Sobre desistir – parte 1

Na nossa cultura, desistir raramente é visto de forma positiva. A persistência é amplamente valorizada e exaltada como virtude. Quando alguém desiste de algo, as explicações costumam apontar para falta de força de vontade, caráter, ânimo, “estamina” ou coragem. O desistente é frequentemente percebido como fraco e pouco confiável.

Reconheço que, em determinadas situações, desistir pode ser prejudicial. Por exemplo, quando o objetivo é tornar-se pianista, é inegável que será preciso enfrentar muitos desafios. Essa escolha, por si só, já carrega uma exclusão: ao decidir seguir esse caminho, você voluntariamente aceita abrir mão de diversas gratificações imediatas em troca de uma possível recompensa futura. Um obstáculo – ou mesmo uma série deles – não deveria, por si só, ser motivo para abandonar um propósito.

O problema é que, em geral, tomamos decisões sem saber o que enfrentaremos pelo caminho. Voltando ao exemplo do pianista, no momento da decisão, imaginamos uma plateia extasiada aplaudindo nossa performance magistral. O resultado idealizado, antecipado no instante da escolha, é muitas vezes o combustível inicial. Porém, quanto mais fantasioso for o objetivo, maior pode ser a frustração ao lidar com a realidade. Assim, uma das razões para desistir é perceber que o caminho é difícil, tedioso, ou exaustivo demais para ser trilhado.

Persistir, por sua vez, é também uma forma de renúncia. Mas renunciar não é o mesmo que desistir. Renunciar significa aceitar os sacrifícios inerentes a uma escolha, adiando recompensas que, aliás, podem nem se concretizar. Afinal, o futuro é incerto, o sucesso não depende apenas de esforço, e as idealizações frequentemente sucumbem à dura realidade. Desistir, por outro lado, é algo completamente diferente.

Desistir implica abandonar uma decisão já tomada. Esse ato pode ocorrer em diferentes níveis: desistir de uma carreira, de um relacionamento, de um sonho. Também existem desistências cotidianas, como abandonar uma fila no supermercado ou deixar de procurar promoções entre diversas lojas. Em casos mais extremos, pode significar desistir de viver.

A desistência muitas vezes envolve cálculos racionais de custo-benefício: investimento versus retorno. Mas há algo mais profundo no ato de desistir. Trata-se da relação com o que realmente desejamos. Quando conhecemos nosso desejo, somos capazes de justificar, para nós mesmos e para os outros, o sofrimento temporário em prol de um bem maior no futuro – como o exemplo do pianista renomado. Esse mecanismo também é evidente nas religiões, onde pessoas renunciam a prazeres terrenos em busca da promessa de recompensas divinas.

De forma semelhante, persistir – o oposto de desistir – é sustentado pelo desejo. A questão central, então, é compreender o sentido do que se deseja, e não apenas seu significado social. Essas dimensões, no entanto, estão profundamente entrelaçadas. Pensemos no caso de muitos jovens brasileiros que aspiram ser médicos. Será que esse desejo é puramente pessoal? Difícil acreditar. Desde cedo, esses jovens são expostos a ideais e valores que exaltam a medicina, muitas vezes transmitidos pela família, pela mídia ou pelos pares. Com o tempo, os significados sociais associados à profissão vão se internalizando e se confundindo com o desejo individual. Em outras palavras, o que começa como uma expectativa externa pode se transformar na própria vontade do sujeito, carregando nuances particulares.

Sob a perspectiva do desejo, desistir significa abrir mão de uma escolha que parecia pessoal. Então, por que desistimos? Uma possibilidade é que o desejo que julgávamos nosso era, na verdade, o desejo de outra pessoa – dos pais, por exemplo. Nesse caso, desistir significa abandonar não apenas uma decisão, mas também uma parte de si mesmo que antes parecia central à sua identidade. Trata-se de um ato que exige enorme coragem, muito diferente da visão estereotipada de fraqueza frequentemente associada à desistência.

Desistir, nesse contexto, não é simplesmente recuar, mas abrir mão de certezas em troca de possibilidades incertas. Afinal, apoiar nossas escolhas no desejo dos outros oferece uma forma de certeza – ainda que apenas aparente. Os significados, que são herdados socialmente, tendem a ser mais estáveis e definidos do que os sentidos, que precisam ser construídos individualmente, comportando risco e profundas incertezas. Desistir pode ser um gesto profundo e transformador, capaz de desafiar convenções culturais e provocar uma reflexão sobre o que, de fato, constitui o próprio desejo. Na essência, discutir a desistência é discutir o querer – ou o não querer.

