A sujeição da linguagem

Há uma passagem de um livro de R. Barthes em que ele discute o “fascismo da língua”. Segundo ele, o fascismo não consiste em impedir alguém de falar, mas em obrigá-lo a dizer algo. Ao falar, o simples ato de usar a língua já me insere em uma relação de poder. Assim, para Barthes, falar não seria apenas um ato de comunicação, mas também de submissão. Ao me expressar, já estou me sujeitando às estruturas normativas da minha língua. Soma-se, de um lado, a autoridade de quem faz uma afirmação e, de outro, o gregarismo de quem a repete.

A característica gregária da língua estaria presente nos próprios signos que a compõem. Um signo precisa ser reconhecido. O interlocutor que me ouve precisa validar o que estou dizendo — não apenas o conteúdo, mas também a forma. Sem esse reconhecimento, o circuito cotidiano da compreensão não se completa.

O mais interessante é que essa sujeição se aplica mesmo quando “falamos conosco”, no monólogo interminável de nossos fluxos de pensamento, no diálogo interno que constitui a consciência. Mesmo ali, na intimidade, nos sujeitamos. Há, internamente, uma “autoridade” que profere um determinado discurso (o “eu”?) e outra que o reconhece, conferindo-lhe alguma verossimilhança. Esse processo pode ganhar contornos obsessivos, paranoicos ou neuróticos, nos quais a repetição desempenha um papel crucial.

Portanto, para tentar escapar da sujeição, existem duas possibilidades: experimentar ou silenciar-se. De fato, o silêncio é uma forma de evitar as camisas de força embutidas na linguagem, com suas estruturas de poder e necessidade de reconhecimento pelo outro. Seria o silêncio, tanto interno quanto externo, uma forma de resistência? Já a experimentação consiste em explorar as franjas, as bordas e as fronteiras dos discursos institucionalizados.

O vento vai nos carregar

Desta vez gostaria de comentar um filme do diretor Abbas Kiarostami, conhecido pela trilogia Koker. Mas o filme em questão aqui é The wind will carry us.

Um grupo de amigos, que depois sabemos serem cineastas, vão até uma aldeia curda incrustrada no alto de uma planície para filmar um ritual local em torno da morte. O plot é simples assim. E “nada” ocorre em 118 minutos em que acompanhamos, quase que na mesma temporalidade do personagem, a estadia desses cineastas, em especial de um, Behzad. Exceto pura poesia.

Cena do filme The wind will carry us (1999)

A matéria do filme é o cotidiano: o transcorrer trivial da vida — nascer, alimentar-se, assear-se, trabalhar, morrer. E, claro, a presença majestosa da natureza. Uma natureza que, a julgar pelo comportamento dos habitantes do lugar, é parte intrínseca de sua percepção da vida. Isso chega a ser quase um incômodo para quem pensa pela lógica do sujeito-objeto, vendo o humano como algo apartado da natureza. Para essas pessoas, a morte é sempre um acontecimento assustador, como se estivesse à parte da vida, negando-a.

Por exemplo, Behzad, o personagem central (e único ator profissional no filme), sobe uma colina para pegar sinal de celular e, acidentalmente, encontra um fêmur humano em um cemitério improvisado. Ele pega o osso, compara-o com sua própria perna e, em seguida, coloca-o no painel do carro, como se fosse um objeto qualquer — um isqueiro ou um copo. Ninguém se chocou com isso. Nem ele. Mais adiante, o mesmo osso é jogado sobre um fio de água, próximo a um riacho onde cabras pastam. O osso, então, é levado pela correnteza, simbolizando a integração da morte com os vivos, numa harmonia que aparenta ser resignada, quase indiferente.

É evidente que não se trata de poetizar a penúria. Viver numa comunidade rural, como a retratada no filme, deve ser repleto de dificuldades. Não é um bucolismo burguês, tampouco uma visão romântica de alguém que observa de fora. Se refletirmos, nossas sociedades altamente tecnológicas, repletas de conforto e atalhos, também não escapam da mesma verdade final: a vida passa, a morte chega e, assim, o ciclo de reciclagem e renovação da vida continua. É um ciclo infinito, aparentemente sem propósito intrínseco. A diferença é que dispomos de subterfúgios, racionalizações, mediações e, como consequência, maior distanciamento — até mesmo uma ruptura — com a natureza e, por extensão, com a morte. Já não nascemos em casa; tampouco morremos lá. Nascemos e morremos em hospitais, onde os médicos são vistos como figuras apartadas de nós. Fetichizamos a ciência. Podemos até criticá-la, mas, no momento de desespero, na “hora H do dia D”, recorremos a ela como cordeiros assustados, em busca de milagres.

