Prefiro ouvir a falar (#29)

Pensar grande

Chega um momento, em sua vida profissional, em que é preciso pensar grande. Não me refiro a isso que já virou um ditado do senso comum, certo puritanismo ascético de crescer, crescer e crescer, de sentir que se veio neste mundo para fazer a diferença, deixar sua contribuição, ser diferente da maioria dos outros, etc. Pode até ter um pouco disso, mas penso em algo diferente. Penso, em particular, no campo das ciências, ainda mais especificamente no campo das ciências humanas, no da psicologia, onde por fim atuo. O que é pensar grande aí?

Vou tentar uma resposta, menos por tê-la já pronta na cabeça, mas muito mais no sentido de que, enquanto escrevo, estou pensando e a desenvolvendo para mim mesmo. Então, por enquanto, ela pode não ser mais do que algunas intuições, impressões pessoais.

Sinto que vivemos hoje, talvez por conta dos excessos da cultura da produção acadêmica, uma situação de saturação. Até aqui, nenhuma novidade. Muitos de nossos alunos, nós mesmos (professores), colocamos alvos miúdos à nossa frente, e nos limitamos a alcançá-los. Muitos de nós pensam apenas no curto ou, no máximo, médio prazos. Outros, mais experientes, conhecem seu próprio centro de referência (seu projeto profissional, por exemplo, ou sua circunscrição teórico-metodológica…), e então acabam “espraiando” alguns tentáculos, o que se reflete em diversos projetos em rede (com alunos, outros colegas, etc.). E há, naturalmente, os que “atiram para todos os lados”, vivem ao sabor do momento, daquilo que pode repercutir em bom volume de produção. Vivem, nesse sentido, uma vida “rizomática”, para fazer um uso (espero que não-abusivo!) de uma ideia de G. Deleuze.

Mas, o que buscamos? Em que medida as demandas institucionais acabam nos atravessando e, de dentro de algum jargão, nos inflamos e causamos algum barulho? O que pensar grande nestes casos?

Pensar grande é, em alguma medida, retomar certa perspectiva holística da realidade, certa visão total dos fenômenos. Há muitos que dizem não ser isso possível, pois um fenômeno só se revela a partir de algum recorte. Mas a cultura do recorte (travestida de uma roupagem “epistemológica”) nos afasta da apreensão mais ampla dos fenômenos, e nos torna absurdamente especialistas. Então, pensar grande implica, nalguma medida, em sair de um jogo disciplinar específico (digo, de alguma abordagem / faceta particularista dentro do campo do saber). Mas, pode-se argumentar, isso nos deixaria como a personagem Ryan do filme Gravidade (em cartaz): à deriva? E, definitivamente, ficar à deriva não é bem uma “qualidade” apreciada no contexto universitário. Então, temos aí um paradoxo.

Sem alongar demais, e como eu me dei a liberdade de simplesmente ir expondo alguns pontos aqui, eu perguntaria ainda o seguinte. E quando não conseguimos pensar grande, quando somos, por muitos motivos, impedidos de fazer isso? O que nos resta? Bom, restam algumas opções (sempre pensando no pequeno-mundo acadêmico, minha realidade): primeiro, inflar-se em torno de um ponto miúdo, ou seja, fazer muito (barulho – ex.: artigos) com pouco (conteúdo). Segundo, paralizar-se: diante do “pensamento pequeno”, prefere-se não falar nada. Neste caso, é uma estratégia curiosa: quem pouco produz tem, a seu favor, a prerrogativa de que não produz porque prefere esperar o momento certo da “manifestação do pensamento grande”. É uma opção, e temos de colocar assim. Há ainda os cínicos, que jogam o jogo – por exemplo, produzem porque sabem que no “mundo artificial” da ciência, as coisas são assim, de modo que preferem entrar no jogo a questioná-lo. Estes, em geral, vão muito bem, pois estão integrados na lógica que estrutura o funcionamento das coisas. Mas podem vir a ser, em qualquer momento, cobrados perante a consciência, esse tribunal impiedoso do sentido.

