no mínimo, X vezes 1 com os animais, ou 10 sozinho.

Do porquê de usarmos os afetos em situações de desempenho

Existe um traço da cultura brasileira que é praticamente inegável, se visto com cuidado: temos certo hábito, automático como qualquer comportamento orientado pelo script cultural, de falar de alguma particularidade de nossa vida privada para tentar lidar com situações em que se esteja diante da expectativa de peformance/desempenho.

Por exemplo, quando não se atinge certo patamar objetivo de desempenho, estabelecido com base em critérios de comum acordo e ‘normais’ do ponto de vista organizacional ou da atividade, logo se vêem justificativas de cunho personalista: “É que estive doente”; “É que isso é uma questão com a qual não me sinto bem em lidar”; “Não fiz isso, mas veja quantas vezes eu passei a noite trabalhando com algo que você me pediu”; “Não consegui, mas veja como sou compromissado com o trabalho, como estou aqui a todo momento para lhe prestar minha ajuda”; etc.

Quais explicações para essa junção, sobreposição, por vezes subsunção, da performance pelo afeto?

1) Não temos, por aqui, em nossa cultura, uma disseminação generalizada do individualismo moral observado em outras culturas. Temos, em contrário, uma mistura entre aspectos desse tipo de individualismo – que, em geral, é indiferente à ‘pessoa’, portanto mais voltado à impessoalidade do desempenho (meu chefe não está ‘cobrando isso só de mim’ – faz parte do processo de trabalho, etc.) – com viéses de uma cultura bairrista, paroquialista, centrada na figura do senhor e do escravo, na metáfora do ‘homem cordial’ tão bem analisada por S. B. de Holanda. A mistura entre esses elementos nos traz, no cotidiano das relações, um tipo de ‘personalismo afetivo’. Tal personalismo faz diluir as cobranças e orientações instrumentais das relações laborais em um caldo de ‘afetividade compreensiva’, do tipo protecionista, personalista, com os conhecidos sentimentalismos ritualizados que temos em nossa cultura – como amigos-secretos no final do ano, mensagens efusivas e ‘calorosas’ de demonstração de afetos em aniversários, ou então quando a pessoa exibe uma foto sua no what’s app, bem ao modo selfie ou big brother de si mesmo;

2) Devido a uma certa propagação, cujas origens precisariam ser melhor esclarecidas no plano sociológico e psicológico, de que ‘performance’ tem a ver com exploração, tem a ver com o ‘ser usado no trabalho’, isto é, tem a ver com um ‘outro’ que nós, brasileiros, conhecemos como o ‘senhor’ (da Casa Grande & Senzala) – ao mesmo tempo aproveitador e cordial. Daí que se espera que esse ‘senhor’, quando for pedir algo, que o faça com a mansidão cordial, com “jeitinho”, com aquele canto de boca religioso, quase como uma criança a pedir doce para a mãe. Por motivos antropológicos que desconheço, o ‘senhor’, como metonímia ou metáfora das relações de poder, tornou-se uma espécie de pai complacente, sujeito, paradoxalmente, a todas as tensões e ambivalências típicas de uma relação pai-filho: amor-e-ódio. Portanto, no trabalho, a cobrança por desempenho, se ocorrer, deve ser de modo ‘estratégico’, um verdadeiro marabalismo relacional;