O filme, ao introduzir poesia no “deserto do real”, destaca o privilégio de estar vivo. Se o ciclo de nascimento, procriação e morte não possui propósito intrínseco, por outro lado, só os vivos podem contemplar a beleza da natureza. Nesse sentido, um dos melhores momentos do filme, para mim, ocorre quando Behzad encontra o médico da vila, que lhe dá carona em sua moto. Durante o diálogo, quando Behzad pergunta se “o outro mundo” — após a morte — não seria mais bonito, o médico, de maneira plácida e serena, responde: “Ninguém voltou de lá para nos dizer como é.” O que sabemos é que, ao fecharmos os olhos pela última vez, não haverá mais volta para cada um de nós, individualmente. Todas as maravilhas e belezas da natureza desaparecerão para nós. Essa é a verdadeira perda com a morte. Segundo o médico, a morte é muito pior que a pior das doenças.

Assim, ao longo de uma conversa casual entre duas pessoas numa moto, a “premissa” do filme se revela em forma de poesia. É surpreendente como verdades profundas são apresentadas com casualidade e até humor. Essas verdades são semeadas ao vento, voando, quem sabe, para germinar em algum outro lugar. Entre a vida e a morte, fica a ideia capturada por um conhecido ditado: “Melhor um pássaro na mão do que dois voando.” Na linguagem do médico, temos:

“Dizem que ela é linda como
uma huri do céu!
Mas eu digo…
que o suco da vinha é melhor.
Prefira o presente a
estas belas promessas.
Mesmo um tambor parece
melodioso à distância
Prefira o presente”

Cena do filme The wind will carry us (1999)

 

Fragmentos dispersos, 9

Vácuo de sentido. Não me recordo se foi Aristóteles quem disse que a natureza não suporta o vácuo, o nada. Aproveito-me da ideia. Quando seu trabalho não tem sentido, há um vácuo. E ele precisa ser preenchido. Alguns trabalhos são tão absurdos que não há, afetivamente, possibilidade de atribuir-lhes sentido. A menos que a pessoa se rebaixe ou racionalize. Invente histórias para si mesma. Mas não creio que isso dure muito. Outra possibilidade, diante do vácuo de sentido, é recorrer às drogas. Não por acaso, elas estão em contínua ascensão. Drogas que tornam o trabalho suportável ou que incrementam sua performance para atender ao frêmito de determinados setores ou ramos profissionais. Agora, pense na seguinte situação: um trabalhador que mal ganha o suficiente para sustentar sua família é obrigado, diariamente, a subir em torres de alta tensão — sozinho ou, no máximo, com um colega em terra firme. O tempo todo lidando com a altura e a eletricidade. Um corpo pendurado num cabo, frágil como uma pena num redemoinho. Suspenso. Pode-se até tentar atribuir sentido a isso (isto é, ressonância afetiva ou reconhecimento social). Mas tal esforço não resiste ao tempo, à repetição. Então ela aparece: a “pinguinha”, antes de subir. Estratégia para suportar. Drummond dizia que “todo mundo tem sua cachaça”. Pois é. Às vezes, literalmente.

O que é uma tese. Quem atua no mundo acadêmico precisa elaborar teses constantemente. Uma tese é, por vezes, uma marcha à ré: pensar algo de forma inversa ao que se acredita no cotidiano. Um exemplo disso foi uma pergunta feita por um psicanalista do trabalho, C. Dejours. Em vez de questionar “por que as pessoas adoecem no trabalho?”, ele inverteu a lógica: “Por que as pessoas não adoecem no trabalho (com tantas razões para isso)?” Et voilà. Dessa pergunta surgiu uma nova disciplina que investiga os efeitos da organização do trabalho sobre a saúde mental. Agora imagine, algumas décadas atrás, alguém formular a pergunta: “Fumar não estaria associado ao câncer de pulmão?” Hoje, isso soa banal. Mas, à época, a pergunta era disruptiva. Criava um corte, uma ruptura no conhecimento comum. Com o tempo, especialmente nas ciências humanas no Brasil, fomos ficando mais modestos. As perguntas passaram a se concentrar no como — por exemplo: “Como é ser mulher no trabalho?” Esse como reflete uma curiosidade sobre vivências. É o trunfo da fenomenologia, sem dúvida importante, pois o universal manifesta-se no singular. Porém, quando tal postura entra na engrenagem da indústria do saber (nossas universidades), carrega consigo um enfraquecimento do espírito. Ou uma resignação covarde. Ou, quem sabe, uma incrível chatice.

