Egocentrismo e infantilização

Inspirado por coluna recente do filósofo Paulo Ghiraldelli, a qual recomendo que o leitor leia antes de ler este post, escrevo algumas idéias sobre a relação entre egocentrismo e infantilização no desenvolvimento cognitivo (e moral) de certa juventude contemporânea…

Egocentrismo, em matéria de desenvolvimento cognitivo e mesmo moral, consiste em a pessoa colocar as referências de seu pensamento nela própria, nas questões que ela, a partir de sua percepção pessoal, julga que é o certo e o valioso. Em termos culturais, o egocentrista cognitivo tem dificuldade de interagir com o ‘outro generalizado’ da cultura. Não é por menos que, nos dias de hoje, proliferam as redes sociais, pois nelas tudo o que acontece é um grande monólogo assistido por ‘colegas virtuais’.

Em termos de percepção, o egocentrista não consegue ir muito longe de sua própria pele. Obviamente, muito de nosso conhecimento provém de nossas experiências, o que alguns estudiosos chamam de ‘first order experience’, quando vivenciamos uma situação dentro dos limites existenciais que, não obstante estejamos num contexto sociocultural, podemos (ou pretensamente pensamos) chamar de nosso, afinal, quem sente um cheiro somos nós (com nosso equipamento olfativo), quem vê uma outra pessoa somos nós (com nosso equipamento viso-perceptivo), quem ‘sente’ uma dor, uma emoção, etc., somos nós (por meio de nossos aparatos psicomotores, psicofísicos e assim por diante).

Contudo, há algo no pensamento que nos obriga a sair de nós próprios, em certo sentido. O pensamento é profundamente marcado pela semiótica do outro – pensamos com as ‘vozes’ de outros. Nossa linguagem ‘privada’, como demonstrou Wittgenstein, é uma grande ficção: a linguagem (essa matéria-prima essencial com a qual nos constituímos como sujeitos) é inteiramente social. O que ocorre é que nos apropriamos da linguagem em sua faceta social, devolvendo a esse mesmo ‘social’ uma estilização própria, a qual será, então, utilizada por outros como equipamento cultural. Mas, quando se é um egocentrista, não se consegue discernir o que há do outro em seu próprio pensamento, e então este é confundido como sendo algo brilhantemente inédito. Como consequência, e numa imagem, é como se a pessoa fosse como uma Idade Média ambulante, acreditando que ela é o centro do universo (ainda que, moralmente, publicamente, não assuma isso).

Muitas pessoas não conseguem ir além delas próprias. Quando são chamadas a falar em ‘terceira pessoa’, simplesmente embrutecem, ficam de ‘bico’, como uma criança. Aliás, a criança, egocêntrica por natureza (Piaget explicou isto), não consegue, cognitivamente, discernir ela e o outro – a partir do ‘eu’, generaliza o mundo que é, na verdade, uma espécie de projeção de seu mundo, e não do mundo mais amplo, marcado pela alteridade. Adultas, estas pessoas tendem a tomar o mundo delas como a medida de todas as coisas; tendem a julgar e a medir o mundo a partir de questões que são pessoais, no sentido mais egocêntrico do termo. Por meio de uma metonímia, confundem a parte pelo todo. Isso porque são, em geral, incapazes de empatia com o outro, incapazes mesmo de se verem a si próprias com outro olhar que não o seu olhar egocêntrico.

