Prefiro ouvir a falar (#25)

A manifestação da massa

Tenho, como todo brasileiro, acompanhado as manifestações de protesto por todo o Brasil. Hoje, dia 20, no RJ, as imagens são absolutamente impressionantes: no mínimo 300 mil brasileiros tomaram a Avenida Presidente Vargas, em clima pacífico, com cartazes, faixas, com a bandeira do país em punho.

Acho que a quantidade de material antropológico é imensa. Gostaria de registrar algumas impressões.

1. O país do carnaval e da carnavalização. Um país, pense bem, que é um país ‘coletivista’, ‘festeiro’ no bom sentido: como não fizemos isso antes? Se você observar, verá que há de tudo, uma verdadeira miscelânea, quase como vemos no carnaval. A mídia, imbecil como quase sempre, chegou a comentar que se trata de manifestação sem propósito, “uma imensa frescura” de estudantes… . Nada de mais errado, nada de mais ridículo sobre o país, sua cultura e seu povo (embora a mídia, os jornalistas, sejam também brasileiros…);

2. O trabalho não é, em tese, o foco principal do evento, que deixou de ser um grande protesto e se tornou um ritual coletivo. De fato, desde os primeiros eventos, o número de pessoas só tendeu a aumentar. Hoje, nota-se claramente um clima de “convivência coletiva”. Não se trata de uma manifestação com pauta de classe, como eu disse, em relação ao trabalho (em geral, um dos focos de aglomeração – carteiros, professores, etc.). O foco, que no princípio baseou-se na revolta contra o aumento das passagens de ônibus, tornou-se palco de agenda difusa;

3. A Copa das Confederações. Digo isso porque, emblematicamente, Dilma foi vaiada no contexto de um dos eventos coletivos mais fundamentais da nossa cultura: o futebol. Mais uma reação coletiva. Aliás, os políticos, diante de um movimento como esse, viraram nanicos, frágeis, desesperados e, no caso da Presidente, incapaz de sintonizar-se com o “timing” dos acontecimentos (dizer, 10 dias após o início das manifestações, que “reconhecia o direito à voz do povo” é, no mínimo, uma gafe e falta de sensibilidade democrática). Às vezes sinto que o despropósito, a inépcia, dos políticos se deve muito mais ao espírito “para inglês ver” dos brasileiros do que propriamente a uma “despolitização” (em outras palavras: nós, como povo, deixamos as coisas “rolarem”; se realmente nos implicássemos, como está acontecendo, em massa e quase na forma de cartarse, estes políticos não fariam o que vivem a fazer, disto tenho certeza);

Em suma, não tenho opinião maniqueísta sobre o que está acontecendo. Vemos de tudo. Vemos gente se divertindo, vemos pessoas simplesmente ali presentes, como no carnaval ou na comemoração de um jogo de futebol, vejo, em suma, uma vontade aparente de quebrar o fluxo do cotidiano, de resgatar, mesmo que de modo não consciente, um jeito “lúdico” de viver juntos. Vi vizinhos indo à passeata aqui onde moro, e fiquei com a impressão de que estavam indo para um jogo de futebol. Isso não é ‘negativo’, não estou dizendo isso, só estou dizendo que há misturas de gêneros: o protesto é, de algum modo, comemorativo, carnavalesco.

Roberto da Matta, importante intérprete de nossa cultura, tem um texto em que discute a relação entre a “Casa & a Rua”. Hoje, o povo está indo para a rua. Uma rua que, numa visão metafórica, parece uma grande, imensa, imaginária ao mesmo tempo em que simbólica, Sapucaí, um enorme Maracanã. Muito a se pensar, mas temo que os acontecimentos, embora grandiosos, terminem como se termina o carnaval e os eventos futebolescos. Ou não. No momento, só consigo pensar em Ortega y Gasset e seu livro “A rebelião das massas”. Por ora, estou aqui de camarote esperando a reação de nossos nobres políticos, correndo às pressas e diminuindo o valor das passagens. Teriam eles outra opção? Teriam eles outra opção, caso os movimentos continuassem e elegessem cada uma das safadezas que tais políticos patrocinam por aí, descaradamente, acobertados e protegidos por nosso espírito de “deixa, é para inglês ver”? Duvido!