Perguntas sem resposta. Creio que foi Lacan quem sugeriu que o sujeito se estrutura em torno de uma pergunta. Uma inquietação que ele endereça ao Outro. Então, qual é a sua pergunta? Ela pode ser inconsciente. Talvez só se revele como vestígio, como metonímia, ou na forma de angústia, sofrimento, tédio, resignação ou ressentimento. Talvez, ao polir muito a prata, você comece a enxergar o metal. Sob camadas de oxidação, há uma penumbra que esconde o essencial, o valor genuíno. Boa parte do que ouvimos durante o dia é como essa camada escura sobre a prata. Toca você, mas não é o toque que gostaria de sentir. Há algo deturpado, turvo, opaco. Você espreita frestas e orifícios, tentando enxergar o que realmente se esconde atrás de cada véu. Alguns dizem que não há nada atrás de nada. Eu discordo. Achava, também, que tudo era apenas interpretação, versões possíveis. Não. Há uma pergunta. Disse recentemente aos meus alunos de pós-graduação: já pensaram se, num mundo ideal, sua tese fosse exatamente a consciência e a abertura para essa pergunta? Isso vale para a vida singular e, muito provavelmente, para qualquer fenômeno científico de interesse.

O abismo e o sublime

Ultimamente tenho assistido os filmes do diretor Robert Bresson. Dois deles me foram absolutamente impactantes. O primeiro, Au hasard Balthazar. O segundo, sobre o qual falarei algumas coisas aqui, é Mouchette (que é baseado num livro).

Mouchette é uma criança-adolescente que não encontra esperança ao seu redor. Sua situação é encapsulada de forma simbólica pela música que é forçada a cantar durante uma aula, uma composição atribuída, poeticamente, a Cristóvão Colombo: Vous qui n’avez plus d’espoir. Sur l’immensité profonde. Ses yeux s’ouvraient pour le voir.

Aqueles sem esperança, lançados na imensidão profunda do oceano, moldados por um horizonte infinito. Colombo suplica à sua tripulação desolada: apenas três dias. Três dias para que, com olhos bem abertos, possam contemplar a promessa de um novo mundo, de uma terra firme que os resgataria do vazio do oceano — o mesmo oceano que reflete um céu tão profundo e inescrutável quanto ele próprio.

Mas Mouchette nunca encontra terra firme.

A jovem é cercada pela desgraça. Sua mãe, à beira da morte, jaz na cama sob seus cuidados. Seu irmãozinho, ainda um bebê, depende completamente dela. Sem fósforos para acender o fogão e aquecer o leite, Mouchette improvisa, tentando aquecê-lo com o próprio corpo. Enquanto isso, enxuga as lágrimas de uma violência sexual recente (apenas a ponta do iceberg de sua miséria). Lágrimas que ela seca com o mesmo pano que serve de fralda para o bebê, este em prantos — de fome, frio, medo, ou simplesmente por estar encharcado de seus próprios dejetos.

Seu pai, alcoólatra, a agride. Seu corpo carrega as marcas do descaso: sujo, vestido com roupas desgastadas e sem lavar, ela é praticamente uma pária em sua comunidade. “Cara de rato”, dizem os meninos.

Quando sua mãe morre, Mouchette, a princípio, parece receber alguma atenção dos vizinhos daquela vila rural, conservadora, situada na França profunda. Mas a aparência de benevolência logo se desfaz, revelando as intenções reais. Para uns, Mouchette não passava de “uma vadia”; para outros, era uma imprestável. Não havia lugar para esperança em sua vida.

As badaladas do sino da capela, marcando a passagem cruel do tempo, são um dos poucos sons que permeiam sua jornada. Cada batida do sino, confesso, reverberava como um pássaro negro bicando minha carne em uma noite sombria.

Estou sendo vago, propositalmente, na descrição do filme. Para captar o fluxo de emoções que ele evoca, só mesmo assistindo por você mesmo.

Cena final do filme Mouchette (1967)

Tanto Mouchette quanto Balthazar se configuram como “animais sacrificiais” perante o público. Como modernos Pôncios Pilatos, fingimos que não é conosco, mas o diretor nos envolve irremediavelmente em uma trama onde o mal é destilado em detalhes — sua força ampliada pelo minimalismo dos cenários e pela crueza dos personagens.

Ambos protagonizam uma espécie de testemunho do colapso humano. Contudo, enquanto Balthazar permanece passivo, aceitando o peso de sua condição, Mouchette ainda tenta exercer algum tipo de agência, mesmo que limitada e dolorosamente expressa na forma de uma violência reversa.