Ainda em termos cognitivos, e pensando no contexto de sala de aula, o jovem egocêntrico, muitas vezes desassistido por seus professores (eles também fruto de geração egocêntrica), não consegue desenvolver a capacidade de articular as idéias de outros (os autores). Não conseguem mergulhar em sistemas de pensamento e entender de que se trata tal sistema. Em vez disso, repetem alguns bordões, algumas leituras de orelha-de-livro, e nem isto muitas vezes fazem bem. Acometidos de dificuldades básicas de escrita e pensamento (problemas no ensino médio?), não conseguem redigir um texto escrito para um outro capaz de lê-lo (no caso, o professor). E, provando da surpreendente infantilização de nossa época, questionam a ‘capacidade didática’ do professor: se eu não consigo entender um autor, articular ideias, redigir um texto coerente, etc., a culpa só pode ser do professor. Isso lembra muito certa perversidade de filhos agindo na janela de culpa dos próprios pais, graças a qual conseguem muitas de suas conquistas. Ambos, professores e alunos, são igualmente responsáveis pelo processo de ensino-aprendizagem.

O aspecto que mais me chamou a atenção na reflexão de Ghiraldelli é de que nem o trabalho está mais cumprindo seu papel de passagem à vida adulta. Pois, de fato, o que é ser adulto? Na nossa imagem ocidental ‘clássica’, duas coisas principais ‘transformam’ alguém em adulto: o trabalho e a constituição de família. Por que o trabalho nos tornaria adultos? Primeiro, pelas responsabilidades que ele exige de nós; depois, porque, no trabalho, somos continuamente confrontados com nossos limites e incapacidades, e a elas temos de reagir, em vez de corrermos para debaixo da saida de nossos pais. No trabalho, além disso, somos colocados diante de conflitos sociais de ordem bastante séria, como a divisão de pessoas conforme o quanto ‘contribuem’ para a sociedade (o que culmina, entre outras coisas, na divisão de classes). O trabalho é, em certo sentido, o lugar do confronto, do embate, da imposição de si e da dominação.

Ora, quando o trabalho não cumpre seu papel de “civilizar as crianças” (em sentido amplo), o que pensar da própria educação, a qual, em nossa sociedade, acaba se justificando em nome do trabalho? Professores dizem: “Olha, vocês devem tratar a situação de sala de aula como um trabalho, pois lá, no trabalho, não vai ser moleza não!”. Será verdade? Será que nossos alunos, quando não estão muito a fim de levar a sério uma aula (pois seu interesse é no diploma), eles estão arriscando seu futuro? Qual futuro? Um futuro num mercado de trabalho igualmente infantilizado? (Uma prova disso: a abundância de literatura de auto-ajuda que existe hoje nos contextos corporativos, e certa cultura de “pragmatismo”, que desvaloriza a reflexão e coloca, cada vez mais, o peso decisivo de tudo nos “resultados”, não importa como são obtidos!).

Um pouco mais de reflexão sobre este assunto pode ser encontrado aqui.

Desconfiança

A prática cotidiana da observação (ou projeção, poderia sugerir um psicanalista) da vida em coletividades tem me levado a desenvolver uma profunda desconfiança (há, com certeza, exceções, mas não vou me ater a elas neste relato) em relação a:

1) Pessoas que dizem que estão ‘sem tempo’ porque estão ‘trabalhando muito’, que o trabalho lhes ‘consome a vida’, que ‘temos de rever’ esta ‘perversidade’ das organizações no mundo de hoje, sempre a nos exigir mais e mais engajamento, mais e mais trabalho, atividades, etc.

1.1) Ao falar dessa maneira, penso que tais pessoas têm é muito tempo para si, e criam tais racionalizações para colocar um paliativo sobre sua inércia, ou então para justificar, para elas próprias, a impossibilidade de desenvolverem um patamar de atividade que desejam em seu íntimo;

1.2.) Alternativamente, existem pessoas que, de fato, trabalham muito – e, neste caso, quando elas falam sobre isso, talvez seja porque não querem, no fundo, trabalhar tanto, mas criticam, denunciam para um “outro generalizado” essa sua incapacidade de controlar a própria vida, de colocar-se limites.

