Carne e pedra

Uma notícia me chamou a atenção hoje. Na Avenida 23 de Maio, em São Paulo, um porco caiu de um veículo em movimento e foi atropelado (ver imagem).

Richard Sennett, importante sociólogo norte-americano, escreveu um livro bem interessante, publicado no Brasil há alguns anos, chamado Carne e Pedra. Nele, Sennett discute a relação entre o corpo (humano) e a cidade, a metrópole.

São Paulo, das cidades brasileiras que conheço, é uma das que mais me dá a sensação de concreto: não no sentido de algo sólido, obviamente, mas no estrito sentido de que é uma cidade absolutamente moldada à imagem do concreto, esse material que tenta imitar, humanamente, a “solidez” da natureza (o concreto, nesse sentido, é um exemplo de natureza humanizada). Refiro-me à pouca proporção entre verde/cinza, o que, decerto, não deve ser “privilégio” só da capital paulista. Mas, seu tom cinza sempre me amedrontou.

O contraste entre o cinza e a pele limpidamente rosa do porco me fez lembrar, mais uma vez, desse abismo que as cidades impõem entre o orgânico e o inorgânico, entre o corpo e o concreto. No caso do animal em questão, o dilema é ainda mais paroxístico, pois o porco, apesar de um “ser vivo”, seria, muito provavelmente, abatido pelo seu proprietário – que, aliás, como diz a matéria que eu li, “fugiu do local”.

O porco, nesse quixotesco acontecimento, só me fez lembrar do quão impregnados de “cinza” nós estamos. Sua situação [a do porco] é ainda pior que a dos cachorros de rua, frequentemente atropelados por motoristas apressados, com olhar fixo no cinza do horizonte (aliás, dentro do próprio carro é cinza…). Sua situação é pior pois ele é um objeto em sentido duplo: ao ser alimento (objeto-carne, bacon, etc.), e ao ser, aí sim como qualquer outro de nós, mais um corpo frágil na cidade.

A busca de poder e o amor ao conhecimento

Acho que já tenho uma opinião diferente sobre o que frequentemente se discute em relação às universidades federais: de que a vida burocrática abafa o que elas realmente deveriam estar fazendo – pensando a sociedade, produzindo conhecimento.

A existência da burocracia, plasmada ao bolsão de poder que ela oferece a algumas pessoas gananciosas, é ambiente mais do que favorável à existência de espaços para se pensar e produzir coisas que realmente importam para o gênero chamado “ciência”.

Como algumas pessoas gostam do poder burocrático, elas realizam o trabalho de outras que, se tivessem de fazê-lo, simplesmente perderiam seu espírito. A carreira em Y na universidade é uma dádiva para quem quer pesquisar, pensar, escrever, falar livremente.

É fascinante olhar à distância como alguns se enredam nas tramas do poder weberiano. Sentem-se importantes, e, em ato contínuo à espécie neles falando, respiram superioridade. No dia-a-dia da pesquisa, porém, reina o improviso: na agenda, apenas uma linha por semana, se tanto, para discutir novas frentes de trabalho, para ensaiar, para estilizar. Alunos servem de escudo à ausência de ação.

De toda maneira, muitos ganham com isso. De fato, é preciso agradecer a esta brava gente que negocia com o governo, com órgãos federais, com comunidade local, com o poder instituído. Enquanto outros produzem (e são chamados de narcisistas), a máquina burocrática preenche os sonhos dos “empreendedores da caneta”. São verdadeiros mártires do sacrifício do Lattes a uma causa superior. Ok, vou terminar este post sem dar uma de psicanalista, pois poderia interpretar tudo bem diferente.

Alguém sabe…

… onde fica “essa” Babilônia?

Sujeito coletivo

Adam Smith, o conhecido “pai” da visão moderna de homem como agente econômico, acertou em cheio num ponto: o ser humano é movido por interesses egoístas. Uma espécie de força atávica nos arranca da inércia e nos precipita na busca infindável de nossos interesses. Alie a isso uma sociedade de consumo, e, pronto, temos a receita completa de uma forma de conceber o “motor” da ação.

O sujeito das organizações, das empresas, é um sujeito econômico. Ele faz o que faz embalado pela remuneração – embora salário gordo não quer dizer pessoa que preste. Marx e sua leitura do capital como um motor; porém, do sujeito particular, não necessariamente do sujeito coletivo.

E quem seria o “sujeito coletivo”? Por que uma escola particular é “melhor” do que uma escola pública da periferia? Por que em bairros de gente com dinheiro não existe ONG humanitária? Ou então algum “equipamento social” de assistência? Pois numa “comunidade” com dinheiro, este é o próprio motor da ação – da construção das casas, da segurança, da urbanização, da limpeza das ruas, das escolas e, sobretudo, da plataforma subjetiva em que se assenta a vida humana. O “amor”, por exemplo, parece encontrar solo mais “propício” em lares fartos (veja que coloquei ” ” nas palavras!).