Prefiro ouvir a falar (#23)

Prefiro ouvir a falar (#22)

Meu Deus, nunca me canso de ouvir esta música…

Quando nada mais importa

Você já teve uma sensação do concreto, mas não do concreto em si (digamos, um fato imediato, algo em que você tenha sido envolvido fisicamente, experiencialmente, no aqui-e-agora com todos os órgãos de seus sentidos), mas de um concreto distante, de um fato que você só viu pela televisão ou pela internet, mas, ainda assim, algo concreto? Provavelmente, numa sociedade televisionada e recoberta de informações em tempo real, sim, você, eu, todos já tivemos isso.

Preciso compartilhar algo, algo que, para muitos, talvez para a grande maioria, passaria desapercebido. Passaria desapercebido mesmo por gente que dedica a vida a defender humanos frágeis e vulneráveis. Alguém que atue em comunidades carentes por este país afora, presenciando violência, descaso, maldade e tudo o que de pior o ser humano consegue fazer a ele mesmo. A cena seria naturalizada por quase todo mundo “de bem”.

E o mais absurdo, disso que estou sentindo e ainda não disse diretamente do que se trata, é que esse sentimento é profundamente aleatório, no sentido de que, se eu não tivesse tido a informação, eu não teria sequer sentido o que senti. E também me assusto, bem no fundo do meu peito, ao notar que esse sentimento não apareceria em qualquer situação, mesmo naquelas situações em que pessoas de bem, como as que relatei acima, ficariam sensibilizadas e tocadas.

E também me assusto ao perceber que, quanto mais a cena dói em mim, mais eu quero saber sobre ela, como se eu quisesse enveredar por algum voyerismo masoquista, algum tipo de autopunição.

Tudo isso foi porque vi uma cena de um cavalo atropelado na Raposo Tavares, em SP. Vi pela internet, nos principais jornais matinais. Vi cada detalhe da imagem como se fosse a última imagem que eu fosse ver na vida.

Não sei explicar o porquê, mas o que eu vi foi um abandono, o abandono quase absoluto, a indiferença asquerosa de nossa vida cotidiana. Fiquei com ódio, com ódio da estrada, da rodovia, dos carros, das motos, do maldito concreto contra o fundo verde das árvores ao redor. Uma cena, um acontecimento banal, na mais niilista banalidade da vida cotidiana, uma cena que hoje mesmo está fadada a um esquecimento protocolar; não haveria nada a relembrar, a defender, a reinvindicar; nenhuma placa anotada, nenhuma família triste, nenhum sistema jurídico acionável, nada, simplesmente nada. Em quase 100% das notícias relacionadas ao incidente, o foco era na “lentidão do trânsito”, nos “20km de congestionamento”, e, portanto, no atraso do começo de mais um dia na capital agitada. Quem atropelou, fugiu. O animal atropelado, no chão, com vida, mas por pouco tempo.

Eu me assustei com o sentimento. Assustei-me realmente, pois é como se um canal adormecido tivesse se reaberto em mim, e infelizmente ele desagua na inação, no nada fazer, pois não há nada que eu possa fazer, não há nada que alguém possa fazer neste momento.

Sobrevivência

Foto da região do Bryce Canyon, nos EUA

Caixa rápido

Hoje eu estava no supermercado e, naquele ímpeto comum de querer sair logo das filas, aderi à de “caixa rápido”. Espera-se que, em tais caixas, realmente o adjetivo funcione, e a coisa realmente opere de maneira eficiente. Mas, no meu caso, aconteceu o inverso. No caixa, provavelmente uma atendende novata. Uma sensação agoniante ver que a fila ao lado desaparece e você fica no lugar. Logicamente, exceto se você estivesse de férias (e ainda assim se poderia duvidar), isso causa certa irritação e ansiedade. Nesse momento, você só olha para si mesmo e para sua situação. Não considera nada mais. Age como um consumidor irritado e, como todo consumidor, com “direito” de reclamar, de espernear.

