Pensar grande, pensar pequeno

O que significa, para um país, pensar grande? Tirar as pessoas da miséria? Permitir que sua população tenha qualidade de vida, perspectivas, futuro? Favorecer o mercado, o desenvolvimento do capitalismo (como se este fosse “algo”…)? Um sentimento triste acometeu-me hoje ao ler a notícia de que nossa base militar na Antártida foi destruída por um incêndio. As perdas foram “incalculáveis”, na expressão de um pesquisador. E, provavelmente, o foram.

Pense num exemplo. Imagine que você tenha toda a sua vida num computador – digo, sua vida profissional (sua tese, por exemplo). E considere que não tenha feito cópias de segurança do conteúdo (e não pense que tenha sido por descuido, mas, simplesmente, porque deixou-se levar pela rotina, e outras prioridades apareceram que lhe distraíram nesse sentido). Agora imagine que seu computador, com todo seu conteúdo, sofra um acidente e tenha uma perda irreparável. Você perde tudo. Anos e anos de dedicação, organização, sistematização. Tudo vira pó. Tente imaginar sua desolação.

A Estação de Pesquisa Comandante Ferraz começou a operar em 1984. Muitas pesquisas foram realizadas lá desde então. Muitas pessoas envolvidas. Gente séria, preocupada em fazer alguma diferença, em descobrir evidências que nos permitam compreender melhor nosso planeta, seu ecossistema. Porém, a perda não foi só científica. A perda, a meu ver, é para o país inteiro. É claro que o Brasil (como qualquer outro país), nos faz perder coisas – com a violência, por exemplo, ou então a fome, a picaretagem na políica e assim por diante. Mas perdemos algo mais com essa tragédia, perdemos um grande exemplo de como um país pode pensar grande, de como pode sair de seu cotidiano imediato e fazer coisas com valor que escapam de suas fronteiras. Lamento muito pelo ocorrido, e lamento ainda mais por saber que, muito provavelmente, quase ninguém está dando bola para isso.

Passado

Confesso que não dei bola quando o último filme de Woody Allen foi lançado no ano passado. E a coisa passou para mim. Ontem, depois de ler uma coluna de Matheus Pichonelli na Carta Capital, fiquei tentado a assistir o filme. E o fiz hoje.

Para mim, o filme foi pior do que avaliou Pichonelli, e melhor do que o fez ontem André Forastieri, em coluna também dedicada ao filme. Não acho que o filme tenha sugerido (e voilà minha catarse…), simplesmente, que o presente é pior que o passado, e que nossa atual geração é vazia, obcecada por assuntos miúdos, seduzida por intelectuais arrogantes e esnobes, tratando o passado pelas mercadorias que ele nos deixou no presente (a própria Paris, por exemplo?!).

Ele fez algo muito pior, sugerindo que não há como escapar – que, uma vez no presente, vamos sempre achar que uma época anterior foi melhor, e logo vamos querer voltar para ela (ou, no caso de personagens do filme, de “ir” para ela). A vida é simplesmente um saco, e vai ser um saco no presente ou no passado, pois, uma vez chegando neste, ele vira presente e… vira um saco!

No entanto, presente e passado convivem juntos. Negociamos entre ambos, por assim dizer. Além disso, o passado idealizado deve ter lá a ver com nossos sonhos infantis. Quando crianças, sempre achamos os adultos mais “poderosos” que nós; até chegamos a achar (eu, pelo menos, o fiz!) que eles têm vidas misteriosas, enigmáticas… interessantes. Não me recordo, como criança, de achar que a vida dos adultos era um saco. Passamos a ver assim quando vamos ficando mais velhos. Quando adolescentes, achamos a vida de nossos pais um grande saco: os criticamos por falta de “amor verdadeiro”, por falta de “risco”, por serem ultrapassados (muitos pais ainda não sabem usar iPads e coisas do gênero…). Mas, paradoxalmente, quando adultos, achamos que nossa vida na infância era mais feliz.

Penso que, coletivamente, é a isso que muitas vezes nos entregamos: à idealização de um passado coletivo, grupal, no filme representado pela belle-époche, ou então pela boêmia dos anos 1920, na Paris borbulhante, viva, pulsante. A Paris de hoje é, sob certo ângulo, uma vitrine a céu aberto, dependendo (não desprezadamente, suponho) do turismo para sobreviver. Mas essa mesma Paris poderia ser uma espécie de Atlântida do “pequeno” grupo de humanistas ainda existentes no mundo (espécie em extinção?).

Mas concordo com Forastieri: chiclês demais! W. Allen diz que sempre toma como certo um público inteligente, mas não foi assim que me senti ao assistir o filme. Talvez isso tenha sido “proposital”, considerando que o filme é um sucesso de bilheteria e, desculpem-me, mas é quase óbvio que quem assistiu não foram apenas os “intelectuais” da época. Com isso, pode-se ter gerado certo “tapa na cara” de quem assiste ao filme. Neste ponto acho que Pichonelli acerta.