Em comunidades pobres, o poder de agência é, em geral, público. Ou então de instituições do chamado “terceiro setor”. As dificuldades que as instituições ali sofrem são dantescas: testemunham, na beira do mundo “civilizado”, o que se passa quando não se tem um sujeito coletivo, quando a ação ou agência se ancora, unicamente, no instinto (na verdade, na razão) de sobrevivência. Violência, drogas, prostituição, homossexualidade infantil, fatricínio, latrocínio, doenças psicológicas, decadência ambiental, etc. Profissionais mal-remunerados têm, a cada dia, de levar o catequismo da “dignidade humana” a quem não a tem, não a quer ou simplesmente não a pode obter por si mesmo.

Em que consiste “fazer civilização”? Em que consiste viver juntos? Em que consiste o sujeito coletivo? Por que é tão difícil, aparentemente (não tenho experiência nisso, e, portanto, o que digo não esgota a realidade, sendo, muito antes, talvez apenas uma pálida e distorcida visão dela), fazer pessoas que não têm capital econômico mobilizarem-se até mesmo para cuidar de si próprias? E por que, intuitivamente, é o desânimo que se abate sobre profissionais encarregados de lutar nessa batalha?

Só sei que clichês não resolverão o problema da desarticulação do sujeito coletivo. Ao mesmo tempo, sinto que, para este se revelar, é preciso algum tipo de “faísca”. Pergunto ao Marx de tempos idos: onde está a “inteligência geral”? Onde está a astúcia do sujeito coletivo, pobre e sem “equipamentos” para entender a complexidade desse mundo?

Pensar grande, pensar pequeno

O que significa, para um país, pensar grande? Tirar as pessoas da miséria? Permitir que sua população tenha qualidade de vida, perspectivas, futuro? Favorecer o mercado, o desenvolvimento do capitalismo (como se este fosse “algo”…)? Um sentimento triste acometeu-me hoje ao ler a notícia de que nossa base militar na Antártida foi destruída por um incêndio. As perdas foram “incalculáveis”, na expressão de um pesquisador. E, provavelmente, o foram.

Pense num exemplo. Imagine que você tenha toda a sua vida num computador – digo, sua vida profissional (sua tese, por exemplo). E considere que não tenha feito cópias de segurança do conteúdo (e não pense que tenha sido por descuido, mas, simplesmente, porque deixou-se levar pela rotina, e outras prioridades apareceram que lhe distraíram nesse sentido). Agora imagine que seu computador, com todo seu conteúdo, sofra um acidente e tenha uma perda irreparável. Você perde tudo. Anos e anos de dedicação, organização, sistematização. Tudo vira pó. Tente imaginar sua desolação.

A Estação de Pesquisa Comandante Ferraz começou a operar em 1984. Muitas pesquisas foram realizadas lá desde então. Muitas pessoas envolvidas. Gente séria, preocupada em fazer alguma diferença, em descobrir evidências que nos permitam compreender melhor nosso planeta, seu ecossistema. Porém, a perda não foi só científica. A perda, a meu ver, é para o país inteiro. É claro que o Brasil (como qualquer outro país), nos faz perder coisas – com a violência, por exemplo, ou então a fome, a picaretagem na políica e assim por diante. Mas perdemos algo mais com essa tragédia, perdemos um grande exemplo de como um país pode pensar grande, de como pode sair de seu cotidiano imediato e fazer coisas com valor que escapam de suas fronteiras. Lamento muito pelo ocorrido, e lamento ainda mais por saber que, muito provavelmente, quase ninguém está dando bola para isso.

Passado

Confesso que não dei bola quando o último filme de Woody Allen foi lançado no ano passado. E a coisa passou para mim. Ontem, depois de ler uma coluna de Matheus Pichonelli na Carta Capital, fiquei tentado a assistir o filme. E o fiz hoje.

Para mim, o filme foi pior do que avaliou Pichonelli, e melhor do que o fez ontem André Forastieri, em coluna também dedicada ao filme. Não acho que o filme tenha sugerido (e voilà minha catarse…), simplesmente, que o presente é pior que o passado, e que nossa atual geração é vazia, obcecada por assuntos miúdos, seduzida por intelectuais arrogantes e esnobes, tratando o passado pelas mercadorias que ele nos deixou no presente (a própria Paris, por exemplo?!).