Agora, um olhar de psicólogo do trabalho, que é o que supostamente sou.

A caixa era, realmente, uma funcionária nova de empresa, apesar de ser de idade mais avançada, comparativamente às outras atendentes. Ainda estava aprendendo o trabalho. Ainda não tinha os “macetes” de funcionários mais velhos, experientes – por exemplo, ainda não devia saber de cabeça o código de certos produtos (as caixas têm de realizar hoje muitas funções, sendo uma delas a de pesar alimentos – hortifrutis, em geral; há, nessas circunstâncias, códigos afixados a um “folheto” que elas têm junto a si). Nessa situação de aprendizagem, a pessoa “briga” com os produtos, com o scaner que lê as etiquetas/códigos de barras, com a operação do cartão de crédito.

Um psicólogo organizacional (e não um do trabalho), poderia dizer que faltou treinamento a essa funcionária, que ela não deveria ter sido “deixada” dessa maneira. Um profissional de administração poderia dizer que isso depõe contra a gestão e, consequentemente, contra a percepção de serviço do estabelecimento.

Mas o episódio me mostrou outra coisa. Ali, diante da caixa em treinamento, podemos nos sentir superiores. Podemos sentir que “temos o direito” de reclamar e de ser logo atendidos, com “eficiência”.

Porém, se formos menos cínicos, vamos lembrar de todas as vezes em que estivemos em situação similar, quando alguém teve de ter paciência para que apresentássemos certo nível de proficiência. Vamos nos lembrar de muitas e muitas situações em que ficamos inseguros, em que titubeamos, em que não sabíamos como agir mais despachadamente.

Mas nos esquecemos que há pessoas melhores do que nós (no sentido de mais habilidosas, mais treinadas, mais capacitadas). Diante do fraco, aproveitamos para descontar nossa falsa consciência de seres dotados de habilidades superiores. No fundo, muitos de nós somos cegos.

Muitas situações da vida cotidiana nos confrontam com a necessidade de simplesmente olhar o outro por aquilo que o outro é ou pela situação em que ele está. Mas parece que estamos perdendo a tolerância. Estamos perdendo uma tolerância que, na situação inversa, em que nós ali estivéssemos, iríamos desejar. A tolerância é a capacidade de sair de si por algum momento e acolher a situação como algo dado, como algo disposto diante de nós e sobre o qual não temos grande poder de interferência.

Ademais, se, em nossa vida, não tivéssemos encontrado pessoas que nos tolerassem, aceitassem nossa “lerdice” (quando crianças, por exemplo, mas, evidentemente, não só!), jamais nos desenvolveríamos. Crescemos porque alguém nos aceita, nos tolera, alguém supostamente em outro estágio de desenvolvimento.

Diante da caixa de supermercado, lembrei de todas as vezes em que me senti paralisado diante de alguma situação em que não conseguia ter certo desempenho. Lembrei-me de todas as pessoas que conheço e que, considerando as características que valorizo, são melhores do que eu e com quem eu aprendo. Coloquei-me em perspectiva.

É isso que de mais e mais somos incapazes de fazer, nos colocar em perspectiva.