A) Acredito que, quem trabalha bastante, mas está de bem consigo mesmo em relação a isso, não fica, qual um ‘profeta’, a dizer o que as outras pessoas deveriam fazer. Para mim, há um cheiro de forte conservadorismo nisso, a tentativa de manter uma espécie de status quo pessoal, o autoritário desejo de regular a vida dos outros ou então de fazer sermão, ou ainda um monólogo consigo própria – quando imagina que está acrescentando algo de novo a uma conversa.

2) Pessoas que critiam o ‘produtivismo’ acadêmico, que denunciam a ‘cooptação capitalista’ de pesquisadores em relação à quantidade (em detrimento da qualidade). Claro que, neste caso, estou me referindo à categoria de docentes/pesquisadores, onde tais queixas e ‘críticas’ são comuns.

2.1.) Ao falar desta maneira, vale, penso eu, o mesmo princípio de 1.1.: elas estão dizendo isso para si próprias, estão tentando racionalizar sua própria baixa produção ou, então, estão tentando dizer a elas mesmas que estão fazendo uma coisa sem saber direito porquê – e que, no fundo, não acham certo. Ou, caso mais conspiratório, estão tentando convencer os outros a produzir menos – enquanto elas continuam a surfar nos ‘mega-n’ publicados. Conheço um punhado de gente que publica bastante (inclusive internacionalmente) e, aqui entre nós, fica escrevendo ‘ensaios críticos’ contra o produtivismo;

2.2.) Novamente, num tom conservador e autoritário implícito, tentam, com seu discurso, ventilar uma idéia de ciência e de profissão que é, no fundo, delas, não necessariamente das outras pessoas. Quantitade é, sim, possível com qualidade, pois há (desculpem a redundância) pessoas e pessoas.

B) Eu acho que, quem quer produzir, que produza; se isto que está fazendo é ‘quantitativismo vazio’, problema de quem está fazendo. Não consigo imaginar reais pesquisadores, gente que, efetivamente, contribui para o seu ofício (é óbvio que todo mundo não contribui da mesma maneira…e, sem ser polido/hipócrita, há quem não contribua, pronto!), ficar criticando que ‘estão produzindo muito’. A questão é outra. Como se diz, o furo é bem mais embaixo. Imaginem alguém contemporâneo a Freud dizendo, por Viena afora (como uma Maria chorona): “Nossa, a vida é mais do que ficar escrevendo o dia inteiro” (pois Freud devia escrever muito ao longo de um dia…).

3) Pessoas que dizem que ‘há coisas mais importantes na vida’ do que o trabalho, que este não é nada exceto uma forma de ganhar a vida (e não de ‘perdê-la’), que devemos ‘olhar mais a lua e as estrelas’, que devemos ‘ficar com quem amamos’, que devemos encontrar outras ‘prioridades na vida’, balanceando mais as coisas.

3.1.) Quem diz isso pode, no fundo, não gostar muito de trabalhar (não há nenhum problema nisto, afinal, o embate entre ‘princípio de prazer’ e ‘princípio de realidade’ é quase algo “constitutivo” do ser humano), ou então não entende nada sobre seu papel na vida de algumas pessoas. São grandes metafísicos enrustidos, pois devem ter algum critério substantivo para dizer o que é ou não ‘importante verdadeiramente’ na vida. São cristãos disfarçados, sem o saber. Caso tivessem algo mais substancial a dizer, o diriam, em vez de repetir bordões criados pela mídia e pelas revistas de auto-ajuda;

3.2) Novamente, podem, inconscientemente, estar dizendo a si próprias que não deveriam trabalhar tanto, ou então que não há problema, perante seu próprio superego, de não trabalhar tanto, ou de trabalhar ineficientemente ou (para ficar com um termo menos ‘capitalista’) de uma forma que seu próprio ritmo pessoal estabeleceria se pudesse.