Essa tentativa de reação, porém, é tragicamente desproporcional. A revolta de Mouchette, em comparação às forças esmagadoras que a cercam, é como pétalas de rosa diante das balas de canhão que a atingem incessantemente.

Cena final de Au hasard Balthazar (1966)

O sentimento mais coerente, se é que podemos usar essa palavra em algo tão profundamente contraditório, talvez seja a perplexidade — uma espécie de reverência ambivalente diante da coexistência do abismo e do sublime. Sentir-se esmagado entre a aridez da imanência, com suas lágrimas e crueldades, e a vastidão da transcendência, que só um olhar vivo pode alcançar, é habitar um paradoxo essencial.

É a tensão entre a finitude e o infinito que nos define como humanos. Podemos ser consumidos pela desesperança ao encarar a imanência brutal do mal — tanto na ação quanto na omissão — ou, paradoxalmente, nos maravilharmos com a revelação de algo maior, algo que insiste em surgir mesmo na escuridão mais densa.

Talvez o sentimento seja o da angústia sagrada, uma dor que não quer fugir, mas que também não se resigna. É o reconhecimento da graça e da tragédia coexistindo, como se o mesmo gesto que cria pudesse, ao mesmo tempo, destruir. Afinal, viver é ser lançado nesse entrelugar — onde contemplamos o belo e somos feridos pelo feio, onde buscamos sentido no vazio.

A coerência aqui, se houver alguma, talvez esteja em acolher o desconforto como parte do mistério, aceitando que não há resposta simples para a dualidade que nos atravessa. Em última instância, só o ato de perguntar já nos faz dignos dessa transcendência que somos capazes de entrever.

Experimentos mentais, 5: a panela

Ele trabalhava fazia algum tempo numa siderúrgica. Era responsável pela limpeza da divisão de alto forno da usina. Era um trabalho extremamente exigente, pois além de conviver em um ambiente com alta temperatura, ainda tinha o barulho, a poluição visual e outros imensos riscos ocupacionais. Tinha de tomar muito cuidado. Já fazia esse tipo de trabalho há quase duas décadas. Portanto, não era mais um novato, nem em idade nem em experiência laboral. Ao longo desse tempo, porém, sua vida havia mudado muito. Não só fora da usina, mas internamente, no seu coração. Ele não sabia explicar muito bem quando, como nem por que começou a sentir um peso enorme dentro de si. Quando começou nesse ramo de atividade, a despeito das agressivas condições de trabalho, ele se sentia leve, ágil, capaz de identificar quaisquer problemas e de se antecipar em sua solução. Não era um empregado absolutamente exemplar, nem brilhante. Mas também não era dos piores. No início, tinha certeza de que, mesmo não sendo reconhecido como gostaria, ele estava fazendo sua parte. Mantinha seu setor o mais limpo e organizado quanto possível. Também no início, tinha um tipo de frio na barriga quando chegava ao trabalho. A siderúrgica, embora fosse um lugar inerentemente hostil, despertava certo temor nele. Não sabia explicar, mas era uma sensação de entrar dentro de um monstro, e de se sentir pequeno em relação a ele. Sentia-se ao mesmo tempo fascinado e amedrontado por esse monstro. Bom, na prática, havia motivos para amedrontar-se. Ao longo de seus anos de trabalho havia testemunhado muitos acidentes. Alguns fatais. Bom, mas isso já faz tempo. Agora, nada disso parecia importar muito mais. Tinha algo mais sério para se preocupar, esse peso interno cada vez maior dentro si. Não entendia a razão desse peso crescente. Não havia mudado nada em sua rotina diária. Mas era óbvio para si mesmo que algo estava muito fora do lugar. Ele era movido pela energia de seus músculos, que por sua vez ele sabia que vinha dos alimentos que, mesmo sem vontade, tinha de comer todo dia. Mas só isso. Quanto ao resto, ele sentia como se não fosse mais senhor de si mesmo. É engraçado, ele pensa. Pois realmente não conseguia identificar nada de extraordinário. Nada tinha ocorrido de diferente com ele. Mesmo assim, o peso foi surgindo como a sombra do fim de um dia – você está deitado na cama, diante da janela, meio acordado, meio adormecido. Num momento está claro, noutro já há uma penumbra. Entre um cochilo e outro, quando você de fato recupera a consciência já está noite. Foi assim com ele. E o peso gera mais peso. Há uma inércia, um momento nesse peso: ele tende a se retroalimentar. Nunca chegou a falar disso para ninguém. Não era casado, não tinha filhos, e era de muito poucos amigos. Tinha um ou outro colega com quem esporadicamente trocava umas palavras. Quando não estava no trabalho, costumava ficar em casa deitado num sofá. Até receber entregadores do supermercado havia se tornado uma tarefa penosa para ele. Pensava o tempo todo nesse peso, mas sem pensar. Quer dizer, ele sabia que estava pensando sobre o peso, mas pensava em termos do peso, por assim dizer. Pensava com o peso. Então, ele não se separava do problema. E o peso aumentando mais e mais. No trabalho, já não conseguia fixar a atenção em algo fora de si. Seu corpo, por sua vez, continuava fazendo o serviço de sempre. No fundo, sabia que isso era um imenso risco para ele naquela ocupação. Afinal, há limites para o automatismo do corpo na execução de uma tarefa. Em certa ocasião, sem falar exatamente desse peso obscuro, comentou com um colega que não se sentia mais tão empolgado sobre o trabalho. Esse colega lhe sugeriu que participasse de uma reunião do sindicato. Acabou indo em uma. Ouviu, mas era como se não estivesse presente. Ele não era uma pessoa de confrontos. Nem de embates, tampouco alguém apaixonado por alguma ideia ou por alguma luta coletiva. Saiu da reunião ainda mais pesado. E foi então que, durante um expediente como muitos outros, sentiu algo tão absurdo, um insight tão cortante, que involuntariamente até deu um recuo para trás no ar. Caiu como um raio sobre ele a certeza de que ele era um bloco de minério! Afinal, ele estava numa siderúrgica, então, a metáfora veio como algo natural. E assim, do nada, tudo começou a fazer sentido. Ele havia se dado conta de que se metamorfoseara num pedaço de ferro gusa. Nunca havia testemunhado em si uma epifania tão avassaladora como essa. Toda a dúvida e os desarranjos de sua vida interior caíram no lugar. Exceto por um detalhe: o ferro gusa deveria estar dentro da panela de gusa, onde então o ferro seria separado das impurezas pelo fogo inescrutável. E foi assim que ele desapareceu na panela, sem deixar o menor traço, sendo logo mais incorporado para sempre numa placa pura de ferro.