O jumentinho branco

Hoje, passando pela rua onde moro, vi um pequeno jumentinho branco atrelado a uma carroça. Isso é algo comum na paisagem da cidade. Quase sempre, fico atraído pelo animal. Gosto de observar sua expressão, que, em geral, transmite uma paciência inabalável. Hoje, ele estava ali, numa rua escura, parado, esperando seu dono buscar algo. Parado, calmo, passivo, obediente. Tão pequenininho, branco, numa rua escura, atrelado à carroça. Sabe-se lá de onde ele veio, sabe-se lá para onde vai. Pode ser perto, pode ser longe (mais provavelmente, longe).

Fico imaginando quando ele nasceu. Pelo que percebo, não é comum ver jumentos brancos pelas ruas. Mas esse jumentinho branco, quando nasceu, certamente chamou a atenção. E hoje, ao vê-lo na rua escura, não havia como não notar, nem como não se surpreender com o contraste: a rua escura, suja, esburacada, e o jumentinho branco, atrelado à carroça, passivo, obediente, resignado, com aquele olhar vazio, sem emoção, exceto pela aceitação do momento.

Logo me lembrei do jumentinho cinza-escuro e encardido do filme Balthazar, de Robert Bresson, sobre o qual já mencionei em outro post. Balthazar é o dócil animal que passa de dono em dono, de situação em situação, ora recebendo carinho e amor, ora (mais frequentemente) sofrendo ódio gratuito, agressão ou abandono. O ser humano faz quase nada, exceto usar o animal como instrumento, uma espécie de trator movido a sangue e músculo. O que podemos dizer sobre um humano que usa outro ser vivo como ferramenta? De certo modo, ele também se torna um objeto, tratando sua própria vida como um processo instrumental: pegar caixas, colocá-las na carroça, levar para um lugar X, despejá-las lá, cobrar por isso. E o ciclo se repete infinitamente, movido pela necessidade de sobrevivência.

Do ponto de vista moral e ético, sei que tratar um ser vivo como objeto só é possível porque um dos entes envolvidos domina o outro. O jumento não foi “criado” pela seleção natural com a “intenção” de ajudar o ser humano a transportar cargas. O uso pelo ser humano não é a razão de sua existência. Isso aconteceu porque, dotado de inteligência, o ser humano descobriu que o jumento é resistente, obediente, manso, passivo, resignado. Não exige grande treinamento, se é que exige algum. Basta mantê-lo preso, usar o chicote para “comunicar” direções e paradas, alimentá-lo e colocá-lo para trabalhar.

No filme de Bresson, Balthazar revela muito mais sobre os humanos que interagem com ele do que sobre si próprio. Não há como não traçar um paralelo entre Balthazar e a figura de Cristo. Imagine Cristo carregando a cruz, enfrentando seu calvário, sendo ridicularizado pelos passantes ou até açoitado. E, depois de toda a humilhação, sendo sacrificado na cruz. Nos evangelhos, não há vestígios de que Cristo estivesse com ódio das pessoas que o maltratavam, nem de autocomiseração ou ressentimento. É como se ele simplesmente tivesse de passar por aquilo. Para alguns, isso seria sinal de fraqueza, de ser um “cordeirinho” diante do mundo; para outros, é a expressão de uma coragem inabalável. Algo semelhante a Sócrates, que aceitou seu destino sem resistência. E a Balthazar, que, na foto que mencionei em outro post, aparece em seus últimos momentos de vida. Ele fora baleado porque seu “dono”, na ocasião, o usava para contrabandear mercadorias e foi interceptado pela polícia. Na imagem, Balthazar está cercado por cordeiros.

Alguém, como eu, passa e vê o jumentinho; ao vê-lo, pensa nas coisas que pensei. Outra pessoa poderia ver o carroceiro e enxergá-lo como um sobrevivente, catando os restos pela cidade para manter a si mesmo e à sua família vivos – vítima da exclusão social, econômica e política de um país à margem do capitalismo. Antigamente, quando essas duas interpretações surgiam em minha mente, eu me culpava por tê-las. Achava que deveria me concentrar apenas no carroceiro como objeto de minha inquietação, e mais, deveria atribuir a isso uma consciência política, acompanhada de uma força para “fazer algo”. Hoje, não sinto mais essa culpa. Hoje me deixo afetar pelo que posso ser afetado. Hoje tento não me culpar pelo que sinto. Somos muitos no Brasil; somos muitos aqui, nesta cidade onde vivo. Se cada um sentir algo, seja pela parte que for, isso já seria o mínimo necessário para mudarmos nossa visão de vida, do mundo, das pessoas e dos outros animais.