3) Existe, como parte disso tudo que coloquei acima, uma gramática relacional moldada pela afetividade de tipo prêt-à-porter, além de um estilo de relacionamento baseado na criação de pactos e vinculações ocultas, em redes e históricos de favores e retribuições, mais uma vez uma apropriação, talvez ‘mui’ brasileira, da ‘dádiva’ – teoria tão bem explicada por M. Mauss: “Eu te dou cobertura hoje, você me dá amanhã”. Como, em dado momento, quem cobra é quem, de certo modo, recebeu algo da pessoa no passado, então fica difícil instituir ou introduzir uma lógica de puro ‘gerencialismo eficiente’ numa relação que não comporta, interna e externamente, esse tipo de orientação. Se se introduz uma lógica de cobrança impessoal, ou de desempenho impessoalizado, tem-se um problema a lidar, pois a cultura do paroquialismo, da afetividade compassional, vai reinterpretar a situação como ofensiva, disparando, em consequência, comportamentos grupais de tipo corporativista, porém, um corporativismo afetivo, do tipo bode expiatório (‘nós que nos amamos’, e ‘ele, que odiamos’). Ou então a situação vai ser reinterpretada de modo mais cínico, com explicações (ou auto-racionalizações, auto-justificações) sobre “a injustiça do capitalismo”, “a vida é mais que o trabalho, o que importa são as relações”, etc. Ou ainda, para piorar o quadro, se sai com o velho comportamento “para inglês ver”, com um fingindo fazer o que o outro pede, ou fingindo “entender e tentar melhorar” o baixo desempenho. Chega a haver um descaso cínico com o desempenho esperado.

Claro, haveria outras explicações. Inclusive, certamente há reparos a fazer na leitura do fenômeno tal como a coloco acima. Mas, temos de pensar melhor sobre esse traço de nossa cultura, essa tendência, sobretudo em certos tipos de setores (como no setor público, por exemplo), de estimular a auto-comiseração, o auto-pietismo, a solidariedade orgânica, a afetividade como escudo e como forma de reinterpretação do desempenho. Claro que não é 8 ou 80, mas o ‘uso dos afetos’ pode ser profundamente reativo (embora, paradoxalmente, é uma grande característica de nossas relações profissionais, com benefícios legítimos), conservador, perverso. Pode, em certo momento, passar a representação de que, no trabalho, “estamos muito mais convivendo do que fazendo coisas objetivas que levam a resultados objetivos”.

Para finalizar, mas sem concluir…:

A) Não acho que a ‘performance’ tenha, apenas, a ver com uma representação do trabalho como castigo, como obrigação, como algo ‘chato’ que se faz para enriquecer alguém. Tem a ver com o poder de agir, com o fazer, com a intervenção sobre a realidade circundante. Diluir isso em uma nuvem de passionalidade, além do que coloquei acima, pode ser corolário de uma estratégia, não necessariamente deliberada, de ‘ocultar o real do trabalho’, isto é, o que realmente se está ali fazendo (ou se deveria/poderia ali fazer);

B) Falar de si, dar justificativas pessoais para um resultado não alcançado, é, em certo sentido, um tipo de narrativa de auto-engano, de auto-justificação. Uma tentativa de conseguir a pena e a compreensão do outro. Uma forma de controle, portanto. Claro que as relações humanas não são ‘mecânicas’, mas acho que o trabalho não é lugar para grandes amizades, grandes aprofundamentos sentimentais/afetivos; o trabalho é onde ocorre o embate entre um ‘eu’, um ‘outro’ e o ‘real’. Daí que tenho pavor das manifestações superficiais de coleguismo, dos rituais de emoções superficiais. O trabalho não é, necessariamente, um lugar para sermos ‘aceitos ou rejeitados’, onde vamos tentar sanar coisas que não têm a ver com o trabalho. Não estou dizendo para segmentarmos nossa vida: no trabalho e fora dele, só estou mostrando o lado nem tão cor-de-rosa de fazer do trabalho uma arena para se recuperar uma “grande família humana perdida”.

Uma queixa extemporânea: onde está a tragédia, onde estão as virtudes, onde estão os ‘grandes homens’? Estamos nos tornando nanicos sentimentalóides, movidos a ‘paixões de ocasião’, numa enfadonha busca por aceitação, ‘espírito de grupo’, coleguismo de ‘nivelação por baixo’, de ‘pactos narcísicos’, e assim por diante…

Prefiro ouvir a falar (#43)

Força

Qual o conceito de força? Por exempolo, baseando-nos na três leis de Newton, a força é uma grandeza capaz de vencer a inércia de um corpo, modificando-lhe a velocidade. E o faz tanto em termos de magnitude como de direção.

Vencer a inércia.