O filme é desconfortante, abunda na petulância e arrogância, mas, paradoxalmente, talvez esteja aí sua razão de ser.

“Do encantamento à queda”

Fotógrafo Thomas Czarnecki cria sequencia de fotos com o suposto fim trágico de personagens de contos de fadas. Na reprodução, Alice. No site do fotógrafo, o ensaio completo, com fotos, por assim dizer, integradas pela distopia.

Prefiro ouvir a falar (10)

Seguindo na recuperação de preciosidades…

Abundância e escassez

Freud dizia que a natureza não distribui igualmente entre os homens a capacidade de sublimar o sofrimento provocado pelo fato de vivermos civilizadamente. Contudo, ao que parece, a capacidade de sofrer é democraticamente farta para toda criatura viva neste mundo.

De minha parte, acho que a “zona de sombra” é a pior de todas as experiências cotidianas que podemos ter. Explico. Tal zona é aquela em que, misteriosamente, sentimos que algo está errado, profundamente errado, mas que não sabemos como dar a volta por cima, como, por exemplo, sublimar pelo gênio.

Quando não alcançamos o estágio anterior, de sublimar “dignamente”, caímos numa zona disforme: somos os pessimistas, os anti-sociais, os ingênuos, ou então os críticos e céticos. Nas categorias sociais, ficamos numa espécie de limbo. É como se eu me sentisse genial em matéria de ver que as coisas estão erradas, mas um analfabeto em termos de usar o insumo desse “estão erradas” para produzir algo de valor. Dar a volta por cima, como eu disse.

É como se eu vivesse numa abundância de percepção, sensações, intuições, e numa escassez de “inteligência” para dispor dos dispositivos ou recursos culturais e psicológicos para … dar a volta por cima. Misteriosamente, porém, sinto que se eu tivesse escassez na primeira ponta (percepção sub-liminar ou algo do gênero para o sofrimento, o erro, a “folclorice” do cotidiano), não adiantaria abundância na segunda. Aliás, talvez sequer adiantasse ter a segunda.

Classe média: o debate do momento

Corre na mídia, nas últimas duas semanas (pelo menos que eu acompanhei – por exemplo, em reportagens da Carta Capital), a discussão sobre de que natureza é a nossa “nova” e emergente classe média. Como se sabe, este “estrato” social tem crescido desde o Governo FHC e, notadamente, no Governo Lula. O ponto essencial da discussão, que a mim cheira como uma espécie de ultra-conservadorismo travestido, é sobre se o critério econômico é a melhor (ou a única, como se sugere estar sendo…) medida para se dizer que um grupo social pertence a um determinado estrato.

A classe média, dizem tais ultra-conservadores, está crescendo apenas à sombra de indicadores econômicos, como emprego formal, aumento de renda, e, consequentemente, consumo.

Na mesma Carta Capital, uma revista que, curiosamente, às vezes acho ultra-conservadora (lobo em pele de cordeiro), li diversas matérias de “liberais” criticando a “zumbice” de hordas de pessoas indo às compras nos shoppings centers, “poluindo” a cidade. Não me esqueço, a esse propósito, belíssima coluna de Maria R. Khel sobre uma espécie de “vício” de nossa herança escravista, o de esperar que “o pobre” nos atenda sem “reclamar”, e que, uma vez tais “pobres” ascendendo à classe média (econômica), passariam a ter maior consciência política e a recusarem-se a uma invisibilidade social dócil.

Então, nas entrelinhas, a mensagem: classe média envolve, também (ou sobretudo), educação. E num sentido estrito de “conhecimentos”, diploma, etc., quanto num sentido mais amplo: etiqueta, gosto, refinamento e coisas do tipo. A situação, que, não sei, pode ser transitória, lembra o cisma histórico entre aristocratas e burgueses, ou então a imagem de senso comum do indivíduo com dinheiro, mas ignorante.

Em coluna recente, Paulo Ghiraldelli Jr. faz uma discussão interessante sobre o assunto, “dialogando”, imaginariamente, com o filósofo José Arthur Giannotti, que participou de programa recente na Band para tratar do assunto. Um dos pontos de Ghiraldelli é sobre o suposto “elitismo ingênuo” de Giannotti, ancorado na idéia de que a educação é imprescindível para quem está na classe média.