C) Acho que cada um estabelece o que é prioridade e importante em sua vida. Vivemos numa sociedade relativamente pacificada, cujas fronteiras nos permitem, relativamente, pensar em coisas ligadas a nosso cotidiano (como as três que menciono aqui) – se é assim, se não vivemos em uma sociedade totalitária, metafísica, ideal, então cada vida se justifica por si, mesmo que esta vida esteja imersa dentro de um contexto social, econômico, histórico. A babozeira de que a ‘história sabe mais do que nós’ nos coloca na boca palavras vazias, discursos ocos, como os que destaquei acima.

Moral da história: viva e deixe viver. Não vale a pena brigar com o mundo e com as outras pessoas. Vale muito mais a pena tentar pensar consigo mesmo o que é válido e valioso para você. Uma vez descoberto, é sustentar isso, com todas suas consequencias, na vida social, na vida pública. Repito: não vivemos um “estado de exceção”: vivemos com relativa tranquilidade, em nossos pequenos feudos protegidos. Então, por que travar guerras contra pessoas que, a rigor, não estão nem aí para nós?

Força de vontade

1.  Força de vontade, em nossa cultura, é frequentemente associado a coisas como perder peso, deixar de fumar, conquistar um sonho/objetivo, vencer no esporte; ou seja, associado à mudança de hábitos e a ideais a serem conquistados, a limites a serem superados (especialmente, limites pessoais, individualistas);

2. O mesmo se pode dizer do uso da expressão ‘força de vontade’ aplicada a casos em que não faríamos determinada coisa se não fosse por um ato de vontade, um ato contrário a alguma força de natureza desconhecida mas que nos faz fazer algo que, conscientemente, não faríamos. Neste sentido, ter força de vontade diz respeito ao sujeito moral, àquele que é responsável por seus atos;

3. Força de vontade, novamente em nossa cultura ocidental, está associado à ‘força’ em sentido mais estrito: força fisiológica. Neste caso, ter força de vontade é ser, fisiologicamente, capaz de lançar-se em um determinado curso de ação sustentado pelo corpo biológico (se estou relativamente em forma, sou capaz de perpetuar uma ‘força’ que, de outra forma, não conseguiria). Isto lembra aquelas propagandas de vitamina C, em que a pessoa que usufrui da mesma consegue enfrentar, com ‘vontade’, um dia pesado;

4. De algum modo, há uma relação tensa entre vontade e desejo: enquanto este vai por si, aquela precisa ser desenvolvida, sustentada, mantida (fala-se, por exemplo, “Eu tenho vontade de”…, mas isto seria mais corretamente dito como “Tenho desejo de…” [embora se guarde aqui alguma conotação sexual e, portanto, se opte pela primeira alternativa]). Talvez seja (em parte) por isso que o tema é debatido em filosofia moral;

5. E quanto à vontade em sentido mais cotidiano? O que você faz quando não está com ‘vontade’ de sorrir, de conversar com uma pessoa qualquer? Quanto, num evento coletivo (uma aula, uma reunião, etc.), prefere ‘deixar passar’, sem sentir-se com ‘vontade’ de defender seu ponto de vista (admitindo que você conheça e tenha um ponto de vista ao qual se pode chamar de seu)?

6. A apatia, a acédia, a preguiça, o torpor da inação, o deixar-se levar não apenas pelo fluxo do próprio pensamento (inverso à ação, neste caso), da situação, da atividade, do evento coletivo a se desdobrar na sua frente. Penso que isso ocorre, afora razões de ordem psicológica, pelo fato de estarmos imersos em muitas situações sem sentido, desconectadas de aspectos mais amplos e profundos de nossa existência. Vivemos, muitas vezes, apenas encenações que não demandam de nós uma ‘força de vontade’ eticamente necessária. Não seria muito chato ter ‘força de vontade’ em qualquer momento? Um ativismo sem fundamento, sem finalidade, absorto em 4 paredes?