O cachorro

Assisti ao filme The heart of a dog, de Laurie Anderson, lançado em 2015. Nele, há uma menção à pintura abaixo, de Goya. Tudo o que diz respeito a animais, especialmente cachorros, toca algo profundamente emocional em mim. Neste filme-documentário, o cachorro ocupa um lugar especial, servindo como ponto de partida para reflexões sobre a vida, a morte, o sentido da realidade e o lugar do amor. A narrativa é conduzida pela voz da própria diretora, que entrelaça suas experiências de vida com esses temas. O filme se encerra de forma tocante, ao som da belíssima música de Lou Reed, Turning Time Around.

Francisco de Goya. The dog [1819-1823]

Há quem interprete essa pintura como a representação de um cachorro afogando ou afundando em areia movediça. Percebendo seu fim inevitável, solitário e desamparado, ele olha para cima, talvez na esperança de alguma ajuda. De fato, os vínculos entre cães e humanos remontam às profundezas do tempo. Assim, talvez ele aguardasse a providência de algum humano ou deus que viesse resgatá-lo. Vou prosseguir com as projeções e interpretações desta imagem.

A parte inferior da figura, mais escura, representa a terra, o mundo da vida. Já o vasto céu, de um dourado que se estende ao infinito, simboliza o etéreo, a impermanência, mas também o absoluto, a vastidão do Universo. A delicada cabeça do cachorro, quase mínima, é o ponto de interseção entre o imanente (a terra, o concreto) e o transcendente (o céu, o infinito).

A vida, no fundo, não é exatamente isso? Nosso corpo é apenas uma membrana, um ponto de consubstanciação provisória entre o pouco de matéria que nos permite tangibilizar o espaço e preenchê-lo, e o nada de onde viemos e para onde retornaremos. A própria Terra — o planeta, neste caso — não é senão outra frágil membrana desempenhando a mesma função. Não conheço as proporções matemáticas exatas, mas arrisco dizer que a materialidade da Terra, como ponto de massa situado no espaço e no tempo, é proporcionalmente ínfima em relação ao Universo, assim como nosso corpo (nossa massa) é ínfimo quando comparado à Terra.

O fastio do ‘homem moderno’

Gravura Melencolia I, de Albrecht Dürer (1514)

A sujeição da linguagem

Há uma passagem de um livro de R. Barthes em que ele discute o “fascismo da língua”. Segundo ele, o fascismo não consiste em impedir alguém de falar, mas em obrigá-lo a dizer algo. Ao falar, o simples ato de usar a língua já me insere em uma relação de poder. Assim, para Barthes, falar não seria apenas um ato de comunicação, mas também de submissão. Ao me expressar, já estou me sujeitando às estruturas normativas da minha língua. Soma-se, de um lado, a autoridade de quem faz uma afirmação e, de outro, o gregarismo de quem a repete.

A característica gregária da língua estaria presente nos próprios signos que a compõem. Um signo precisa ser reconhecido. O interlocutor que me ouve precisa validar o que estou dizendo — não apenas o conteúdo, mas também a forma. Sem esse reconhecimento, o circuito cotidiano da compreensão não se completa.

O mais interessante é que essa sujeição se aplica mesmo quando “falamos conosco”, no monólogo interminável de nossos fluxos de pensamento, no diálogo interno que constitui a consciência. Mesmo ali, na intimidade, nos sujeitamos. Há, internamente, uma “autoridade” que profere um determinado discurso (o “eu”?) e outra que o reconhece, conferindo-lhe alguma verossimilhança. Esse processo pode ganhar contornos obsessivos, paranoicos ou neuróticos, nos quais a repetição desempenha um papel crucial.

Portanto, para tentar escapar da sujeição, existem duas possibilidades: experimentar ou silenciar-se. De fato, o silêncio é uma forma de evitar as camisas de força embutidas na linguagem, com suas estruturas de poder e necessidade de reconhecimento pelo outro. Seria o silêncio, tanto interno quanto externo, uma forma de resistência? Já a experimentação consiste em explorar as franjas, as bordas e as fronteiras dos discursos institucionalizados.