A força está na origem do movimento. Bom, poderíamos nos perguntar pela ‘metafísica da força’: para onde ela aponta? Pois, além de magnitude, a força possui direção. É um vetor.

A metáfora da força não poderia ser mais potente. Nosso corpo, para começo de conversa, exerce força – desde o movimentar-se até, menos obviamente, a força que exercemos sobre outras pessoas, tanto na forma de afetos (afetar) como de ideias (influência sobre a vontade, por exemplo).

A própria saúde, entendida em sentido amplo, é devedora de nossa capacidade de estar na origem de movimentos que, de outro modo, não teriam lugar. Ação é saúde. Fazer. Mudar. Afetar.

Outra força ‘subjetiva’ fundamental é o desejo. Nos colocamos em movimento quando desejamos algo. O desejo, como falta, leva à busca por um objeto que, na hipótese de conseguirmos, nos traria satisfação, felicidade. Prazer.

O desejo é o que nos leva a vencer a inércia.

Sem desejo, seríamos ‘coisa afetada’, e não ‘coisa afetante’. Sem desejo, beiramos ou cotejamos com a depressão – entendida como a ausência de movimento, como um retorno do self (do eu) sobre si mesmo, na forma de ressentimento, lamúria, não-ação.

Na psicologia do trabalho, por vezes desejo e força são tratados como sinônimos de motivação. Esta relaciona-se aos motivos, à direção e à persistência de uma ação. Uma pessoa des-motivada não se põe em ação.

O desejo, como força psíquica, é, a um só tempo, profundamente pessoal, singular, e também o desejo do outro. Ir no sentido do desejo do outro é tentar decifrar uma força que coloca o sujeito em movimento. A atração, por exemplo, tem esse efeito.

Mas ir no sentido do próprio desejo equivale a descobrir os motores do que impulsiona nossa ação. Nossas supostas ‘necessidades’ (embora desejo não deva ser confundido com necessidade).

Para mim, a grande questão é: como situar seu desejo num labirinto em que alguém já imaginou as saídas e alternativas. Desejar é, em certo sentido, transcender, transgredir o tabuleiro pré-determinado em que fomos lançados. O desejo é, na linha do que falei em meu post anterior, enlace entre o eu e o outro, entre o conhecido, o possível, e o improvável, o imponderável. Desejo e risco.

O eterno e o efêmero

Na vida humana há um entrelçamento fantástico entre o eterno e o efêmero. Entre a vida cotidiana, com suas banalidades, e a vida longa, a vida plena, onde as grandes decisões e os grandes acontecimentos se dão.

A vida cotidiana, banal, é a vida da ida ao supermercado, da troca de uma lâmpada queimada; a vida eterna, sem conotações religiosas (embora pudesse também haver!), é a vida que imaginamos para nós no futuro, nossos sonhos, o nascimento de grandes projetos, incluindo filhos, em suma, a vida eterna abarca o campo do sentido (na acepção de propósito [por quê] e direção [para onde]).

Tenho a sensação de que, para cada esfera de nossa vida, há um binômio, um par, um duplo, uma simbiose entre o efêmero e o eterno, a vida se dando entre a leveza e despretensiosidade de uma pluma e a seriedade, a dramaticidade, de um evento vital decisivo (o nascimento, a morte, a doença, um casamento, uma separação, um acidente, ou meramente uma inspiração, um desprender-se momentâneo em direção ao sublime – seja ele religioso ou não).

Por exemplo, na vida profissional. Ora, você deve, seja qual for seu campo de atuação (tomo sempre o meu próprio como referência, pois é nele que está vinculada toda minha experiência de vida), viver no interjogo de um duplo: de um lado, você tem de participar de reuniões, sentado em cadeiras desconfortáveis, em salas deprimentes (verdadeiros não-lugares), com pessoas com certo desânimo de ali estar ouvindo sobre critérios e normas de produtividade do seu Programa de Pós-graduação. De outro, você tem o conhecimento, a amplitude que ele supostamente lhe dá, a super-visão que ele te oferece, o gosto e o sabor elevado de grandes ideias, grandes feitos, grandes mudanças promovidas no cotidiano, seu e de outros – e, claro, “a fama” (palavra pouco usada no metiê acadêmico… talvez seja mais polido falar de “reconhecimento”).