7. É impressionante, pois, a cada ato seu que não é assentado em alguma vontade, é o fluxo do mundo, das pessoas e das coisas, do tempo em suma, que se impõe; é a fisiologia que se desdobra – somos pura fisiologia na ausência da vontade. É claro que esta última, a fisiologia, tem vontade própria. Em certo sentido, foi isso que Schopenhauer nomeou de a ‘vontade da natureza’, essa força cega, mas absurdamente forte e insistente, logo depois chamada de pulsão de morte por Freud. A vida, a fisiologia, tende a buscar sua perpetuação; sua ‘força de vontade’ é descomunal. Schopenhauer era um ‘desconfiado’ da vontade;

8. De onde vem a vontade? Não é, decerto, a ‘motivação’ do pensamento gerencial moderno, impregnado e imbecilizante (pois é óbvio que, ao não se ter vontade na empresa, a mais valia não é extraída – no mundo público, exceto em alguns casos de ambição pessoal, a falta de vontade é absurda, pois muitas pessoas, ao terem sua vida material resolvida, simplesmente exibem, para si e para os outros, que sua vida perdeu o sentido, virou um deserto, preenchido com pequenos consumos); a vontade vem…bom, isto é assunto para outro post, em algum momento.

Economia criativa em São Paulo

Acaba de sair um relatório bem completo e interessante da Prefeitura paulista sobre as indústrias criativas na cidade de São Paulo (“Economia criativa na cidade de São Paulo: Diagnóstico e potencialidade). São dados recentes e animadores sobre o setor. Os interessados podem acessá-lo aqui.

Aperto de mãos (março 2012)

O que significa este aperto de mãos? Dois presidentes, 16 anos da história contemporânea do Brasil. Gosto muito de pensar nos gestos particulares que remetem a conjunturas bem além. Não se trata de um mero aperto de mãos de dois indivíduos; há muita história entre esse aperto de mãos. Semioticamente, plenamente carregado. Obviamente, não destaco o momento do aperto de mãos (março, atual conjuntura); olhe através do aperto em questão: veja o passado, imagine o futuro. Acho que este gesto é um nano-episódio de nossa história (repito: desde que você olhe além do imediatismo do gesto).

Carne e pedra

Uma notícia me chamou a atenção hoje. Na Avenida 23 de Maio, em São Paulo, um porco caiu de um veículo em movimento e foi atropelado (ver imagem).

Richard Sennett, importante sociólogo norte-americano, escreveu um livro bem interessante, publicado no Brasil há alguns anos, chamado Carne e Pedra. Nele, Sennett discute a relação entre o corpo (humano) e a cidade, a metrópole.

São Paulo, das cidades brasileiras que conheço, é uma das que mais me dá a sensação de concreto: não no sentido de algo sólido, obviamente, mas no estrito sentido de que é uma cidade absolutamente moldada à imagem do concreto, esse material que tenta imitar, humanamente, a “solidez” da natureza (o concreto, nesse sentido, é um exemplo de natureza humanizada). Refiro-me à pouca proporção entre verde/cinza, o que, decerto, não deve ser “privilégio” só da capital paulista. Mas, seu tom cinza sempre me amedrontou.

O contraste entre o cinza e a pele limpidamente rosa do porco me fez lembrar, mais uma vez, desse abismo que as cidades impõem entre o orgânico e o inorgânico, entre o corpo e o concreto. No caso do animal em questão, o dilema é ainda mais paroxístico, pois o porco, apesar de um “ser vivo”, seria, muito provavelmente, abatido pelo seu proprietário – que, aliás, como diz a matéria que eu li, “fugiu do local”.

O porco, nesse quixotesco acontecimento, só me fez lembrar do quão impregnados de “cinza” nós estamos. Sua situação [a do porco] é ainda pior que a dos cachorros de rua, frequentemente atropelados por motoristas apressados, com olhar fixo no cinza do horizonte (aliás, dentro do próprio carro é cinza…). Sua situação é pior pois ele é um objeto em sentido duplo: ao ser alimento (objeto-carne, bacon, etc.), e ao ser, aí sim como qualquer outro de nós, mais um corpo frágil na cidade.