O vento vai nos carregar

Desta vez gostaria de comentar um filme do diretor Abbas Kiarostami, conhecido pela trilogia Koker. Mas o filme em questão aqui é The wind will carry us.

Um grupo de amigos, que depois sabemos serem cineastas, vão até uma aldeia curda incrustrada no alto de uma planície para filmar um ritual local em torno da morte. O plot é simples assim. E “nada” ocorre em 118 minutos em que acompanhamos, quase que na mesma temporalidade do personagem, a estadia desses cineastas, em especial de um, Behzad. Exceto pura poesia.

Cena do filme The wind will carry us (1999)

A matéria do filme é o cotidiano: o transcorrer trivial da vida — nascer, alimentar-se, assear-se, trabalhar, morrer. E, claro, a presença majestosa da natureza. Uma natureza que, a julgar pelo comportamento dos habitantes do lugar, é parte intrínseca de sua percepção da vida. Isso chega a ser quase um incômodo para quem pensa pela lógica do sujeito-objeto, vendo o humano como algo apartado da natureza. Para essas pessoas, a morte é sempre um acontecimento assustador, como se estivesse à parte da vida, negando-a.

Por exemplo, Behzad, o personagem central (e único ator profissional no filme), sobe uma colina para pegar sinal de celular e, acidentalmente, encontra um fêmur humano em um cemitério improvisado. Ele pega o osso, compara-o com sua própria perna e, em seguida, coloca-o no painel do carro, como se fosse um objeto qualquer — um isqueiro ou um copo. Ninguém se chocou com isso. Nem ele. Mais adiante, o mesmo osso é jogado sobre um fio de água, próximo a um riacho onde cabras pastam. O osso, então, é levado pela correnteza, simbolizando a integração da morte com os vivos, numa harmonia que aparenta ser resignada, quase indiferente.

É evidente que não se trata de poetizar a penúria. Viver numa comunidade rural, como a retratada no filme, deve ser repleto de dificuldades. Não é um bucolismo burguês, tampouco uma visão romântica de alguém que observa de fora. Se refletirmos, nossas sociedades altamente tecnológicas, repletas de conforto e atalhos, também não escapam da mesma verdade final: a vida passa, a morte chega e, assim, o ciclo de reciclagem e renovação da vida continua. É um ciclo infinito, aparentemente sem propósito intrínseco. A diferença é que dispomos de subterfúgios, racionalizações, mediações e, como consequência, maior distanciamento — até mesmo uma ruptura — com a natureza e, por extensão, com a morte. Já não nascemos em casa; tampouco morremos lá. Nascemos e morremos em hospitais, onde os médicos são vistos como figuras apartadas de nós. Fetichizamos a ciência. Podemos até criticá-la, mas, no momento de desespero, na “hora H do dia D”, recorremos a ela como cordeiros assustados, em busca de milagres.

O filme, ao introduzir poesia no “deserto do real”, destaca o privilégio de estar vivo. Se o ciclo de nascimento, procriação e morte não possui propósito intrínseco, por outro lado, só os vivos podem contemplar a beleza da natureza. Nesse sentido, um dos melhores momentos do filme, para mim, ocorre quando Behzad encontra o médico da vila, que lhe dá carona em sua moto. Durante o diálogo, quando Behzad pergunta se “o outro mundo” — após a morte — não seria mais bonito, o médico, de maneira plácida e serena, responde: “Ninguém voltou de lá para nos dizer como é.” O que sabemos é que, ao fecharmos os olhos pela última vez, não haverá mais volta para cada um de nós, individualmente. Todas as maravilhas e belezas da natureza desaparecerão para nós. Essa é a verdadeira perda com a morte. Segundo o médico, a morte é muito pior que a pior das doenças.

Assim, ao longo de uma conversa casual entre duas pessoas numa moto, a “premissa” do filme se revela em forma de poesia. É surpreendente como verdades profundas são apresentadas com casualidade e até humor. Essas verdades são semeadas ao vento, voando, quem sabe, para germinar em algum outro lugar. Entre a vida e a morte, fica a ideia capturada por um conhecido ditado: “Melhor um pássaro na mão do que dois voando.” Na linguagem do médico, temos:

“Dizem que ela é linda como
uma huri do céu!
Mas eu digo…
que o suco da vinha é melhor.
Prefira o presente a
estas belas promessas.
Mesmo um tambor parece
melodioso à distância
Prefira o presente”

Cena do filme The wind will carry us (1999)

 