Prefiro ouvir a falar (#21)

A captura de um momento [ou pathos]

Agora tenho 33 anos de idade e sinto que muito tempo passou e vai passando mais rápido a cada dia. Dia após dia preciso fazer todo tipo de escolhas sobre aquilo que é bom, importante e divertido, e depois preciso conviver com o confisco de todas as outras opções que essas escolhas eliminam. E começo a perceber que à medida que o tempo ganha ímpeto minhas escolhas vão se dar num campo mais estreito e as eliminações serão multiplicadas em ritmo exponencial até eu chegar a algum ponto de algum ramo qualquer dentre as suntuosas ramificações complexas da vida onde estarei completamente trancado e cravado num único caminho e o tempo passará voando por mim em fases de estase, atrofia e decadência até eu cair pela terceira vez, toda a luta em vão, afogado pelo tempo. É apavorante. Mas como serei trancado pelas minhas próprias escolhas, parece inevitável – se desejo ser adulto de algum jeito, preciso fazer escolhas e lamentar eliminações e tentar viver com isso

De David Foster Wallace, em Ficando longe do fato de já estar meio que longe de tudo (Cia das Letras, 2012)

Ação e inação

Por que não fazemos como o personagem de Melville, o escrivão Bartleby, simplesmente dizendo “prefiro não fazer” aos pedidos dos outros? Por que simplesmente não interrompemos a ação, nosso agir? Ou, inversamente, o que nos leva a querer fazer coisas, a simplesmente querer sair da cama pela manhã? A sobrevivência, a “busca por sentido”, a vontade? O medo das consequencias do não-fazer? O desejo?

Ah, o desejo. A busca por preencher, ilusoriamente, o que falta. O trabalho de cultura, como diria Freud: o trabalho de Eros, de ligação, de enactment. Algo particularmente humano, entre tantas características já catalogadas, é o fato de estarmos na origem de algo, o fato de sermos o agente cuja ausência mostraria a restrição da matéria: sem o homem, rios correriam às cegas, seguindo combinações perfeitas de forças naturais; sem o homem, pedras seriam apenas pedras, e não prédios, pontes, objetos de arte. Sem nossa ação, a eterna repetição do mesmo.

Ainda assim, me pergunto: mas qual a “essência” da ação (desculpe ser platônico). Bom, a ação pode ter sua essência fora do homem (embora ainda dentro da cultura). Por exemplo, na tradição, no hábito, no costume. Pode estar nalgum imperativo categórico, nalguma ética transcendente ou universal à qual nos sujeitamos para haver o espaço da convivialidade (o certo, o errado)… A ação pode estar “dentro” do sujeito, em sua vontade, na sua disposição, personalidade, “desejo de potência”… A origem da ação pode ser instintiva, baseada em necessidade. Pode também ser religiosa – Deus seria contra a acédia, a apatia, a inação.

A ação pode estar ligada a um ideal. Ajo inspirado e orientado por esse ideal. A “perda de ideais” seria um caminho para o niilismo de tipo nefasto. Posso também agir como um “sujeito coletivo”: a ação política, esse tipo de agir profundamente humano, pelo qual se compartilha o destino comum, o fato de se viver junto de outros. Uma ação política teleológica, utópica.

A lista seria extensa. A lista do porquê agimos, do porque nos embrenhamos nesse trabalho de cultura pelo qual nos humanizamos (e pelo qual sobrevivemos – um “trabalho de natureza”, por assim dizer).

***

Agir implica em um trabalho de tornar-se adulto: agir, em vez de esperar que o outro aja por mim, ou então para que eu mesmo não me torne um objeto da ação do outro, passivamente. No primeiro caso, há certo desejo de fusão com o outro, protetor, provedor. A criança só começa a “sacar” que tem de correr atrás do próprio alimento quando a mãe não corresponde mais a um tipo de amor fusionado, de nutrição irrestrita.

Inação implica, também, num bloqueio da capacidade inventiva do sujeito, pela qual, criativamente, ele reinventa novos objetos para sua experiência. Quando inativo, o sujeito se torna um objeto junto a outros objetos. Pois um objeto é, precisamente, aquilo cuja ação não parte espontaneamente de si. O inativo vê tais objetos como “entidades dadas”, dispostas no mundo, e não como instrumentos maleáveis, pivôs da externalização de si em novos “possíveis”.


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