Sujeito coletivo

Adam Smith, o conhecido “pai” da visão moderna de homem como agente econômico, acertou em cheio num ponto: o ser humano é movido por interesses egoístas. Uma espécie de força atávica nos arranca da inércia e nos precipita na busca infindável de nossos interesses. Alie a isso uma sociedade de consumo, e, pronto, temos a receita completa de uma forma de conceber o “motor” da ação.

O sujeito das organizações, das empresas, é um sujeito econômico. Ele faz o que faz embalado pela remuneração – embora salário gordo não quer dizer pessoa que preste. Marx e sua leitura do capital como um motor; porém, do sujeito particular, não necessariamente do sujeito coletivo.

E quem seria o “sujeito coletivo”? Por que uma escola particular é “melhor” do que uma escola pública da periferia? Por que em bairros de gente com dinheiro não existe ONG humanitária? Ou então algum “equipamento social” de assistência? Pois numa “comunidade” com dinheiro, este é o próprio motor da ação – da construção das casas, da segurança, da urbanização, da limpeza das ruas, das escolas e, sobretudo, da plataforma subjetiva em que se assenta a vida humana. O “amor”, por exemplo, parece encontrar solo mais “propício” em lares fartos (veja que coloquei ” ” nas palavras!).

Em comunidades pobres, o poder de agência é, em geral, público. Ou então de instituições do chamado “terceiro setor”. As dificuldades que as instituições ali sofrem são dantescas: testemunham, na beira do mundo “civilizado”, o que se passa quando não se tem um sujeito coletivo, quando a ação ou agência se ancora, unicamente, no instinto (na verdade, na razão) de sobrevivência. Violência, drogas, prostituição, homossexualidade infantil, fatricínio, latrocínio, doenças psicológicas, decadência ambiental, etc. Profissionais mal-remunerados têm, a cada dia, de levar o catequismo da “dignidade humana” a quem não a tem, não a quer ou simplesmente não a pode obter por si mesmo.

Em que consiste “fazer civilização”? Em que consiste viver juntos? Em que consiste o sujeito coletivo? Por que é tão difícil, aparentemente (não tenho experiência nisso, e, portanto, o que digo não esgota a realidade, sendo, muito antes, talvez apenas uma pálida e distorcida visão dela), fazer pessoas que não têm capital econômico mobilizarem-se até mesmo para cuidar de si próprias? E por que, intuitivamente, é o desânimo que se abate sobre profissionais encarregados de lutar nessa batalha?

Só sei que clichês não resolverão o problema da desarticulação do sujeito coletivo. Ao mesmo tempo, sinto que, para este se revelar, é preciso algum tipo de “faísca”. Pergunto ao Marx de tempos idos: onde está a “inteligência geral”? Onde está a astúcia do sujeito coletivo, pobre e sem “equipamentos” para entender a complexidade desse mundo?

Pensar grande, pensar pequeno

O que significa, para um país, pensar grande? Tirar as pessoas da miséria? Permitir que sua população tenha qualidade de vida, perspectivas, futuro? Favorecer o mercado, o desenvolvimento do capitalismo (como se este fosse “algo”…)? Um sentimento triste acometeu-me hoje ao ler a notícia de que nossa base militar na Antártida foi destruída por um incêndio. As perdas foram “incalculáveis”, na expressão de um pesquisador. E, provavelmente, o foram.

Pense num exemplo. Imagine que você tenha toda a sua vida num computador – digo, sua vida profissional (sua tese, por exemplo). E considere que não tenha feito cópias de segurança do conteúdo (e não pense que tenha sido por descuido, mas, simplesmente, porque deixou-se levar pela rotina, e outras prioridades apareceram que lhe distraíram nesse sentido). Agora imagine que seu computador, com todo seu conteúdo, sofra um acidente e tenha uma perda irreparável. Você perde tudo. Anos e anos de dedicação, organização, sistematização. Tudo vira pó. Tente imaginar sua desolação.