Outro exemplo: nosso próprio corpo. Mal nos damos conta, mas a cada dia a vida vai jogando a duplicidade de sua essência, banal e eterna, de modo irreversível. Nosso corpo, aliás, é a prova viva, a materialização definitiva, de uma fusão de milhares de anos, pela qual somos, simultaneamente, nulidades e talvez uma das espécies mais brilhantes deste planeta – independente de você pensar que isso é um tipo de “especismo” (tendência de julgar uma espécie superior à outra, no caso, a humana). Deságua em nosso corpo as forças profundas e irrefreáveis da ontogênese e da filogênese, a sensação da singularidade (e sua manifestação objetiva) com o atravessamento anônimo, cego, despótico e indiferente da “vida genérica” da espécie.

Nossa vida, nosso corpo, é a manifestação do enlace entre o eterno e o efêmero.

Basicamente, há três modos de o eterno se colocar no nível da vida-corpo: primeiro, como disse, pelo próprio substrato da espécie (nosso DNA – já pensou o que “ele” teve de passar para chegar a esse estágio de programação e execução?); segundo, pelas nossas obras, e aqui penso em amplos conjuntos de atividades humanas, da arte à arquitetura, passando pela literatura, pela ciência, mesmo pelas ideias religiosas transmitidas de geração a geração; em terceiro lugar, a eternidade se manifesta em um filho, réplica mitológica do “À imagem e semelhança de…” (Deus, do pai, da mãe, em suma, daquela sepa específica pela qual se diferenciaram as diversas “linhagens” humanas: a família). Para a grande maioria dos humanos, ter um filho é o modo mais visceral, mais concreto, ao mesmo tempo mais metafísico, de lidar com o efêmero e o eterno, com a sensação de que se é absolutamente essencial (para criar o filho e no seu amor, depois de grande), e, ao mesmo tempo, radicalmente dispensável – e, mesmo quando se sabendo dispensável, narcisicamente feliz por ter “contribuído e deixado sua parte”. Um filho, lógico, jamais suplantará seu pai e sua mãe, nesse sentido mais profundamente “ontológico”.

Há outras formas de vivenciar a eternidade, embora essas possam se dar como engodo. Por exemplo, o próprio consumo é uma forma de viver o eterno e o efêmero, com este último se passando, na consciência do sujeito, pelo primeiro (isto é, o efêmero do consumo sendo interpretado como eterno). Num comercial de carro, você é, como consumidor, levado a “viajar” em ideias de liberdade, de perfeição, de potência, de força, de design, de beleza… mas, em dois ou três anos, você se vê com um produto que já precisa ser trocado, tamanha a “efemeridade” com que suas peças e seu conjunto é feito. A própria propaganda, aliás, lhe dará novamente o insumo para julgar que seu atual carro está, na verdade, ultrapassado, que precisa ser trocado – você vive, nesse momento, a consciência (falsa, mas profundamente conectada com as sensações e às ideias que até parece verdade!) do efêmero, mas não se atém a isso, não se delonga nessa sensação, pois ela é logo engolfada por um novo carro, pelo “cheirinho” de novo…

A arte soube captar a relação entre o eterno e o efêmero. A arte, inclusive, já foi deveras criticada por supostamente ter, em várias de suas correntes, abandonado a miragem do eterno e ter se voltado, perigosa e arriscadamente, para o efêmero (o que dizer, digamos, da chamada “art pop”?). Mas há muitos movimentos que sugerem o inverso na arte, e isso, penso, praticamente desde seu nascimento. A arte eterniza o efêmero. A pintura de uma mera paisagem, ou de uma folha, o minimalismo obsessivo de certos pintores ou ainda escritores, institucionaliza a passagem do efêmero, da plumagem da vida cotidiana, digamos assim, para o eterno, para uma “forma ideal” – para, faceiramente, citar uma conhecida colocação de Platão.