Fragmentos dispersos, 9

Vácuo de sentido. Não me recordo se foi Aristóteles quem disse que a natureza não suporta o vácuo, o nada. Aproveito-me da ideia. Quando seu trabalho não tem sentido, há um vácuo. E ele precisa ser preenchido. Alguns trabalhos são tão absurdos que não há, afetivamente, possibilidade de atribuir-lhes sentido. A menos que a pessoa se rebaixe ou racionalize. Invente histórias para si mesma. Mas não creio que isso dure muito. Outra possibilidade, diante do vácuo de sentido, é recorrer às drogas. Não por acaso, elas estão em contínua ascensão. Drogas que tornam o trabalho suportável ou que incrementam sua performance para atender ao frêmito de determinados setores ou ramos profissionais. Agora, pense na seguinte situação: um trabalhador que mal ganha o suficiente para sustentar sua família é obrigado, diariamente, a subir em torres de alta tensão — sozinho ou, no máximo, com um colega em terra firme. O tempo todo lidando com a altura e a eletricidade. Um corpo pendurado num cabo, frágil como uma pena num redemoinho. Suspenso. Pode-se até tentar atribuir sentido a isso (isto é, ressonância afetiva ou reconhecimento social). Mas tal esforço não resiste ao tempo, à repetição. Então ela aparece: a “pinguinha”, antes de subir. Estratégia para suportar. Drummond dizia que “todo mundo tem sua cachaça”. Pois é. Às vezes, literalmente.

O que é uma tese. Quem atua no mundo acadêmico precisa elaborar teses constantemente. Uma tese é, por vezes, uma marcha à ré: pensar algo de forma inversa ao que se acredita no cotidiano. Um exemplo disso foi uma pergunta feita por um psicanalista do trabalho, C. Dejours. Em vez de questionar “por que as pessoas adoecem no trabalho?”, ele inverteu a lógica: “Por que as pessoas não adoecem no trabalho (com tantas razões para isso)?” Et voilà. Dessa pergunta surgiu uma nova disciplina que investiga os efeitos da organização do trabalho sobre a saúde mental. Agora imagine, algumas décadas atrás, alguém formular a pergunta: “Fumar não estaria associado ao câncer de pulmão?” Hoje, isso soa banal. Mas, à época, a pergunta era disruptiva. Criava um corte, uma ruptura no conhecimento comum. Com o tempo, especialmente nas ciências humanas no Brasil, fomos ficando mais modestos. As perguntas passaram a se concentrar no como — por exemplo: “Como é ser mulher no trabalho?” Esse como reflete uma curiosidade sobre vivências. É o trunfo da fenomenologia, sem dúvida importante, pois o universal manifesta-se no singular. Porém, quando tal postura entra na engrenagem da indústria do saber (nossas universidades), carrega consigo um enfraquecimento do espírito. Ou uma resignação covarde. Ou, quem sabe, uma incrível chatice.

Perguntas sem resposta. Creio que foi Lacan quem sugeriu que o sujeito se estrutura em torno de uma pergunta. Uma inquietação que ele endereça ao Outro. Então, qual é a sua pergunta? Ela pode ser inconsciente. Talvez só se revele como vestígio, como metonímia, ou na forma de angústia, sofrimento, tédio, resignação ou ressentimento. Talvez, ao polir muito a prata, você comece a enxergar o metal. Sob camadas de oxidação, há uma penumbra que esconde o essencial, o valor genuíno. Boa parte do que ouvimos durante o dia é como essa camada escura sobre a prata. Toca você, mas não é o toque que gostaria de sentir. Há algo deturpado, turvo, opaco. Você espreita frestas e orifícios, tentando enxergar o que realmente se esconde atrás de cada véu. Alguns dizem que não há nada atrás de nada. Eu discordo. Achava, também, que tudo era apenas interpretação, versões possíveis. Não. Há uma pergunta. Disse recentemente aos meus alunos de pós-graduação: já pensaram se, num mundo ideal, sua tese fosse exatamente a consciência e a abertura para essa pergunta? Isso vale para a vida singular e, muito provavelmente, para qualquer fenômeno científico de interesse.

O abismo e o sublime

Ultimamente tenho assistido os filmes do diretor Robert Bresson. Dois deles me foram absolutamente impactantes. O primeiro, Au hasard Balthazar. O segundo, sobre o qual falarei algumas coisas aqui, é Mouchette (que é baseado num livro).