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Diálogos, 1

Você tem alguma certeza?

Sim. A primeira: não sou mestre de mim mesmo; não estou no controle. A segunda: posso morrer a qualquer momento. E minha última certeza: não falta nada no mundo.

Mas o fato de todos nós morrermos um dia depende de termos certeza? Faria alguma diferença?

No desfecho final, nenhuma diferença, óbvio. Mas faz diferença para mim mesmo. Ter certeza da minha mortalidade. Pois somente quem não ama é que deseja viver. Quem não ama se apega à vida.

Então você está me dizendo que aceitar a morte depende de ser capaz de amar?

Todo mundo pensa que, ao amar alguém ou algo, não vamos jamais querer morrer. Uma filha, por exemplo, te faz se apegar a vida, certo? Uma carreira reconhecida? Uma obra exuberante? Não faz sentido para a maioria das pessoas dizer o inverso. Porém, o amor causa um adensamento imprevisível da existência. Não dá para se apegar mais à existência, pelo menos não em seu sentido corriqueiro. Amar é, pois, morrer. Pelo menos uma parte de você morre. Por isso, pessoas que não amam têm a liberdade mental suficiente para investirem tempo e energia em simplesmente continuarem vivendo. A vida é fácil para elas. Podem ser grandes executivas, empreendedoras, e sobretudo políticas e burocratas.

Então você acha que não falta nada no mundo? Essa é tua outra certeza?

Não, não falta nada. Pelo menos quando consideramos tudo o que é espontâneo no mundo – e não as coisas humanas, necessariamente. Cada detalhe do mundo, não importa onde nem o que, é perfeito em sua própria natureza. Pois pense: todas as obras e manifestações mais sublimes do espírito humano já estavam contidos no mundo. Mas somos disciplinados a pensar na vida humana como falta. Há mesmo uma estética da falta atravessando muitas perspectivas, por exemplo a psicanálise. O ser é definido com relação ao que lhe falta, e pelo que ele se põe em movimento. Cada detalhe de coisas que estão diante da pessoa é comparado e julgado contra um padrão ideal, sempre gerando um hiato de sofrimento e alienação em relação ao presente. Esse tipo de postura criou uma versão diminuída do ser humano, e de quebra ainda ajuda a promover a economia.

Não considera que tudo isso que está dizendo, essas tuas ‘certezas’, possa estar simplesmente na tua cabeça?