A Estação de Pesquisa Comandante Ferraz começou a operar em 1984. Muitas pesquisas foram realizadas lá desde então. Muitas pessoas envolvidas. Gente séria, preocupada em fazer alguma diferença, em descobrir evidências que nos permitam compreender melhor nosso planeta, seu ecossistema. Porém, a perda não foi só científica. A perda, a meu ver, é para o país inteiro. É claro que o Brasil (como qualquer outro país), nos faz perder coisas – com a violência, por exemplo, ou então a fome, a picaretagem na políica e assim por diante. Mas perdemos algo mais com essa tragédia, perdemos um grande exemplo de como um país pode pensar grande, de como pode sair de seu cotidiano imediato e fazer coisas com valor que escapam de suas fronteiras. Lamento muito pelo ocorrido, e lamento ainda mais por saber que, muito provavelmente, quase ninguém está dando bola para isso.

Abundância e escassez

Freud dizia que a natureza não distribui igualmente entre os homens a capacidade de sublimar o sofrimento provocado pelo fato de vivermos civilizadamente. Contudo, ao que parece, a capacidade de sofrer é democraticamente farta para toda criatura viva neste mundo.

De minha parte, acho que a “zona de sombra” é a pior de todas as experiências cotidianas que podemos ter. Explico. Tal zona é aquela em que, misteriosamente, sentimos que algo está errado, profundamente errado, mas que não sabemos como dar a volta por cima, como, por exemplo, sublimar pelo gênio.

Quando não alcançamos o estágio anterior, de sublimar “dignamente”, caímos numa zona disforme: somos os pessimistas, os anti-sociais, os ingênuos, ou então os críticos e céticos. Nas categorias sociais, ficamos numa espécie de limbo. É como se eu me sentisse genial em matéria de ver que as coisas estão erradas, mas um analfabeto em termos de usar o insumo desse “estão erradas” para produzir algo de valor. Dar a volta por cima, como eu disse.

É como se eu vivesse numa abundância de percepção, sensações, intuições, e numa escassez de “inteligência” para dispor dos dispositivos ou recursos culturais e psicológicos para … dar a volta por cima. Misteriosamente, porém, sinto que se eu tivesse escassez na primeira ponta (percepção sub-liminar ou algo do gênero para o sofrimento, o erro, a “folclorice” do cotidiano), não adiantaria abundância na segunda. Aliás, talvez sequer adiantasse ter a segunda.

Classe média: o debate do momento

Corre na mídia, nas últimas duas semanas (pelo menos que eu acompanhei – por exemplo, em reportagens da Carta Capital), a discussão sobre de que natureza é a nossa “nova” e emergente classe média. Como se sabe, este “estrato” social tem crescido desde o Governo FHC e, notadamente, no Governo Lula. O ponto essencial da discussão, que a mim cheira como uma espécie de ultra-conservadorismo travestido, é sobre se o critério econômico é a melhor (ou a única, como se sugere estar sendo…) medida para se dizer que um grupo social pertence a um determinado estrato.

A classe média, dizem tais ultra-conservadores, está crescendo apenas à sombra de indicadores econômicos, como emprego formal, aumento de renda, e, consequentemente, consumo.

Na mesma Carta Capital, uma revista que, curiosamente, às vezes acho ultra-conservadora (lobo em pele de cordeiro), li diversas matérias de “liberais” criticando a “zumbice” de hordas de pessoas indo às compras nos shoppings centers, “poluindo” a cidade. Não me esqueço, a esse propósito, belíssima coluna de Maria R. Khel sobre uma espécie de “vício” de nossa herança escravista, o de esperar que “o pobre” nos atenda sem “reclamar”, e que, uma vez tais “pobres” ascendendo à classe média (econômica), passariam a ter maior consciência política e a recusarem-se a uma invisibilidade social dócil.