O ponto é bem interessante, e podemos pensar no papel que o trabalho representa nisso. Por exemplo, Ghiraldelli estima que a educação da classe média não vai sair “à força”, mas virá “organicamente”, no ritmo da própria classe média. Mas de onde vem o dinheiro que sustenta a classe média senão do trabalho? E como trabalhar sem educação formal “apropriada” ou “suficiente”? Isso coloca em questão o sentido da educação: na figura de linguagem do “elitista ingênuo”, para usar expressão de Ghiraldelli, talvez a educação seja o bastião que impede a alienação degradante; educação como “elevação do espírito”. Ora, talvez isso só sirva para alguns poucos e “iluminados” acadêmicos.

A educação “orgânica” da classe média será, mais radicalmente do que já é, uma educação instrumental. Mas até esse tipo de educação, que, veja bem, não estou a menosprezar aqui, pode ser colocada em segundo plano, afinal, a classe média que “ascendeu” graças ao trabalho (formal) é, provavelmente em sua maioria, egressa (se o for!) de escolas particulares, universidades particulares.

Concordo com a visão estreita do elitismo ingênuo. Acho que, para esse pessoal, um antídoto para essa classe média crescente talvez seja frequentar a Université Paris I, ou Sorbone. Ghiraldelli acerta ao propor um olhar menos “marxista” ou menos “pudico” ao fenômeno em questão. Mas Ghiraldelli deixa de enxergar um ponto: ao dizer que a educação virá “na medida da necessidade”, e que o objetivo é ser feliz agora (em parte, patrocinado pela ampliação do trabalho formal), se esquece de que o trabalho, base desse crescimento econômico, dependerá, sim, de educação, e muita. A questão, a meu ver, é qual.

***

Obs. (1): Veja-se, a título de mera ilustração da indagação com a qual encerro o post, o problema do “apagão de talentos”, dramatizado, em alguns setores específicos (e “estrtégicos”), pela oferta de postos de trabalho e ausência de mão-de-obra qualificada. Ou seremos um país com uma classe média de trabalhadores extraídos do “exército de reserva”? Aliás, pergunto, ingenuamente, ao um Marx imaginário: seria possível construir uma “classe média” com membros de tal exército?

Obs.(2): A educação foi (ou ainda é) um importante escoadouro teleológico: muitos sistemas tentaram mudar o mundo a partir da educação, que conteria, “em si”, os germes do desenvolvimento do humano. Quando dizemos que é a própria “dinâmica” da classe média que estimulará seu conceito de educação, ficamos do lado da distopia, da pura contingência – à primeira vista. Mesmo que desinflacionemos o mercado, é difícil não ver o bicho se espreitando na “dinâmica da classe média”. Criticar o conceito de educação “elitista” de Giannotti, que, em tese, o permite dizer que, passado o consumo, haverá como que uma “horda infurecida”, implica em não colocar nada no lugar e deixar a história (com “h” totalmente minúsculo) no reino do “empírico” (que, penso eu, será o mercado…ou não, realmente não dá para vaticinar).

Corvo

LITTLE TOMBSTONE – ESMA 2011 from Little Tombstone on Vimeo.

A linguagem privada do corpo

Quando o assunto é nosso corpo, sabemos todos nos manifestar. Sabemos, em primeira pessoa, o que nos acontece, o que sentimos, seja em sentido sensorial estrito (uma “pressão” nas costas, por exemplo), como no sentido mais psicofísico (uma sensação de mal-estar, por exemplo). Não há necessidade de teoria para falar de nossos estados corporais. Pelo menos não no sentido formal de teoria – como um conjunto de conceitos compartilhados publicamente e “arquivados” institucionalmente (nas instituições da ciência).

Se quisermos, podemos gastar a maior parte de nossa energia e tempo mentais só em especulações discursivas sobre nosso corpo. E não me refiro aos “corpolatras” de plantão; refiro-me a qualquer pessoa: eu, você que está me lendo. Qualquer um pode gastar longas horas pensando nas sensações enviadas pelo próprio corpo.

Acho que tais sensações compõem uma das mais “privadas” linguagens. Uma das mais “empíricas”. Aliás, a ciência é, como se diz, baseada em dados e fatos empíricos. Os positivistas lógicos, por exemplo, achavam que os componentes mais básicos da linguagem científica eram as sensações. O que digo, em linguagem científica, tem de ter um lastro sensorial (um referente), indubitável, apesar de privado. Sabe-se que isto gerou grande dor de cabeça nos defensores mais “radicais” do positivismo lógico (por exemplo, Neurath, Schlick…).

De todo modo, o que quero dizer é que a linguagem do corpo é, ao mesmo tempo, a mais democrática (em sentido brasileiro do termo) e a mais absurda. Pois pessoas podem nos encher o saco (desculpem-me a expressão) com suas ladainhas de sintomas e sensações. A linguagem do corpo de outra pessoa não me interessa, pois com ela nada posso fazer. Exceto ter empatia, quando muito; ou então simpatia.