Não assino embaixo de nenhuma opção acima. Ainda seguirei por aqui, um pouco frustrado, porque ainda não sei bem em que consiste “pensar grande”… nesse mundo tão pequeno chamado ciência, ciências humanas, psicologia.

Prefiro ouvir a falar (#28)

Fracasso

O que acontece quando fracassamos? Numa cultura supostamente meritocrática como a nossa, vencer ou fracassar depende de desempenho, cuja proficiência se mede com critérios contingentes de valor e também de aspectos comparativos. Portanto, um desempenho é bem-sucedido se atingir certos padrões estipulados como ideais (ou próximos do ideal), quando uma pessoa (seu desempenho) é comparado ao de outra, e quando, subjacente a tudo isso, comparece um elemento qualquer de sorte. De fato, não há como negar a presença dela!

Mas há uma “química” na vida cotidiana que nos leva, sempre quando diante de algum fracasso, a jogar a culpa em nós mesmos – exatamente no desempenho. Nessa direção, fracassar traz consigo um componente de culpa, de auto-flagelo, de vergonha, e, por que não, de dúvida sobre si mesmo (no caso de, como diria Freud, sermos bons neuróticos).

Quando o outro nos nega o acesso àquilo que alcançaríamos se fôssemos bem-sucedidos, há um remanejamento perceptivo em que o nos vemos como a parte com alguma falta, com alguma insuficiência. Desencadeia-se um processo de deslegitimação. Naturalmente, esse processo não é (não deveria!) extensível à personalidade como um todo, ao conjunto da vida de uma pessoa. Tanto é verdade que, quando fracassamos, aqueles que nos trazem de volta à realidade (a um sentimento de legitimidade), são nossos amigos, pessoas que nos vêem a partir de outros critérios que não o estrito desempenho em áreas estritas da vida social/burocrática (no sentido Weberiano). Amigos nos acolhem, nos colocam de volta nas trocas simbólicas fundamentais a nosso senso de identidade. Eles nos reconhecem.

Haveria como, mesmo diante de um fracasso, contarmos com nós próprios, nossas crenças, algum substrato de nosso ser capaz de ficar imune à recusa do outro (fracasso)? Tenho dúvidas sobre isso, mas penso que contar consigo mesmo, num fracasso, é a situação mais realista. Um exemplo bastante simples. Quando fracassamos, isto sempre ocorre no plano simbólico (por exemplo, não conseguir um emprego desejado, num lugar desejado). Fracassar, no plano concreto, é morrer, literalmente. Então, quando fracassamos, o que nos resta, do ponto de vista estritamente concreto? Nosso corpo – antes mesmo de nosso ego!

Nosso corpo é, afora o plano obviamente sensório-motor, físico, intelectual, energético, a única garantia que temos de que, quando tudo no campo simbólico desmorona, ele ainda estará lá. Não nossa vida – que é estrita e indiscutivelmente física, mas sim nossa vida e nosso potencial. Nosso corpo, marca suprema de nossa identidade e de nossas possibilidades, é o único suporte que temos para instituir novas formas simbólicas, para avançarmos na vida, para avançarmos sobre as resistências de todos os tipos.

O que quero dizer é que, diante de um fracasso, não é apenas no campo simbólico, interpessoal ou intersubjetivo que temos de reencontrar o sentido e o suspiro necessário para superar a situação. É no plano de nosso corpo, aqui entendido semioticamente – como uma matéria (uma coisa-em-si), mas como uma forma de mediação entre “nós” (ilusão absurda, necessária para nossa sobrevivência psíquica, mas uma invenção absurda, tanto no sentido positivo como negativo) e o mundo. Para mim, em suma, diante do fracasso, só há uma saída: a coragem física!

Prefiro ouvir a falar (#27)

Uma série de músicas que fazem parte da trilha sonora de Ray Donovan (Show Time). Em específico, as músicas de encerramento dos últimos episódios da série. A primeira é No Sympathy, do Flash Lightnin; a segunda, Banshee, da Kendra Morris; e a terceira, minha favorita, da Rebecca Ferguson, Glitter & Gold, numa belíssima performance ao vivo.