Por fim, podemos optar por viver no efêmero. Podemos optar por, digamos, viver “em festa”, em celebração. Podemos abrir mão da busca pelo eterno, pela inscrição de nosso nome num grande e relativamente estável gênero (profissional, cultural, etc.). Podemos, simplesmente, “deixar rolar”, deixar ser. Claro que não conseguiremos fazer isso de modo profundo, a menos que, de fato, façamos nossa vida algo “insustentavelmente leve”. Digo que talvez não possamos, pois, como disse no início, sempre estaremos no interior de um enlace, de um duplo. Até podemos correr para a primeira igreja da esquina, ou então nos voltarmos para nossa própria espiritualidade; podemos, sim, podemos. Ali, numa simples casa-igreja (ou mesmo num suntuoso templo), teremos contato, de modo imediato e quase “pop”, à imensa fragilidade e, paradoxalmente, à insuperável “consistência” de nossa vida como espécie. Se a pessoa não se deixar alienar (pois, acredite, o mero pensamento da finitude e da fragilidade huamana serve para nos tornar susceptíveis e imbecis), ela terá ali um momento de contemplação do sublime.

Mas contemplar o sublime, muitas vezes, não é suficiente para fazer você voltar à realidade, ao cotidiano, a seu movimento miúdo, a sua “corriqueiralidade”. Você tem de ser forte para, digamos, vislumbrar o sublime no âmago, no interior mesmo, do cotidiano. Só um exemplo para terminar. Imagine o trabalho, o emprego: ambos poderiam ser muito mais do que eles efetivamente são. Muitas vezes, a pessoa passa horas, dias, semanas, anos, décadas… a vida toda, fazendo a mesma coisa (ou coisas diferentes, não importa…). Se você parar para pensar, por mais que lhe digam que seu trabalho é “profundamente cheio de sentido”, ele é efêmero: o melhor presidente de empresa será, logo mais, substituído; a empresa mais sólida e orgulhosa de sua marca pode (e, provavelmente, será) vendida, mudada de nome, dividida, fragmentada, tratada como um pedacinho de ações numa bolsa de valores qualquer. Mas ele também poderia ser sublime, não? Como? É impossível responder a isto se pensarmos como indivíduos, como seres singulares, “especiais”, diferenciados; só responderemos a esta questão se, paradoxalmente, esquecermos de quem somos, se nos abrirmos para uma anônima e inexplicável impessoalidade. Talvez seja isso. Talvez, para encerrar, o sublime seja exatamente isso: a impessoalidade, o anonimato, a insignificância ao nível do indivíduo com nome X ou Y, identidade A ou Z.

Como pode ser potente, o anonimato.

Vamos para os EUA?

Hoje quero comentar uma banalidade que me veio ao espírito por conta de um episódio, de uma ocasião de que fui testemunha de ouvidos. Realmente, prepare-se: é um post no ótimo estilo “non-sense”.

Claro que não tenho números exatos. Porém, quantos brasileiros gostariam de mudar-se para os EUA? Arrisco dizer que esse número não deve ser baixo.

Os EUA são, ainda, o sonho da pequena classe burguesa brasileira – e, com isso, não me refiro apenas à óbvia classe média, mas mesmo a certa sub-classe (em termos econômicos). Não o lumpen, mas um grande grupo social semi-qualificado.

Mas é da classe média que temos o sonho mais vívido de mudar-se para os EUA. De viver lá… lógico que seria bom!, mas, em isso não sendo possível, ao menos de lá estudar por um tempo, de conhecer o país a turismo, de consumir as coisas vendidas em seu imenso mercado.

Os EUA, como ideia (não como império bélico-econômico), são ainda uma miragem. Um sonho: o lugar das possibilidades. Para as ciências “hard”, um paraíso; para a psicologia (sobretudo a “psicologia científica”), não deixa a desejar, obviamente…

Há um aspecto subjacente a esse desejo de ir ou de morar nos EUA. O fato de ser o país em que as coisas “funcionam, dão certo”. Ora, mesmo após tamanha e recente crise, o país está dando mostras de já estar com um nível respeitável de crescimento econômico!