Mouchette é uma criança-adolescente que não encontra esperança ao seu redor. Sua situação é encapsulada de forma simbólica pela música que é forçada a cantar durante uma aula, uma composição atribuída, poeticamente, a Cristóvão Colombo: Vous qui n’avez plus d’espoir. Sur l’immensité profonde. Ses yeux s’ouvraient pour le voir.

Aqueles sem esperança, lançados na imensidão profunda do oceano, moldados por um horizonte infinito. Colombo suplica à sua tripulação desolada: apenas três dias. Três dias para que, com olhos bem abertos, possam contemplar a promessa de um novo mundo, de uma terra firme que os resgataria do vazio do oceano — o mesmo oceano que reflete um céu tão profundo e inescrutável quanto ele próprio.

Mas Mouchette nunca encontra terra firme.

A jovem é cercada pela desgraça. Sua mãe, à beira da morte, jaz na cama sob seus cuidados. Seu irmãozinho, ainda um bebê, depende completamente dela. Sem fósforos para acender o fogão e aquecer o leite, Mouchette improvisa, tentando aquecê-lo com o próprio corpo. Enquanto isso, enxuga as lágrimas de uma violência sexual recente (apenas a ponta do iceberg de sua miséria). Lágrimas que ela seca com o mesmo pano que serve de fralda para o bebê, este em prantos — de fome, frio, medo, ou simplesmente por estar encharcado de seus próprios dejetos.

Seu pai, alcoólatra, a agride. Seu corpo carrega as marcas do descaso: sujo, vestido com roupas desgastadas e sem lavar, ela é praticamente uma pária em sua comunidade. “Cara de rato”, dizem os meninos.

Quando sua mãe morre, Mouchette, a princípio, parece receber alguma atenção dos vizinhos daquela vila rural, conservadora, situada na França profunda. Mas a aparência de benevolência logo se desfaz, revelando as intenções reais. Para uns, Mouchette não passava de “uma vadia”; para outros, era uma imprestável. Não havia lugar para esperança em sua vida.

As badaladas do sino da capela, marcando a passagem cruel do tempo, são um dos poucos sons que permeiam sua jornada. Cada batida do sino, confesso, reverberava como um pássaro negro bicando minha carne em uma noite sombria.

Estou sendo vago, propositalmente, na descrição do filme. Para captar o fluxo de emoções que ele evoca, só mesmo assistindo por você mesmo.

Cena final do filme Mouchette (1967)

Tanto Mouchette quanto Balthazar se configuram como “animais sacrificiais” perante o público. Como modernos Pôncios Pilatos, fingimos que não é conosco, mas o diretor nos envolve irremediavelmente em uma trama onde o mal é destilado em detalhes — sua força ampliada pelo minimalismo dos cenários e pela crueza dos personagens.

Ambos protagonizam uma espécie de testemunho do colapso humano. Contudo, enquanto Balthazar permanece passivo, aceitando o peso de sua condição, Mouchette ainda tenta exercer algum tipo de agência, mesmo que limitada e dolorosamente expressa na forma de uma violência reversa.

Essa tentativa de reação, porém, é tragicamente desproporcional. A revolta de Mouchette, em comparação às forças esmagadoras que a cercam, é como pétalas de rosa diante das balas de canhão que a atingem incessantemente.

Cena final de Au hasard Balthazar (1966)

O sentimento mais coerente, se é que podemos usar essa palavra em algo tão profundamente contraditório, talvez seja a perplexidade — uma espécie de reverência ambivalente diante da coexistência do abismo e do sublime. Sentir-se esmagado entre a aridez da imanência, com suas lágrimas e crueldades, e a vastidão da transcendência, que só um olhar vivo pode alcançar, é habitar um paradoxo essencial.

É a tensão entre a finitude e o infinito que nos define como humanos. Podemos ser consumidos pela desesperança ao encarar a imanência brutal do mal — tanto na ação quanto na omissão — ou, paradoxalmente, nos maravilharmos com a revelação de algo maior, algo que insiste em surgir mesmo na escuridão mais densa.

Talvez o sentimento seja o da angústia sagrada, uma dor que não quer fugir, mas que também não se resigna. É o reconhecimento da graça e da tragédia coexistindo, como se o mesmo gesto que cria pudesse, ao mesmo tempo, destruir. Afinal, viver é ser lançado nesse entrelugar — onde contemplamos o belo e somos feridos pelo feio, onde buscamos sentido no vazio.