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Prefiro ouvir a falar (#26)

Seguindo esse “começo” de semestre “devagar e calmamente” (rs…)

Do álbum Slide it in (1984)

O silêncio de Deus

A gente vive numa época barulhenta. As cidades estão cada vez maiores, e o barulho é a regra. A poluição visual, os sinais em toda parte. Grandes e pequenas organizações tentam, a cada esquina, capturar nossa atenção. Não há como caminhar poucos metros e não identificar algum sinal de publicidade.

Numa cidade contemporânea, são raros os espaços e momentos em que você é deixado sozinho. Até se pode ficar sozinho na multidão. Esse mal é conhecido. Mas você não consegue, nas circunstâncias atuais das grandes cidades brasileiras, dar-se conta de algumas coisas existencialmente fundamentais.

Não acho que o ser humano deva viver muito tempo no barulho, na “muvuca”, como se diz popularmente. Não acho que o ser humano vive bem com o excesso de códigos, signos, sinais, símbolos. Estes, numa sociedade de consumo de massas, implica sempre no desvio do essencial, na captura do olhar e na fuga para o supérfluo.

Nunca gostei desses autores pós-modernos, sociólogos e, em geral, franceses (parisienses), que idolatram a cacofonia da vida cotidiana, contrapondo-a à monotonia medieval (ou anterior). A monotonia seria não haver nada para ver, para se distrair? Não acredito. De outra forma, como então explicar a profunda monotonia que podemos sentir no meio à balbúrdia de grandes metrópoles?

Vamos para um contraponto. Você já reparou que, na literatura religiosa, Deus não fala? Pelo menos não no sentido verborrágico. Jesus Cristo, como nos mostra a Bíblia, lança todas suas preces no Monte das Oliveiras a um Deus que simplesmente…se cala. O que poderia significar o silêncio de Deus? O silêncio do verbo? O que há quando não há linguagem, falatório, tagarelice?

O silêncio de Deus pode significar que é o real que está diante de nós. Explico. Em um momento de sofrimento, quando nos foge as frágeis proteções da linguagem, do signo e do simbólico, a que recorremos? A algum aplicativo do Iphone? A algum comercial de televisão? Não. Recorremos a um silêncio absurdamente indecifrável. Aí está Deus. Nesse silêncio, nesse “apagão”.

Deus esta, paradoxalmente, nas entrelinhas dos discursos, sejam eles quais forem. Ele está nos interstícios. O silêncio em que ele “se manifesta” é o inverso da egolatria cotidiana, quando nosso pequeno-grande “eu” ocupa toda a cena, com suas preocupações infindáveis, enfadonhas e rememorativas. Deus é, nesse sentido, o não-eu.

Faça o exercício. Você não precisa acreditar em Deus, você pode até mesmo ser um ateu. Mas faça o exercício de calar-se e de calar o barulho a seu redor. Tente. Esforce-se por deixar o silêncio ocupar, “monotonamente”, a sua vida. Apague-se. Desligue-se de tudo e todos. Não busque seu “eu”, mas sim busque “perdê-lo”, esquecê-lo. Despregue de si tudo que em você se colou, o burburinho geral.

Um exemplo de “contexto” para a “escuta” do silêncio de Deus é a própria natureza. Por que será? Em parte, eu tenho uma intuição, mas ela é bem minha: em parte, porque o ser humano, este sim, é um tédio.

Comentários

Você já teve o trabalho de ler os comentários de internautas em portais de notícias ou em outros locais virtuais? Caso não, faça-o algum dia, por pura distração antropológica. Honestamente, quando faço isso, fico com uma dúvida cruel na alma: que povo somos? De um lado, acho que a internet é lugar de gente que gosta de estravasar o que há de pior e mais indecente: ódio, inveja, maldade, conversa fiada. Para mim, justamente a conversa fiada é o pior. Fala-se sem qualquer escrúpulo, em especial dos políticos.

Por exemplo. A visita do Papa.

