Célula

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Imitação

Na sensibilidade moderna, a imitação (mimêsis, imitatio) possui uma conotação negativa, associada ao plágio de uma idéia, à reprodução passiva de algum modelo existente, em suma, imitar é entendido como o inverso de criar, de ser autêntico, singular, criativo. Tem-se, na nossa época, a crença de que a originalidade, apesar de depender de modelos, paira acima do status quo da época e se fixa na mente criativa do artista (ou do profissional – por exemplo, no mundo acadêmico).

Talvez essa conotação negativa reenvie, mesmo sem o saber, a Platão, para quem havia uma nítida demarcação entre ilusão e realidade – por exemplo: a forma natural da cama (como sendo a que Deus criou), a cama feita pelo marcineiro, e a cama pintada por um pintor. Para Platão, poetas não deveriam ter voz importante na pólis, uma vez que lidavam com a imitação (imperfeita) das formas ideais, sendo propagadores de idéias enganadoras. O mesmo talvez se pudesse dizer da retórica: a arte de “encantar” com as palavras.

Já para Aristóteles, a mimêsis, ou imitação, estava relacionada com a arte de imitar a natureza, não contendo, necessariamente, um componente de ilusão ou falsidade. Para Aristóteles, imitar significava fazer como (a natureza, por exemplo), e a cópia da realidade não lhe era algo servil, uma vez que o artista colocava algo dele, de sua intenção (voluntas), no ato de imitar. Portanto, imitar continha algo de artifício, não necessariamente no sentido de falsidade, mas no de intervenção do sujeito. O artista poderia, nesse sentido, imitar como as coisas foram ou são, como se diz que as coisas são ou foram, e como as coisas deveriam (ou poderiam) ser.

Apesar de nosso discurso aparentemente moderninho e “revolucionário”, somos grandes imitadores – tanto no sentido original de mimêsis, como, e infelizmente, no sentido de plágio. É notável que vivamos em uma época cujas pessoas (muitas, não todas, é verdade…) acreditam estar sendo absolutamente singulares e inovadoras. Fenômenos de massa (como os descreveu Le Bon, por exemplo) continuam a existir, só que não se aparentam como tal. No mundo universitário, imitamos uns aos outros muito mais do que gostaríamos de admitir. Imitamos trejeitos linguísticos, gêneros discursivos (uns são mais imperfeitos [ainda bem!] do que outros), até as piadas nós imitamos (dependendo da área). Não digo plágio, no sentido estrito, digo imitação – como uma atitude que depende de alguma forma de voluntas em relação a modelos que nos antecedem.

O trabalho é uma atividade na qual vemos a imitação em jogo. Quando imitamos alguém que sabe mais do que nós, estamos, de um modo ou de outro, aprendendo; quando mudamos o que aprendemos (por imitação), já estamos introduzindo um elemento de estilização, estamos nos colocando em posição diferente da submissão passiva a modelos recebidos. Claro que há plágio (repetição pura e simples, sem variação), mas quero acreditar que há mais imitação/representação. Apropriamo-nos de idéias, teorias, modelos; dependemos deles, às vezes em relação de inveja e competição, para avançarmos. Portanto, muito mais honesto conosco próprios é pensar que, sempre, estamos numa tensão entre submissão, imitação e criatividade – embora, para nosso desgosto moderno, esta criatividade seja bem mais modesta do que o idealizado.

Bentha

Olha aí, minha cachorra indo para a Internet…

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Embromação (2)

As línguas são realmente fantásticas. Veja-se o caso da palavra “embromação”, em português. O que ela significa em seu sentido comum? Em termos mais técnicos, qual seria a “extensão” da palavra (Tarski)? A extensão da palavra diz respeito a todas as descrições pragmaticamente possíveis desta palavra em uma linguagem.

Embromação pode significar: enrolação, embuste, mentira, tapeação, armação, fingimento. Em termos mais compostos: passar o tempo, fazer mal feito, não fazer algo e dizer que está fazendo. Ou seja, embromar tem a ver com aparecer, com fazer de conta. Na tirinha do Dinâmica de Bruto, que coloquei abaixo, o “embromation” ocorre quando uma pessoa não sabe fazer alguma coisa – cantar, filosofar, pintar… Embromamos quando não sabemos o que fazer, ou quando o sabemos apenas vagamente.