Se você abrir e ler todos os livros do mundo, ou se conseguir conversar com todos os sábios ainda vivos, e ao cabo disso tudo vier para mim e disser que encontrou algo que contradiga o que estou te dizendo, ainda assim não mudarei minha opinião. E te digo o motivo: a realidade não é fixa. Ela é uma versão provisória do real. Pois o real propriamente dito será sempre inacessível para nós humanos, por mais que você me mostre meu cérebro iluminando em uma ressonância magnética. Você não vai extrair dali nada de mais real do que as palavras que estou usando para criar minhas certezas.

Você não estaria tomando a realidade pelas tuas palavras, palavras essas pelas quais você expressa essas tuas certezas?

As palavras, especialmente as bem articuladas, são âncoras provisórias em que nos agarramos para não ficarmos totalmente à deriva. Tome tudo de uma pessoa. Se ela ainda tiver uma ou outra palavra para costurar seu disforme caos interno, então ela estará relativamente protegida da escuridão, do fracasso, da perda de tudo e de todos. Palavras são como as folhas secas sobre as quais formigas atravessam um rio. O desafio, porém, é se você realmente acredita nelas. Se não acreditar de verdade nelas, então nem como folhas elas te servirão. Vão se tornar cascas vazias onde você vai se esconder como um covarde armado.

O ovo que chocou

O que é uma pessoa? Esta é uma pergunta que, na aparência, parece banal. Uma pessoa é, claro, um ser vivo. Um corpo. A materialidade deste último é inegável e, por si só, é condição necessária, embora não suficiente, para que haja uma pessoa. Primeiro, porque esse corpo precisa ser “montado”. Refiro-me a “montar” no sentido de um cavaleiro que monta sobre um cavalo. Há, nesse gesto, o assumir controle sobre o cavalo. Sei que esta metáfora pode ser capciosa, pois, de algum modo, poderia sugerir que nosso corpo precisa ser dominado (a mente dominando o corpo etc.). Mas considere a metáfora de outra forma: montar é assumir. Como uma modelo em uma passarela, que precisa incorporar, vestir, empossar-se, tomar conta de um personagem do qual seu corpo será o veículo, o signo.

Segundo, o corpo precisa ser colocado em situações. Precisa interferir, agir, coexistir, mas essencialmente entrar em contato com o mundo físico e social. Ou seja, o corpo, e por extensão a pessoa, é um meio de ação, uma forma de mediação com a realidade. Interessantemente, nosso corpo é um duplo: mediação entre o “eu” e o mundo, mas também entre o sujeito e si mesmo – como em “eu me vejo”. Quem é esse “eu” que vê? Ele vê o “mim”. Mas o que, ou quem, é esse “mim”? O “eu” vê o “mim” em um espelho, digamos. Nosso corpo é aquilo que gostaríamos de ver? Por que nem sempre conseguimos assumir o corpo que temos? Em outras palavras, por que não conseguimos “montar” nosso corpo? Por que o “eu” está em oposição ao “mim”? Enxergamos uma coisa (um objeto real no mundo, nosso corpo), mas vemos outra no lugar. Esse exemplo evidencia a duplicidade da experiência da pessoa na sua própria corporeidade – mas isso não se limita a ela, obviamente.

Uma pessoa é também uma projeção. Uma projeção de inúmeras possibilidades a serem realizadas. A pessoa é uma potência. E é aqui que gostaria de chegar. Uma pessoa pode ser como uma cesta de inúmeros ovos que podem ou não chocar. A trajetória em que estamos no momento não é nada além de uma possibilidade realizada, dentre tantas outras que não o foram (os muitos ovos que não chocaram) mas que ainda existem no cesto, como potências.

E o que ocorre quando o número de ovos não chocados cresce tanto que a pessoa prefere negar-se a si mesma em vez de empreender em uma direção específica? Ela deixaria de ser uma pessoa? Ou então, quando diz para si mesma: “Todos os ovos têm a mesma probabilidade de chocar. Além disso, um ovo é completamente intercambiável por outro. Qualquer um poderia ocorrer. Tanto faz.”? Com pensamentos assim, a pessoa conclui que sua trajetória atual é tão aleatória e sem valor relativo que poderia muito bem não ter ocorrido. O mundo de possibilidades transforma-se, então, em um mundo niilista. Um mundo de indiferença.

Aqui fica uma reflexão: se você está em uma certa trajetória de vida, ela é, com certeza, um dos ovos que chocaram. Poderia ter ocorrido tudo de forma diferente? Incrivelmente diferente? Sem dúvida. E, se examinar a fundo sua trajetória, descobrirá que, por trás das “grandes decisões” da sua vida, houve dezenas de outras pequenas decisões banais e impensadas (ou pensadas com justificativas duvidosas) que, juntas, levaram à grande decisão.