A coerência aqui, se houver alguma, talvez esteja em acolher o desconforto como parte do mistério, aceitando que não há resposta simples para a dualidade que nos atravessa. Em última instância, só o ato de perguntar já nos faz dignos dessa transcendência que somos capazes de entrever.

Experimentos mentais, 5: a panela

Ele trabalhava fazia algum tempo numa siderúrgica. Era responsável pela limpeza da divisão de alto forno da usina. Era um trabalho extremamente exigente, pois além de conviver em um ambiente com alta temperatura, ainda tinha o barulho, a poluição visual e outros imensos riscos ocupacionais. Tinha de tomar muito cuidado. Já fazia esse tipo de trabalho há quase duas décadas. Portanto, não era mais um novato, nem em idade nem em experiência laboral. Ao longo desse tempo, porém, sua vida havia mudado muito. Não só fora da usina, mas internamente, no seu coração. Ele não sabia explicar muito bem quando, como nem por que começou a sentir um peso enorme dentro de si. Quando começou nesse ramo de atividade, a despeito das agressivas condições de trabalho, ele se sentia leve, ágil, capaz de identificar quaisquer problemas e de se antecipar em sua solução. Não era um empregado absolutamente exemplar, nem brilhante. Mas também não era dos piores. No início, tinha certeza de que, mesmo não sendo reconhecido como gostaria, ele estava fazendo sua parte. Mantinha seu setor o mais limpo e organizado quanto possível. Também no início, tinha um tipo de frio na barriga quando chegava ao trabalho. A siderúrgica, embora fosse um lugar inerentemente hostil, despertava certo temor nele. Não sabia explicar, mas era uma sensação de entrar dentro de um monstro, e de se sentir pequeno em relação a ele. Sentia-se ao mesmo tempo fascinado e amedrontado por esse monstro. Bom, na prática, havia motivos para amedrontar-se. Ao longo de seus anos de trabalho havia testemunhado muitos acidentes. Alguns fatais. Bom, mas isso já faz tempo. Agora, nada disso parecia importar muito mais. Tinha algo mais sério para se preocupar, esse peso interno cada vez maior dentro si. Não entendia a razão desse peso crescente. Não havia mudado nada em sua rotina diária. Mas era óbvio para si mesmo que algo estava muito fora do lugar. Ele era movido pela energia de seus músculos, que por sua vez ele sabia que vinha dos alimentos que, mesmo sem vontade, tinha de comer todo dia. Mas só isso. Quanto ao resto, ele sentia como se não fosse mais senhor de si mesmo. É engraçado, ele pensa. Pois realmente não conseguia identificar nada de extraordinário. Nada tinha ocorrido de diferente com ele. Mesmo assim, o peso foi surgindo como a sombra do fim de um dia – você está deitado na cama, diante da janela, meio acordado, meio adormecido. Num momento está claro, noutro já há uma penumbra. Entre um cochilo e outro, quando você de fato recupera a consciência já está noite. Foi assim com ele. E o peso gera mais peso. Há uma inércia, um momento nesse peso: ele tende a se retroalimentar. Nunca chegou a falar disso para ninguém. Não era casado, não tinha filhos, e era de muito poucos amigos. Tinha um ou outro colega com quem esporadicamente trocava umas palavras. Quando não estava no trabalho, costumava ficar em casa deitado num sofá. Até receber entregadores do supermercado havia se tornado uma tarefa penosa para ele. Pensava o tempo todo nesse peso, mas sem pensar. Quer dizer, ele sabia que estava pensando sobre o peso, mas pensava em termos do peso, por assim dizer. Pensava com o peso. Então, ele não se separava do problema. E o peso aumentando mais e mais. No trabalho, já não conseguia fixar a atenção em algo fora de si. Seu corpo, por sua vez, continuava fazendo o serviço de sempre. No fundo, sabia que isso era um imenso risco para ele naquela ocupação. Afinal, há limites para o automatismo do corpo na execução de uma tarefa. Em certa ocasião, sem falar exatamente desse peso obscuro, comentou com um colega que não se sentia mais tão empolgado sobre o trabalho. Esse colega lhe sugeriu que participasse de uma reunião do sindicato. Acabou indo em uma. Ouviu, mas era como se não estivesse presente. Ele não era uma pessoa de confrontos. Nem de embates, tampouco alguém apaixonado por alguma ideia ou por alguma luta coletiva. Saiu da reunião ainda mais pesado. E foi então que, durante um expediente como muitos outros, sentiu algo tão absurdo, um insight tão cortante, que involuntariamente até deu um recuo para trás no ar. Caiu como um raio sobre ele a certeza de que ele era um bloco de minério! Afinal, ele estava numa siderúrgica, então, a metáfora veio como algo natural. E assim, do nada, tudo começou a fazer sentido. Ele havia se dado conta de que se metamorfoseara num pedaço de ferro gusa. Nunca havia testemunhado em si uma epifania tão avassaladora como essa. Toda a dúvida e os desarranjos de sua vida interior caíram no lugar. Exceto por um detalhe: o ferro gusa deveria estar dentro da panela de gusa, onde então o ferro seria separado das impurezas pelo fogo inescrutável. E foi assim que ele desapareceu na panela, sem deixar o menor traço, sendo logo mais incorporado para sempre numa placa pura de ferro.