Francisco desembarcou hoje no Rio de Janeiro. Ao acompanhar a cobertura do fato, fui até os comentários em diversos portais. As pessoas conseguiam, mesmo com respeito ao Papa e à sua visita, falar bobagens e idiotices. Mas este é só um exemplo. Ao final de qualquer matéria você pode ler tais comentários. No fundo, sem querer ser conservador, acho que a internet está cheia de gente ignorante, semi-analfabeta, covarde, sem noção da realidade.

Vive-se uma vida paralela nesses comentários. Seus autores não sabem, no fundo, o que estão falando. Repletos de erros de português, disparam contra a política, fazem piadinha, liberam seus instintos mais profundos, animalescos, a-políticos.

Por outro lado, esses mesmos comentários refletem um pouco de nossa cultura, de nosso jeito (brasileiro) de ser. Um povo deslumbrado por algo que nem sabe nomear. O brasileiro, parece-me, não sabe lidar com a liberdade – neste caso, a permitida pela internet. Veste um personagem e começa a falar sem qualquer critério. Simplesmente, libera sua mais pervertida e insensata alma. Uma alma pré-civilizacional, ou seja, animal. Desculpem-me a expressão, mas é isso mesmo que acho: alma animal. Uma besta sem modos, sem a menor capacidade de viver a simbologia da vida cotidiana.

Não estou, em nenhum momento, dizendo que o Papa ou qualquer outra personalidade religiosa/política são imunes a críticas ou o quer que seja. Mas tomei este exemplo para falar um pouco de meu mal-estar com comentários na Internet. Algo profundamente decepcionante, a-simbólico, abjeto.

Frases (excursos absurdos – parte 2)

“Deixe sua vida para os órgãos. Em seu silêncio aleatório e fisiológico (regrado por leis e submetidas a certa [ou boa] margem de erro), independente, pois, do que você faça, eles te mantém vivo ou lhe reservarão uma morte abstratamente perversa, mas sem maldade.”

“Às vezes, o habitat mais sublime, mais deleitoso, seria o buraco na terra – exatamente como faz o avestruz com sua cabeça encoberta, problemas resolvidos, consciência segura.”

“O brasileiro é, sempre foi?, um deslocado. Quando fora do país, mantém-se um estranho, achando tudo estranho e, com “jeitinho”, buscando entender ‘qual é a dos gringos’. Quando no país, se acha um esperto”.

“Talvez alguém não consiga entender que pode haver prazer e um fim em si mesmo na conversa mais desinteressada do cotidiano, ainda que inglês… e num ônibus indo para um destino que foi ‘explicado’ pela internet ou pela agência de turismo da esquina…”.

“Se fosse sua filha, você responderia…”.

Devaneio x criatividade (excursos absurdos – parte 1)

Quantas vidas imaginadas e possíveis nós temos? Já pensou que a cada momento deixamos de fazer muitas coisas – apenas as imaginamos? Qual a finalidade da pura e descolada imaginação? Onde ela nos leva? Qual a diferença da “boa” imaginação para o devaneio? O devaneio é perda de tempo, movimento livre da consciência perdendo-se a si mesma. Não há escrúpulos no devaneio: a consciência simplesmente “se deixa ir” em imagens aleatórias, sobrepostas, fundidas, combinadas num fluxo até mesmo coerente mas em si mesmo “inútil”.

O devaneio é diferente da criatividade. Nele, a consciência se perde; na criatividade, ela se reencontra com o mundo. Desloca-se do cotidiano e retorna a ele, transformada. No devaneio, imaginamos uma série de “e se”. O devaneio nega a vida. Foge da vida. Cria cenários fictícios, prazeres desencarnados. Deve-se evitar o devaneio. Em seu lugar, colocar ideias com algum valor simbólico – portanto, algo conectado com o outro, com as outras pessoas – com a cultura, por exemplo.

Exceto se o devaneio for uma “perda de tempo” – por exemplo, quando estamos viajando (trem, ônibus, avião…) e não temos o que fazer (dormir, por exemplo). O devaneio é imaginário. Embora fazendo uso do simbólico (cenas, palavras, sons, etc.), ainda assim ele não tem plausibilidade, não se liga à vida real da pessoa. No campo do imaginário, não há corpo, não há tempo, não há o outro concreto, só o outro e mundos imaginários.


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