Então, nas entrelinhas, a mensagem: classe média envolve, também (ou sobretudo), educação. E num sentido estrito de “conhecimentos”, diploma, etc., quanto num sentido mais amplo: etiqueta, gosto, refinamento e coisas do tipo. A situação, que, não sei, pode ser transitória, lembra o cisma histórico entre aristocratas e burgueses, ou então a imagem de senso comum do indivíduo com dinheiro, mas ignorante.

Em coluna recente, Paulo Ghiraldelli Jr. faz uma discussão interessante sobre o assunto, “dialogando”, imaginariamente, com o filósofo José Arthur Giannotti, que participou de programa recente na Band para tratar do assunto. Um dos pontos de Ghiraldelli é sobre o suposto “elitismo ingênuo” de Giannotti, ancorado na idéia de que a educação é imprescindível para quem está na classe média.

O ponto é bem interessante, e podemos pensar no papel que o trabalho representa nisso. Por exemplo, Ghiraldelli estima que a educação da classe média não vai sair “à força”, mas virá “organicamente”, no ritmo da própria classe média. Mas de onde vem o dinheiro que sustenta a classe média senão do trabalho? E como trabalhar sem educação formal “apropriada” ou “suficiente”? Isso coloca em questão o sentido da educação: na figura de linguagem do “elitista ingênuo”, para usar expressão de Ghiraldelli, talvez a educação seja o bastião que impede a alienação degradante; educação como “elevação do espírito”. Ora, talvez isso só sirva para alguns poucos e “iluminados” acadêmicos.

A educação “orgânica” da classe média será, mais radicalmente do que já é, uma educação instrumental. Mas até esse tipo de educação, que, veja bem, não estou a menosprezar aqui, pode ser colocada em segundo plano, afinal, a classe média que “ascendeu” graças ao trabalho (formal) é, provavelmente em sua maioria, egressa (se o for!) de escolas particulares, universidades particulares.

Concordo com a visão estreita do elitismo ingênuo. Acho que, para esse pessoal, um antídoto para essa classe média crescente talvez seja frequentar a Université Paris I, ou Sorbone. Ghiraldelli acerta ao propor um olhar menos “marxista” ou menos “pudico” ao fenômeno em questão. Mas Ghiraldelli deixa de enxergar um ponto: ao dizer que a educação virá “na medida da necessidade”, e que o objetivo é ser feliz agora (em parte, patrocinado pela ampliação do trabalho formal), se esquece de que o trabalho, base desse crescimento econômico, dependerá, sim, de educação, e muita. A questão, a meu ver, é qual.

***

Obs. (1): Veja-se, a título de mera ilustração da indagação com a qual encerro o post, o problema do “apagão de talentos”, dramatizado, em alguns setores específicos (e “estrtégicos”), pela oferta de postos de trabalho e ausência de mão-de-obra qualificada. Ou seremos um país com uma classe média de trabalhadores extraídos do “exército de reserva”? Aliás, pergunto, ingenuamente, ao um Marx imaginário: seria possível construir uma “classe média” com membros de tal exército?

Obs.(2): A educação foi (ou ainda é) um importante escoadouro teleológico: muitos sistemas tentaram mudar o mundo a partir da educação, que conteria, “em si”, os germes do desenvolvimento do humano. Quando dizemos que é a própria “dinâmica” da classe média que estimulará seu conceito de educação, ficamos do lado da distopia, da pura contingência – à primeira vista. Mesmo que desinflacionemos o mercado, é difícil não ver o bicho se espreitando na “dinâmica da classe média”. Criticar o conceito de educação “elitista” de Giannotti, que, em tese, o permite dizer que, passado o consumo, haverá como que uma “horda infurecida”, implica em não colocar nada no lugar e deixar a história (com “h” totalmente minúsculo) no reino do “empírico” (que, penso eu, será o mercado…ou não, realmente não dá para vaticinar).


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