Você pode viver outras infinitas vidas? Aqui as coisas se complicam. Primeiro, porque talvez não tenha tempo suficiente, independente da sua idade cronológica. Ou energia, inclusive física. Segundo, porque a outra trajetória que viesse a escolher cairia no mesmo problema da anterior: poderia ter sido diferente. De um lado, o excesso de confiança em si mesmo merece escrutínio. Pessoas assim podem estar escoradas em ideais e desejos alheios, nos quais baseiam-se tão intensamente que acabam sendo “montadas” por eles, e não o contrário. Por outro lado, pessoas extremamente inquietas, autocríticas e permanentemente problematizadoras de si mesmas podem agir como apostadores frustrados: sabiam que estavam fazendo uma aposta – e uma aposta pode dar certo ou errado –, mas, quando perdem (no nosso exemplo, quando materializam uma trajetória concreta), ficam inconformadas.

Uma cena do filme Our Sunhi, do diretor Hang Sang-soo, cujo diálogo entre esse dois personagens inspirou este post, especialmente os próximos parágrafos. Credito da imagem aqui.

Como descobrir quem você é? Pegue sua trajetória atual e vá fundo, cave profundamente, vá até o fim, com tudo, com força. Se, nesse processo, você descobrir que algo deu errado, então você saberá quem você é, qual seu limite e o quão verdadeiramente “montado” você está nessa trajetória, ou se, na verdade, foi simplesmente lançado nela como uma moeda jogada ao ar, dependente da pura aleatoriedade. Uma pessoa deveria ser mais do que uma aleatoriedade. Mais do que um mero acaso. Embora a vida seja exatamente isso: uma aleatoriedade que se materializou, deu certo e se firmou como algo que, retrospectivamente, dizemos que valeu a pena. E que fique registrado, apenas para efeito de argumentação: se não houver eternidade, onde a pessoa viveria para sempre tal como é hoje, então é isso que temos: uma única vida.

Agora, pense: diante da última frase, de que só temos uma única vida, qual é a recomendação mais comum? A de que devemos nos reinventar sempre. De que a mudança é a regra, a única coisa “permanente”. E aí, no final da vida, com o intuito de justificar essa visão rasa e cacofônica, típica de uma época volátil como a nossa, a pessoa diz que “viveu intensamente, com muitas experiências”. Sabe o que eu acho? Falta o oposto: gente que não esteja o tempo todo querendo mudar, se reinventar, se “desconstruir”, etc. Gente que vá fundo em algo. Que se radicalize nesse algo e se descubra verdadeiramente no processo. Não precisamos de infinitos ovos para fazer uma omelete saborosa e nutritiva.

Feminilidade

Ultimamente, quando possível, tenho tentado assistir a filmografia do diretor sul-coreano Hong Sang-soo. Em algum lugar, vi que ele é chamado de o novo Ozu. Não sei se isso faz sentido, exceto que cheguei até ele por conta dessa associação, já que gosto muito do Ozu.

Até aqui, os filmes que assisti me causaram grande impacto, mas nenhum deles chegou perto de Virgin stripped naked by her bachelors (2000). Possivelmente, isso se deve à atuação da personagem central, em torno da qual a narrativa é estruturada – quer dizer, o filme ocorre da perspectiva da mulher. O mesmo ocorre em outros filmes igualmente brilhantes do diretor, em particular Nobody’s Daughter Haewon (2013), no qual a protagonista se envolve com um homem inseguro, incapaz de sustentar seu desejo.

Cena do filme Virgin stripped naked by her bachelors (2000)

Gostaria de deixar algumas impressões sobre Virgin Stripped. Como mencionei, a atuação de Lee Eun-ju, que interpreta Soo-jung, é excepcional. Foi só mais tarde que descobri que ela havia se suicidado aos 24 anos, e já se passaram exatos vinte anos desde sua morte. Isso me causou uma tristeza profunda.

De forma resumida, Soo-jung é uma roteirista para uma TV a cabo local. Ela é muito próxima de um produtor, e por meio dele, conhece um amigo rico, dono de uma galeria de arte. Esse amigo, Jae-hoon, se sente imediatamente atraído por ela. Atração essa que ele expressa de forma clara. No entanto, Soo-jung também nutre sentimentos por Young-soo, o produtor. Esse triângulo amoroso é contado através de um recurso frequentemente utilizado pelo diretor: a repetição de cenas, que oferece diferentes perspectivas sobre eventos semelhantes.