E quem não gosta de coisas que funcionam? De “journals” que publicam rápida e eficientemente? De um sistema institucional e jurídico (e, claro, econômico) funcional, confiável?

País de gente grande. Ir e voltar dos EUA, sobretudo se “a negócios ou estudos”, é sinal de que o neófito volta com “know how“, pronto para encarar a realidade “tupiniquim”.

[Aliás, a própria designação “tupiniquim” é ideológica e moralmente carregada, ok?]

Imagine. Se você faz um pós-doutorado nos EUA, você é, na volta, visto como alguém que foi para um país “sério”, profundo, que o marcou com as insígnias da “competitividade” (“Essa pessoa só pode ser boa, indo para os EUA…”).

Se vai para um país europeu, volta “filósofo”… E as estereotipias não param por aí.

O tempo todo, consumimos a ciência produzida nos EUA (dizemos que “adaptamos” o que se produz por lá para o contexto local, mas isso é ficção…); consumimos suas séries (eu mesmo, adoro!); consumimos seu “way of life”, seu modo de encarar a vida, de povoar e colonizar a Terra.

Alguns aí podem me acusar de retrógrado. Podem me dizer que parei, me fixei, nos anos 1970 ou antes, quando o “americanismo” era uma bandeira da esquerda “mais genuína” dos países “colonizados e subdesenvolvidos”, Brasil incluso.

Mas, fato é o seguinte: estou cansado, estou farto, estou enjoado de nossa tendência cultural a nos dimininuir como país e cultura, embora possamos ser tudo isso: atrasados, “gente não séria”, país de oportunistas, de gente sacana, de cretinos.

Virar um Policarpo Quaresma? Não, não falo disso. Virar um turista pragmático, que para lá viaja (neste ponto, espero que tenha ficado claro que uso os EUA como metáfora!) e usufrui do que seu cartão de crédito pode pagar ou financiar? Não. Não falo disso.

Falo em sermos menos idiotas. A impressão que tenho é de que miramos esses países como instâncias superiores de vida. Em parte, isso é fantasia. E, com isso, justificamos a lambança que achamos por bem administrar em nossa vida cotidiana, em nosso país, nossa cidade.

Prefiro ouvir a falar (#40)

Saber e ignorância = a relação proporcionalmente positiva

Quero propor uma analogia. Eu a ouvi uma vez, e me veio à memória hoje. Está vendo as esferas acima? Pois imagine que cada esfera representa o quanto você conhece. Seu grau de conhecimento.

E imagine que todo o espaço ao redor da esfera represente o desconhecido.

Pronto. Agora considere o seguinte. Quanto maior o tamanho da esfera, maior a área em que ela “toca” o desconhecido. Portanto, quanto mais você sabe, mais você tem a clareza do desconhecido.

Isso explica porque algumas pessoas, que pouco conhecem, se acham as mais “entendidas”. Não é por maldade ou porque são empoladas: é porque elas, simplesmente, não conhecem, não sabem. Ou, se conhecem, conhecem pouco. Conhecem quase…nada!

A arrogância, a visão dogmática, tacanha, o caráter filisteu, reacionário, mesquinho, ignóbil, nada mais é, pois, do que pura e simples manifestação da ignorância, de uma “esfera” de saber minúscula.

Não vamos, portanto, inverter a ordem das coisas, ok?

Vem aí…

E a família vai ficar maior. Um grande passo para nós, que acabamos de perder uma de nossas cachorras. O grande passo é porque haverá uma importante mudança de “conceito”, digamos assim…Alguém saberia de que estou falando? Olhando as fotos abaixo? A segunda foto, inclusive, é famosa (Eli and David, por Lucien Freud).