Não sei explicar, mas acho que, quanto menos cognitivamente desenvolvida é uma pessoa, mais sua linguagem se torna empírica, fundada (grounded, como dizem o pessoal da área de pesquisa qualitativa) no “fato” corporal (piagetianos, please, poderiam me ajudar?).

Defendo uma “civilização de cérebros”? Nem tanto, mas fato é que, a cada dia que passa, acho mais e mais non-sense (!) essa conversa corporal. Um colega meu, filósofo, dizia que hoje em dia realmente a verdade passa pelo corpo. Olha isto: os empiristas devem estar se remexendo nos seus túmulos ingleses e alemães!

Beleza como convenção?

Fiquei impressionado com um experimento realizado pelo jornal norte-americano The Washington Post. Joshua Bell, considerado um dos maiores violinistas do mundo, tocou, por quase uma hora logo no início da manhã em um metrô de Washington. Performando em um violino avaliado em 3,5 milhões de dólares, não conseguiu atrair senão a atenção de alguns poucos curiosos. Logo à primeira vista fiquei pensando: seria a beleza algo que se mostra por si, impondo-se aos nossos sentidos (nesse caso, auditivo), ou dependente de um contexto? Alguns interpretaram a reação do público como sendo de descaso, falta de tempo ou de preocupação com as coisas belas; em outras palavras, como se Bell houvesse jogado “pérola aos porcos”. Contudo, para mim há uma outra possibilidade: nosso julgamento do que é belo, bonito, esteticamente agradável etc., depende de local, predisposição e de um propósito coletivo. Seja como for, é muito provável que Joshua Bell tenha se sentido um pouco constrangido, afinal, talento é talento. É mesmo?

Felicidade

A leva de estudos sobre felicidade tem proliferado nos últimos anos. Há quem diga que felicidade se tornou uma área de estudos, à semelhança dos “estudos culturais”. Teríamos então algo como “happiness studies”. O foco: o que é a felicidade, por que somos ou não felizes, qual a origem do conceito e coisas do tipo. É verdade que, pelo menos nos livros que tenho visto, não há pretensão em se dizer “como ser feliz”, sobretudo porque a maioria desses livros é escrita por acadêmicos, em específico filósofos. Em termos de abordagem metodológica, não parece haver linha única. Vejo estudos focados em psicologia evolutiva, cognitiva e neurociências; há também os estudos genealógicos ou históricos, de cunho mais filosófico. Entre estes últimos, vale a pena o livro do professor de filosofia Darrin McMahon, “Felicidade – uma história” (Editora Globo, 2007). Em uma entrevista do autor ao Estadão, ele diz:

No mundo moderno, felicidade é um conceito ligado ao hedonismo, fundamentalmente. Ora, não dá para ser feliz num país onde, por exemplo, se pratica a tortura. Aristóteles definia a felicidade como a associação entre prosperidade e virtude. Os países subdesenvolvidos sofrem porque sabem que esse tipo de felicidade é quase impossível. Então, é inevitável a desilusão de alguém que se entrega a uma forma hedonista de ver o mundo. É provável que os sociólogos e cientistas sociais nunca cheguem a um consenso sobre o que torna os homens mais felizes, mas uma coisa é certa: a mídia e o marketing criaram uma idéia falsa de felicidade e vai ser difícil controlar essa onda hedonista no mundo desenvolvido.

A diagnóstico semelhante chegou o psicanalista Contardo Calligaris, em matéria da Folha dedicada à questão da felicidade (para assinantes). Nela, Calligaris também comenta, com elogios, o estudo de McMahon.  Transcrevo, agora, uma passagem do texto do psicanalista:

Na modernidade, a definição do que nos faz felizes fica bastante incerta, mas, paradoxalmente, a exigência de sermos felizes (sem saber direito o que isso significa) torna-se irrenunciável. Esse imperativo enigmático é uma peça essencial de nossa organização social. Explico. A felicidade é, hoje, uma aspiração obrigatória que, por sua indefinição, não pode ser satisfeita. Portanto, ela alimenta uma sede insaciável de objetos e prazeres. Essa sede sustenta nosso modo de produzir e consumir e nos leva a organizar nossas diferenças sociais segundo os “sonhos” que cada um conseguiu realizar (ou seja, pela inveja).

De minha parte, fico muito confortável para aceitar o diagnóstico de ambos. De fato, felicidade, hoje, significa prazer e consumo como obrigações morais. McMahon é cético quanto a esse novo ideal social; Calligaris não fica longe: na medida em que é obrigatória, a felicidade gera movimento de procura de satisfação, a qual é maximamente encontrada no consumo. Acho o seguinte: é pobre uma sociedade que encontra seus ideais de felicidade em um sabonete de banho, ou então em uma roupa, ou ainda na posse de um carro. Vivendo pelo e para o efêmero, isso é o que rege a ideologia da felicidade individual de nosso tempo.


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