Podemos também pensar que o “embromador” faz algo que não está ligado a seu desejo. Nesse sentido, seu maior inimigo é o tempo; melhor: a temporalidade. É como se, não podendo preencher seu tempo com atividades que, de fato, corresponderiam a seu desejo, fosse preciso fazer o tempo passar com “qualquer bobagem”. O embromador se auto-engana, e, mais grave ainda, o “embromado” é, na hipótese mais ingênua, enganado; na hipótese mais cínica, o embromado é um leviano, que não rompe a farsa. Por exemplo: o que deve fazer o professor quando o aluno está embromando? Quando, num seminário ou exposição em que tem de se revelar minimamente articulado, fala uma linguagem oca? E o que o próprio aluno, na situação inversa, que está diante de um professor embromador, pode fazer? Quando tal professor passa atividades sem finalidade pedagógica aparente, ou quando, da mesma forma que o aluno (embora em outro nível), tem uma linguagem oca? O mesmo se poderia perguntar em relação ao participante de palestras de auto-ajuda, ou a um vendedor e muitos outros “atores” da vida social contemporânea.

Mas o discurso da embromação pode também ser uma arma: quando queremos acusar, diminuir a credibilidade de alguém, podemos dizer que essa pessoa está embromando. Nada mais cínico do que isso também.

Há, provavelmente, alguma antropologia no ato de embromar. Talvez tenha a ver com o conhecido “jeitinho brasileiro”, situação típica na qual os envolvidos sabem estarem engajados num simulacro – finja que compreenda o que eu falo, e eu finjo que estou sabendo o que estou falando. Repetições enfadonhas, truísmos mais rasteiros, metáforas estapafúrdias, linguagem privada (delírios mentais) passando-se por fala pública, brincadeirinhas ansiosas, “dinâmicas para revelarem-se os sentimentos”, paráfrases, orelhas-de-livro, sentenças “eu-acho que”, e tantas outras, compõem o cenário da foule à deux da embromação.

Fábula sobre a vida social

Normalmente, quase ninguém possui ratos de estimação – pelo menos não como fazemos com os cachorros e gatos: convivendo conosco no dia-a-dia, compartilhando conosco o cotidiano. Ratos, em geral, vivem uma vida clandestina, não podendo tomar parte do convívio amigal com os humanos. Eles não são bem-vindos: se achamos um rato em casa, tratamos logo de colocá-lo para fora (na verdade, o impulso é matá-lo!).

A vida clandestina do rato complica sua busca por comida. Ratos não têm uma vasilha para comer, onde humanos lhe colocam ração duas vezes ao dia! Precisam sair para caçar restos de comida, pedaços de pão velhos, alguma sobra. Para sair da toca e voltar com segurança (e com o alimento), o rato precisa empreender um verdadeiro malabarismo – sair à noite, espreitar por frestas, arrastar-se sorrateiramente e, caso seja flagrado, precisa desaparecer como fumaça, sendo mais rápido que seu possível predator (frequentemente, um humano).

Ao vencer a luta diária pela comida, em um lugar hostil (a casa onde ele não é bem-vindo), volta para a toca, come e, provavelmente, dorme. A tranquilidade termina quando é hora novamente de voltar a se inquietar com o estômago.

Alguém sabe me dizer se os ratos, depois de alimentados, gostariam de dividir o convívio com os humanos? Brincar com estes? Correr atrás de objetos lançados pelos humanos e trazê-los de volta, felizes com a conquista? Dificilmente. Os ratos, imagino, não toleram os humanos; não foram feitos para conviver com estes em ambiente compartilhado.

Contei esta estória sem sentido sobre ratos e sua busca por alimentos para falar, metaforicamente, sobre o que acho que às vezes é o ser humano vulgar (=comum): só sai de casa para buscar alimento. Quando convivem no espaço público com outros seres humanos, muitas vezes o fazem por pura distração. Não vêem a hora de voltar para casa com o alimento e ali repousar. Poucas pessoas, se fossem efetivamente “normais”, sairiam de casa de bom grado, exceto se tornassem tal saída um expediente privatizante (“vou sair com a minha turminha num lugarzinho da gente…”). Pois, contra toda uma lenda histórica, talvez só os gregos, em sua sabedoria adulta de “cidadãos da polis”, realmente se importassem em sair de casa para discutir, com outros, o destino comum….