Aumentando a diversificação pelas raças, cores, comportamentos…são uma beleza! A nossa está a caminho…

Fonte (1); Fonte (2)

Improdutivismo acadêmico

Faz tempo que tenho evitado entrar na discussão sobre o produtivismo exacerbado que vivemos hoje na ciência brasileira (mundial, claro), mais particularmente nas ciências humanas, e na psicologia – onde me insiro.

A tese, por mais que haja variações, é de que nos preocupamos muito mais com a quantidade de artigos em nosso currículo do que com a qualidade, o conteúdo. A resposta do “sistema” não demorou a aparecer, e temos hoje uma “métrica” que avalia também (quantitativamente, diga-se de passagem) a “qualidade”.

Mas os argumentos vão ainda mais longe. Graças ao produtivismo, diz-se, estamos sacrificando o ensino, a extensão. Estamos “fatiando” pesquisas que ganhariam em complexidade se articuladas na sua totalidade, e tudo para produzir mais, tirar mais “leite de pedra”, como se diz popularmente. Estamos (professores-pesquisadores) adoecendo. Estamos criando um circuito psicossocial tóxico: concorrência por recursos, por bolsas, por status/prestígio, o que muitas vezes culmina até mesmo em atitudes ilícitas, como plágio, auto-plágio e assim por diante…O produtivismo leva ainda culpa por matar a inovação – se, por exemplo, cruzarmos número de artigos publicados e patentes registradas, a distância é lunar, para não dizer do amontoado de lixo virtual que vamos produzindo agora que não se precisa mais derrubar árvores para fazer o papel em que se materializaria o famigerado “paper”…

No fundo, me pergunto: a quem interessa o tal produtivismo? Mas ocorreu-me que um modo talvez mais criativo de pensar seja perguntando o inverso: a quem interessa o improdutivismo, se é que, de fato, uma coisa é o inverso da outra?

1. Não nego que talvez os que critiquem com tanta veemência o atual sistema de produção acadêmica sejam seres com uma visão profunda das coisas, do conhecimento, alguém que enxerga para além da burocracia weberiana do mundo acadêmico – não seria, aliás, por isso que se alastrou certa tendência a usar ganhadores de Prêmio Nobel para criticar o sistema de produção acadêmica atual? (Ora, se eles, que são tão iluminados, dizem que não seriam “nada” pelas métricas vigentes, então algo deve realmente estar errado com o produtivismo…);

2. Mas também não podemos deixar de conjecturar que o sujeito “improdutivo”, e que critica o “produtivo” (nessa dicotomia aqui usada apenas para efeito didático), talvez tenha uma concepção mais rasa do conhecimento do que pensamos. Fico me questionando: em qual momento da história não havia algum tipo de pressão para que as pessoas provassem a que vieram no trabalho? Lembro-me aqui da tese de A classe ociosa, de Thorstein Veblen. Acadêmicos alegam que precisam de tempo e condições para pensar. Concordo. Mas, assim como o produtivismo debanda para o insano, esse tipo de visão sobre o “improdutivismo” também não poderia nos levar a uma situação inversa, em que produzimos apenas e quando isso nos bate nas ventas, se é que isso acontece? Pois pode haver um professor improdutivo, que não prepara aulas, que repete as mesmas coisas sempre, que simplesmente vai na universidade (se ela for pública) para “dar carga horária mínima” e pegar o resto do tempo para cultivar bonsais em casa ou então ler seus livros, suas poesias ou o que quer que deseje. Pode haver extremos dos dois lados, não?

>> Adendo 1: certas pessoas acham que a “boa produção” é aquele livro escrito após 20 anos debruçado sobre os papéis, e que, quando lançado, revoluciona o mundo. Não há como negar certo viés “aristrocrático” na crítica ao produtivismo, pois qualquer um, desde que tenha as condições mínimas, pode publicar um artigo;

>> Adendo 2: Muitos dos que criticam o produtivismo não revelam, mas eles falam de algum lugar. Por exemplo, alguns falam do lugar de quem olha para isso tudo e diz, de sua “superioridade”: bando de imbecis. Em geral, usam como argumento, explícito ou (na maioria das vezes, implícito), que os clássicos viam muito além do pontinho que representa um artigo, como se este artigo não fosse mais do que poeira cósmica. É a crítica feita da posiçao da arrogância.