Soo-jung é uma mulher delicada, sensível e, em comparação aos homens à sua volta, mais madura. Além dos dois já mencionados, há também seu irmão e um amigo de longa data. Em sua essência, ela carrega uma feminilidade profunda, uma estética que pode ser interpretada de diferentes maneiras, dependendo do olhar do espectador. Um exemplo disso ocorre quando ela está na cama com Jae-hoon, que, sendo um mulherengo, a chama pelo nome de outra mulher. Naturalmente, Soo-jung fica abalada e se afasta. Jae-hoon, desesperado, sai à sua procura, e o vemos perdido nas ruas cinzas de uma cidade indiferente, tomado por um choque existencial. No entanto, na mesma cena, ela o reencontra e, de maneira surpreendente, pega sua mão. Nesse momento, parece que ele foi ressuscitado, resgatado de um abismo de alienação emocional, e foi a mulher que lhe ofereceu a chance de redenção, tirando-o da paisagem desolada e sem vida.

Os homens no filme, mesmo que não intencionalmente, acabam sendo agentes de violência contra ela, como no exemplo citado. Não se trata de violência física, mas da violência proveniente de homens perdidos em si mesmos. Eles crescem fisicamente, tornam-se fortes, conquistam status, mas nada disso os impede de serem, de certa forma, inseguros. A insegurança parece estar no coração do homem. Nos filmes de Hong, homens inseguros sempre se deparam com mulheres resolutas. Como é dito em outro de seus filmes, “a mulher é o futuro do homem” (Woman is the future of man). A feminilidade em Soo-jung, com sua serenidade, serve como bússola e guia em meio à névoa de uma masculinidade indecisa, taciturna e, muitas vezes, alcoolizada. Parece que os homens precisam de bebida para lidar com as complexidades sociais e afetivas.

O apego à vida

Fazia quatro dias que estava de pé em cima do telhado de um rancho. Foi levado até ali por puro instinto e sorte. A água do rio mais próximo subiu tanto que invadiu centenas de casa pelo caminho, incluindo a sua, da qual foi arrastado por um nado improvisado. Durante quatro dias ficou sem comer, sem beber e sem a menor chance de relaxar. Se descuidasse minimamente, caía sobre a água. E, caindo, muito provavelmente acabaria morrendo afogado. Quatro dias de músculos tensos, de dor nas quatro patas, cada uma delas com uma ferradura. Tais ferraduras, que em terra serviam de apoio firme, ali em cima do telhado eram uma ameaça de morte, pois tornavam tênue o ponto de contato com o telhado. Equilibrava-se sobre a parte firme deste último, composta por uma única madeira estreita e comprida. Não bastasse o malabarismo, também não parava de chover. Assim, encharcado, com fome, com dor e sede, ele permaneceu sobre o telhado. Ninguém veio em seu socorro, pelo menos não no início. Havia, como todo cavalo, sido projetado para desbravar a terra aberta, não para se manter rígido sobre um telhado, um ponto tênue que o segurava na fina navalha da vida. Portanto, não entendia absolutamente nada do que estava acontecendo. Só sabia que precisava ficar parado. Não podia dormir. Quatro dias de agonia, espanto, medo, paralisia instintiva, equilíbrio fatal. Fitava o entorno com seus olhos doces, obedientes a um mestre agora ausente. Encarava resignado a água. Via algumas pontas de casas despontando aqui e ali, elas também tentando ficar emersas. Os restos de alguns postes de luz. Virá alguém em seu socorro? Ele obviamente não poderia responder a esta questão. Mas sua intuição animal o fazia aguentar. Assim como o absurdo o arrancou do chão firme e da vida cotidiana de trotadas e trabalho duro, o absurdo o mantinha no cume do telhado. Naquele momento, sentiu-se profundamente sozinho. Abandonado. Um plácido, profundo e resignado sentimento animal. Não obstante, não saberia fazer outra coisa que não permanecer vivo. Manter sua vida, não importa a razão. Não era por saudade de seu antigo dono, nem por amor às pradarias em que trotava. Nem por apego a outros companheiros cavalos. Nem pelo capim que comia todo dia. Ou pela longa vida que ainda poderia ter pela frente. Era simplesmente porque não lhe parecia natural, instintivo, se deixar engolfar pela água suja. Não havia nele nenhum vestígio de impulso ao nada, à morte. Poderia ter morrido, é claro, mas se isso tivesse acontecido não seria por sua própria vontade. Estava agarrado à vida. Nada mais importava. Seu corpo simplesmente parecia saber o que fazer. Da água suja e mortal precisava escapar. Subir, escalar, ir até o último refúgio possível, fosse onde fosse, e ali permanecer. Sua permanência era sua prova de amor à vida, o amor animal, puro e profundo. Abaixo de si, o terror, a destruição.

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