Vontade de partir

O que nos faz enraizar num lugar? Talvez, considerando a história da humanidade, sejamos muito mais nômades do que criaturas sedentárias. O problema é que, nos assuntos humanos, o tempo, a insistência e a repetição têm um valor importante. Não dá para começar algo e logo interrompê-lo. A menos que abracemos a idéia de uma vida errática, sem trajetória fixa.

Acho que o homem (gênero), mais do que a mulher, tem sempre dentro de si o desejo de abandonar tudo, de deixar tudo para trás. Uma verdadeira utopia: em Passargada, seremos amigos do Rei… Em algum outro lugar nossa vida pode desabrochar mais do que neste em que estamos.

E por quê? Talvez porque não consigamos honrar desejos que achamos que tomamos em outro momento, no passado. Os desejos de hoje, realizados, parecem não deixar em você nenhuma sensação de identidade: eu quis isso? Eu fiz o que fiz porque queria estar onde estou? É às vezes difícil se conectar consigo mesmo no passado, exceto por um compromisso moral (assumi, cumpro).

Mas a mobilidade traz custos às vezes elevados. Além disso, ela depende de competência e de um “mercado” – não podemos nos dar ao luxo de ir embora para onde quisermos: é preciso haver emprego. E, junto deste, a reprodução da vida (comer, beber, morar, divertir-se). No passado brasileiro, um exemplo foi o fluxo migratório aqui do Nordeste para o Sudeste (hoje sendo invertido). As pessoas iam atrás de emprego. A mobilidade era colada à sobrevivência.

Há, apesar de tudo, um encanto sedutor, hipnótico, no desejo de mudança, de deixar o lugar em que se está. Ainda mais quando temos “vários mundos” em nosso espírito!

Para entender essa vontade de des-investir, de deixar tudo em nome de uma “nova vida”, um bom livro literário é Doutor Pasavento.

A psicologia da lerdeza

No post anterior falei do “mal” do ansioso, embora meu texto tenha ficado ligeiramente ambiguo. Agora, aproveitando o ensejo, gostaria de dizer umas palavras sobre a lerdeza. Há, logo de cara, um certo torcer de nariz quando se fala que alguém é lerdo, pois isso é moralmente muito carregado: nenhuma pessoa chamada de “lerda” vai ficar feliz com isso!

Mas, deixando a frivolidade dos espíritos fracos, daqueles que não vão além das obviedades, o que  poderíamos perguntar à lerdice? Ela nos poderia dizer algo? Ela pode nos dizer o seguinte: o lerdo é alguém defasado com o ritmo das outras pessoas. Ele vive o tempo dele. Se o ansioso vive o tempo dele para mais, o lerdo vive o tempo dele para menos: tudo e todos podem esperar! Numa visão mais negativa, é algo como: “que se danem os outros, eu tenho meu tempo; quem quiser, que me engula!”.

Mas o “lerdo” pode ser também uma pessoa que sabe degustar o tempo das coisas, ou seja, que não vê seu “eu” ameaçado quando as coisas não saem no tempo desejado. Ele está, como se diz popularmente, “de boa”. Claro que, nos contextos de trabalho “competitivos”, não há espaço para o “lerdo”, pois ele frequentemente perde o bonde da história. Mas, em outros contextos (lembremos que “os contextos competitivos” são 1% da humanidade), a lerdisse tem seu espaço e sua vez.

Junto com a lerdisse emerge a própria característica do sujeito. Se o rápido, na visão de senso comum, é taxado de ansioso, frívolo, instável, superficial, o “lerdo” é deixado à sua própria sorte: ele está dizendo, muitas vezes, que ele “está fora”, que ele não depende de sua imersão naquilo que ele acha que é “o ritmo dos outros”. Ele pontua-se: eu sou eu, vocês que fiquem com o ritmo de vocês! Tanto no caso do ansioso como neste do sujeito com uma temporalidade diferente (mais “lenta”), temos o mesmo ponto: é preciso posicionar-se.