Ele fez algo muito pior, sugerindo que não há como escapar – que, uma vez no presente, vamos sempre achar que uma época anterior foi melhor, e logo vamos querer voltar para ela (ou, no caso de personagens do filme, de “ir” para ela). A vida é simplesmente um saco, e vai ser um saco no presente ou no passado, pois, uma vez chegando neste, ele vira presente e… vira um saco!

No entanto, presente e passado convivem juntos. Negociamos entre ambos, por assim dizer. Além disso, o passado idealizado deve ter lá a ver com nossos sonhos infantis. Quando crianças, sempre achamos os adultos mais “poderosos” que nós; até chegamos a achar (eu, pelo menos, o fiz!) que eles têm vidas misteriosas, enigmáticas… interessantes. Não me recordo, como criança, de achar que a vida dos adultos era um saco. Passamos a ver assim quando vamos ficando mais velhos. Quando adolescentes, achamos a vida de nossos pais um grande saco: os criticamos por falta de “amor verdadeiro”, por falta de “risco”, por serem ultrapassados (muitos pais ainda não sabem usar iPads e coisas do gênero…). Mas, paradoxalmente, quando adultos, achamos que nossa vida na infância era mais feliz.

Penso que, coletivamente, é a isso que muitas vezes nos entregamos: à idealização de um passado coletivo, grupal, no filme representado pela belle-époche, ou então pela boêmia dos anos 1920, na Paris borbulhante, viva, pulsante. A Paris de hoje é, sob certo ângulo, uma vitrine a céu aberto, dependendo (não desprezadamente, suponho) do turismo para sobreviver. Mas essa mesma Paris poderia ser uma espécie de Atlântida do “pequeno” grupo de humanistas ainda existentes no mundo (espécie em extinção?).

Mas concordo com Forastieri: chiclês demais! W. Allen diz que sempre toma como certo um público inteligente, mas não foi assim que me senti ao assistir o filme. Talvez isso tenha sido “proposital”, considerando que o filme é um sucesso de bilheteria e, desculpem-me, mas é quase óbvio que quem assistiu não foram apenas os “intelectuais” da época. Com isso, pode-se ter gerado certo “tapa na cara” de quem assiste ao filme. Neste ponto acho que Pichonelli acerta.

O filme é desconfortante, abunda na petulância e arrogância, mas, paradoxalmente, talvez esteja aí sua razão de ser.

“Do encantamento à queda”

Fotógrafo Thomas Czarnecki cria sequencia de fotos com o suposto fim trágico de personagens de contos de fadas. Na reprodução, Alice. No site do fotógrafo, o ensaio completo, com fotos, por assim dizer, integradas pela distopia.

Prefiro ouvir a falar (10)

Seguindo na recuperação de preciosidades…

Abundância e escassez

Freud dizia que a natureza não distribui igualmente entre os homens a capacidade de sublimar o sofrimento provocado pelo fato de vivermos civilizadamente. Contudo, ao que parece, a capacidade de sofrer é democraticamente farta para toda criatura viva neste mundo.

De minha parte, acho que a “zona de sombra” é a pior de todas as experiências cotidianas que podemos ter. Explico. Tal zona é aquela em que, misteriosamente, sentimos que algo está errado, profundamente errado, mas que não sabemos como dar a volta por cima, como, por exemplo, sublimar pelo gênio.

Quando não alcançamos o estágio anterior, de sublimar “dignamente”, caímos numa zona disforme: somos os pessimistas, os anti-sociais, os ingênuos, ou então os críticos e céticos. Nas categorias sociais, ficamos numa espécie de limbo. É como se eu me sentisse genial em matéria de ver que as coisas estão erradas, mas um analfabeto em termos de usar o insumo desse “estão erradas” para produzir algo de valor. Dar a volta por cima, como eu disse.

É como se eu vivesse numa abundância de percepção, sensações, intuições, e numa escassez de “inteligência” para dispor dos dispositivos ou recursos culturais e psicológicos para … dar a volta por cima. Misteriosamente, porém, sinto que se eu tivesse escassez na primeira ponta (percepção sub-liminar ou algo do gênero para o sofrimento, o erro, a “folclorice” do cotidiano), não adiantaria abundância na segunda. Aliás, talvez sequer adiantasse ter a segunda.

Classe média: o debate do momento

Corre na mídia, nas últimas duas semanas (pelo menos que eu acompanhei – por exemplo, em reportagens da Carta Capital), a discussão sobre de que natureza é a nossa “nova” e emergente classe média. Como se sabe, este “estrato” social tem crescido desde o Governo FHC e, notadamente, no Governo Lula. O ponto essencial da discussão, que a mim cheira como uma espécie de ultra-conservadorismo travestido, é sobre se o critério econômico é a melhor (ou a única, como se sugere estar sendo…) medida para se dizer que um grupo social pertence a um determinado estrato.