3. Acho que existe uma moral no improdutivismo (um tipo de ethos). Num sentido, o improdutivismo, como na antiga ideia de O direito à preguiça, de Paul Lafargue, nos lembra que o trabalho não é tudo. Que o trabalho não é uma atividade que se restrinja ou se plasme, pura e simplesmente, à métrica da produção (quantas peças, quantos botões produzidos, quantos carros vendidos, quantos artigos aceitos para publicação, etc.). Ou então que o trabalho pode ser muito mais do que, neste exemplo, o produto “artigo”. Seja como for, não há trabalho sem um produto, sem algo gerado, uma obra, um serviço, qualquer coisa. O ciclo do trabalho não se fecha se inexistir alguma “produtividade” (no sentido amplo de um sujeito que aje sobre o mundo e o transforma);

>>Adendo 3: Isso significa que, muitas vezes, a crítica ao produtivismo confunde coisas absolutamente diferentes: a produção do conhecimento com sua forma de divulgação. Acho lamentável que muitos transmitam a ideia de que precisamos “produzir artigos” (publish or perish) como se isso fosse a forma par excellence de produzir conhecimento (ou que o fato de “está publicado = conhecimento”). Porém, divulgar críticas ao produtivismo, do jeito que muitas são feitas hoje, leva nossos alunos a desenvolver um trauma sobre a vida acadêmica, a ver com desgosto e antipatia a arte de produzir um artigo – um artigo pode ser bom, pode ser ótimo, pode ser muito inovador, e pode, sim, produzir conhecimento…

Para não me alongar mais (isto é um post, não um ensaio!), quero dizer o que penso sobre tudo isso:

1) Se o produtivismo está nos levando à imbecilização, o improdutivismo implício nas críticas geralmente feitas deveria ser, a meu ver, explicitado, numa relação de gente adulta: de que tipo deveria, então, ser a vida acadêmica? Deveríamos ser mais improdutivos (no sentido já aludido, de ócio, de direito à preguiça, de direito a fazer as coisas do nosso jeito, no nosso tempo)? O que entendemos por “improdutivo”?

2) A improdutividade significa, para além de tudo o que eu disse acima, variabilidade. Tanto é assim que podemos facilmente dizer quem é produtivo (pela métrica), mas definir alguém “improdutivo” é mais difuso, por mais que você pense que não, que seja fácil. Pois uma pessoa pode ser improdutiva para uma coisa, mas muito produtiva para outra;

3) Repetindo: produzir muito, academicamente, não é privilégio de nossa época. Pegue grandes tratados de filosofia, por exemplo, e você não vai encontrar ali poucas páginas. O leitor pode argumentar que, digamos, 3 mil páginas escritas por Espinoza são muito mais duráveis historicamente do que 100 artigos Qualis A1. Aí temos um critério de valor. Mas não há como negar que o trabalho acadêmico gera sofrimento, gera angústia, gera dilemas sobre a relação com o saber, e não há saber sem que este seja passado, materializado, objetivado num “produto” (pode ser um artigo, um livro, um aluno formado, etc. etc.);

4) A questão-chave para mim é a seguinte: se há a “liberdade individual”, se uma pessoa não pode ser impedida de NÃO publicar, se há, como diria Adam Smith, uma mão cega a guiar nosso egoísmo (ação moral), o ponto é: quais as consequências para o coletivo de uma série (homogênea/convergente) de ações individuais (no caso, tudo mundo correndo e se atropelando para publicar nos mesmos lugares, das mesmas formas, com os mesmos objetivos)? Quais “distorções” geram os comportamentos individuais não limitados (pois, de fato, não estamos numa ditadura)? E o inverso: que consequências surgem se deixarmos as pessoas em sua própria dinâmica, no seu próprio ritmo, na sua própria concepção sobre o que seja o mundo acadêmico e aquilo que ela deve dar em troca? No fundo, a velha luta entre o prescrito e o real…


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