Acho que deveríamos pensar mais sobre a lerdice, para além dos preconceitos boçais. Ela diz muito, mas muito mesmo, sobre as relações sociais, sobre normas, sobre padrões, sobre sintonização e, especialmente, sobre timing. Aliás, isso é muito importante: timing, o fato de se obter algum tipo de sincronia fenomênica: entre eu-outro-coisas-situação.

Paciência

Como se exercita, como se desenvolve a paciência? Ter paciência significa, em alguns casos, ter de esperar pelo tempo de reação de outra pessoa. Pensamos, quando alguém não aje no tempo que gostaríamos, que ela está de má-fé, que não entende as implicações de seu atraso ou delonga. Pensamos também que ela não entende a importância daquilo para o que estamos exigindo pressa.

O impaciente deseja alterar o ritmo com que o mundo gira. Ele deseja que tal ritmo seja ditado por seus estados de humor internos, em geral altamente ansiógenos. O ansioso não consegue entender que o mundo tem seu próprio ritmo. Ele deseja interferir nesse ritmo, fazendo com que se torne (ou se iguale) ao seu próprio ritmo. Descompasso muito difícil de se solucionar.

O ansioso acha que o mundo é lento. Ele não dorme à noite porque ele não consegue conviver com esse fato. Mas o maior perigo de um ansioso é que ele cobra de seu próprio corpo o que ele não consegue no mundo: seu corpo deve se acelerar; seu corpo não deve repousar nem interromper o turbilhão do pensamento que, como num passe de mágica para uma platéia vazia, acredita que está se reproduzindo no mundo real. Esse é o problema do ansioso: ele faz de sua mente, de seu espírito, um lugar inquieto, e de seu corpo um escravo.

Ao mesmo tempo, me pergunto: não seria a ansiedade um “mal” do século? Não gostamos quando nos atendem rápido? Quando nos enviam a mercadoria rápido? Quando chegamos com o carro no McDonald’s e eles entregam logo nosso pedido, sem termos de ficar “budisticamente” esperando uma fila enorme de carros, como se fossem serpentes lentas e ociosas que não se mexem? Então, isso é ambíguo.

No meu conhecimento popular, sei que a “filosofia” budista prega o desprendimento do ser em relação ao mundo. Ou, pelo menos, ensina seus crentes a não esperarem muito do mundo. Passividade extrema revestida de moral e sabedoria oriental. Obviamente, o capitalismo não é nada budista, e vivemos numa época acelerada (pelo menos em 1% da civilização).

Também acho, para concluir, que a aceleração do tempo, o desejo de controle do ansioso, tem um outro lado: se queremos as coisas rápidas, temos de nos colocar. Sim, temos, como eu disse, de lidar com o tempo do “outro”, mas temos de nos colocar. Temos de agir. Quem espera é quem é indiferente ao tempo das coisas. Portanto, na ansiedade, além das firulas freudianas que psicanalistas poderiam trazer aqui, temos um problema de agência, isto é, ação!

Progressão aritmética

Fonte

Viver é refazer – excurso delirante

Foucault disse, em algum lugar de sua vasta obra, que chega um momento em nossa vida que a única possibilidade de continuar vivendo é reinventando as coisas, algo como não se conformar com o que nos foi legado, ou nos é ofertado a cada momento. Reinventar é fazer diferente; interromper um fluxo de acontecimentos baseados em inferências a partir de hábitos ou repetições passadas.

Mas como reinventar? Como ser auto-reflexivo a ponto de instituir, no mundo, uma forma de enunciação da realidade que nos pareça mais inteligível? E o que fazer da angústia que surge quando, à busca de tal saída do fluxo ordinário (às vezes, do próprio pensamento!), nada encontramos senão gêneros linguísticos disponíveis, resíduos fortes da socialização (primária, secundária…) e uma espécie de falência semiótica?

Como criar um “mundo” em que nos sintamos à vontade, mesmo que num pequeno espaço sujeito a inevitáveis, contínuas e vorazes “des-territorializações”?

 


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