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Diálogos, 1

Você tem alguma certeza?

Sim. A primeira: não sou mestre de mim mesmo; não estou no controle. A segunda: posso morrer a qualquer momento. E minha última certeza: não falta nada no mundo.

Mas o fato de todos nós morrermos um dia depende de termos certeza? Faria alguma diferença?

No desfecho final, nenhuma diferença, óbvio. Mas faz diferença para mim mesmo. Ter certeza da minha mortalidade. Pois somente quem não ama é que deseja viver. Quem não ama se apega à vida.

Então você está me dizendo que aceitar a morte depende de ser capaz de amar?

Todo mundo pensa que, ao amar alguém ou algo, não vamos jamais querer morrer. Uma filha, por exemplo, te faz se apegar a vida, certo? Uma carreira reconhecida? Uma obra exuberante? Não faz sentido para a maioria das pessoas dizer o inverso. Porém, o amor causa um adensamento imprevisível da existência. Não dá para se apegar mais à existência, pelo menos não em seu sentido corriqueiro. Amar é, pois, morrer. Pelo menos uma parte de você morre. Por isso, pessoas que não amam têm a liberdade mental suficiente para investirem tempo e energia em simplesmente continuarem vivendo. A vida é fácil para elas. Podem ser grandes executivas, empreendedoras, e sobretudo políticas e burocratas.

Então você acha que não falta nada no mundo? Essa é tua outra certeza?

Não, não falta nada. Pelo menos quando consideramos tudo o que é espontâneo no mundo – e não as coisas humanas, necessariamente. Cada detalhe do mundo, não importa onde nem o que, é perfeito em sua própria natureza. Pois pense: todas as obras e manifestações mais sublimes do espírito humano já estavam contidos no mundo. Mas somos disciplinados a pensar na vida humana como falta. Há mesmo uma estética da falta atravessando muitas perspectivas, por exemplo a psicanálise. O ser é definido com relação ao que lhe falta, e pelo que ele se põe em movimento. Cada detalhe de coisas que estão diante da pessoa é comparado e julgado contra um padrão ideal, sempre gerando um hiato de sofrimento e alienação em relação ao presente. Esse tipo de postura criou uma versão diminuída do ser humano, e de quebra ainda ajuda a promover a economia.

Não considera que tudo isso que está dizendo, essas tuas ‘certezas’, possa estar simplesmente na tua cabeça?

Se você abrir e ler todos os livros do mundo, ou se conseguir conversar com todos os sábios ainda vivos, e ao cabo disso tudo vier para mim e disser que encontrou algo que contradiga o que estou te dizendo, ainda assim não mudarei minha opinião. E te digo o motivo: a realidade não é fixa. Ela é uma versão provisória do real. Pois o real propriamente dito será sempre inacessível para nós humanos, por mais que você me mostre meu cérebro iluminando em uma ressonância magnética. Você não vai extrair dali nada de mais real do que as palavras que estou usando para criar minhas certezas.

Você não estaria tomando a realidade pelas tuas palavras, palavras essas pelas quais você expressa essas tuas certezas?

As palavras, especialmente as bem articuladas, são âncoras provisórias em que nos agarramos para não ficarmos totalmente à deriva. Tome tudo de uma pessoa. Se ela ainda tiver uma ou outra palavra para costurar seu disforme caos interno, então ela estará relativamente protegida da escuridão, do fracasso, da perda de tudo e de todos. Palavras são como as folhas secas sobre as quais formigas atravessam um rio. O desafio, porém, é se você realmente acredita nelas. Se não acreditar de verdade nelas, então nem como folhas elas te servirão. Vão se tornar cascas vazias onde você vai se esconder como um covarde armado.


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