A classe média, dizem tais ultra-conservadores, está crescendo apenas à sombra de indicadores econômicos, como emprego formal, aumento de renda, e, consequentemente, consumo.

Na mesma Carta Capital, uma revista que, curiosamente, às vezes acho ultra-conservadora (lobo em pele de cordeiro), li diversas matérias de “liberais” criticando a “zumbice” de hordas de pessoas indo às compras nos shoppings centers, “poluindo” a cidade. Não me esqueço, a esse propósito, belíssima coluna de Maria R. Khel sobre uma espécie de “vício” de nossa herança escravista, o de esperar que “o pobre” nos atenda sem “reclamar”, e que, uma vez tais “pobres” ascendendo à classe média (econômica), passariam a ter maior consciência política e a recusarem-se a uma invisibilidade social dócil.

Então, nas entrelinhas, a mensagem: classe média envolve, também (ou sobretudo), educação. E num sentido estrito de “conhecimentos”, diploma, etc., quanto num sentido mais amplo: etiqueta, gosto, refinamento e coisas do tipo. A situação, que, não sei, pode ser transitória, lembra o cisma histórico entre aristocratas e burgueses, ou então a imagem de senso comum do indivíduo com dinheiro, mas ignorante.

Em coluna recente, Paulo Ghiraldelli Jr. faz uma discussão interessante sobre o assunto, “dialogando”, imaginariamente, com o filósofo José Arthur Giannotti, que participou de programa recente na Band para tratar do assunto. Um dos pontos de Ghiraldelli é sobre o suposto “elitismo ingênuo” de Giannotti, ancorado na idéia de que a educação é imprescindível para quem está na classe média.

O ponto é bem interessante, e podemos pensar no papel que o trabalho representa nisso. Por exemplo, Ghiraldelli estima que a educação da classe média não vai sair “à força”, mas virá “organicamente”, no ritmo da própria classe média. Mas de onde vem o dinheiro que sustenta a classe média senão do trabalho? E como trabalhar sem educação formal “apropriada” ou “suficiente”? Isso coloca em questão o sentido da educação: na figura de linguagem do “elitista ingênuo”, para usar expressão de Ghiraldelli, talvez a educação seja o bastião que impede a alienação degradante; educação como “elevação do espírito”. Ora, talvez isso só sirva para alguns poucos e “iluminados” acadêmicos.

A educação “orgânica” da classe média será, mais radicalmente do que já é, uma educação instrumental. Mas até esse tipo de educação, que, veja bem, não estou a menosprezar aqui, pode ser colocada em segundo plano, afinal, a classe média que “ascendeu” graças ao trabalho (formal) é, provavelmente em sua maioria, egressa (se o for!) de escolas particulares, universidades particulares.

Concordo com a visão estreita do elitismo ingênuo. Acho que, para esse pessoal, um antídoto para essa classe média crescente talvez seja frequentar a Université Paris I, ou Sorbone. Ghiraldelli acerta ao propor um olhar menos “marxista” ou menos “pudico” ao fenômeno em questão. Mas Ghiraldelli deixa de enxergar um ponto: ao dizer que a educação virá “na medida da necessidade”, e que o objetivo é ser feliz agora (em parte, patrocinado pela ampliação do trabalho formal), se esquece de que o trabalho, base desse crescimento econômico, dependerá, sim, de educação, e muita. A questão, a meu ver, é qual.

***

Obs. (1): Veja-se, a título de mera ilustração da indagação com a qual encerro o post, o problema do “apagão de talentos”, dramatizado, em alguns setores específicos (e “estrtégicos”), pela oferta de postos de trabalho e ausência de mão-de-obra qualificada. Ou seremos um país com uma classe média de trabalhadores extraídos do “exército de reserva”? Aliás, pergunto, ingenuamente, ao um Marx imaginário: seria possível construir uma “classe média” com membros de tal exército?

Obs.(2): A educação foi (ou ainda é) um importante escoadouro teleológico: muitos sistemas tentaram mudar o mundo a partir da educação, que conteria, “em si”, os germes do desenvolvimento do humano. Quando dizemos que é a própria “dinâmica” da classe média que estimulará seu conceito de educação, ficamos do lado da distopia, da pura contingência – à primeira vista. Mesmo que desinflacionemos o mercado, é difícil não ver o bicho se espreitando na “dinâmica da classe média”. Criticar o conceito de educação “elitista” de Giannotti, que, em tese, o permite dizer que, passado o consumo, haverá como que uma “horda infurecida”, implica em não colocar nada no lugar e deixar a história (com “h” totalmente minúsculo) no reino do “empírico” (que, penso eu, será o mercado…ou não, realmente não dá para vaticinar).


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