Ficções 1

Às vezes jorram na cabeça de R. algumas idéias. Jorram, jorram com abundância, mas R. sabe que são tão instáveis, tão insustentáveis, que jamais ele acredita que tais idéias possam constituir um stream of consciousness com algum pedigree. Pobre R., sempre abortado, uma pessoa-quase determinada por pensamentos em forma de relâmpagos, mas profundamente reveladores, profundamente sintonizados com a matéria que constitui, ao nível quase sub-atômico, este mundo. R. é um frustrado, no fundo. Vaga às escuras, mas, mesmo assim, sob certas circunstâncias, R. é brindado com pensamos profundos, em forma de relâmpagos.

Entre esses pensamentos, dois. Um, o leva a crer, ele, R., que tudo se esgota na combinação. Na combinação de ingredientes de um prato, de uma refeição. Não há mediação entre ingredientes e a boca. Todos se encontram no mesmo lugar, a cavidade bocal, e ali dizem ao cérebro que tudo não passa de uma coisa realmente simples. Os mais perturbados, em geral próteses de intelectuais, diriam que não, que não é possível, e que tudo tem de ser “mediado semioticamente”, que se R. sente algo em sua boca, provocada por um conjunto de ingredientes sabe-Deus-como-foram produzidos, isso só pode ser porque ele pertence a uma classe social, a um determinado nível histórico-cultural, pois seu cachorro, caso, claro, R. tivesse um, poderia comer um pedaço de pau com sabor Knorr de carne que ele, o cachorro, acharia que houvera descoberto o supra-sumo dos prazeres.

O segundo pensamento de R. é que há algo profundamente errado com o modo como ele foi criado na infância. R. acha que o ambiente amedrontador em que ele foi criado, o fez mal. Esse ambiente, a todo instante, dava a R. a sensação de que o mundo iria acabar, e que era preciso ficar à espreita. As pessoas ao redor de R. achavam tudo muito irônico, muito sinistro; achavam que era melhor, para R.-criança, se elas fossem cínicas, zombeteiras, apresentando o mundo em sotaques arrastados, com ironia caipira. R. sabia, ou melhor, imaginava, que algo de bem estranho, párvido, sinistro, havia de o esperar no mundo. Embora R., no seu íntimo, pensasse que o “estar no mundo” não fosse uma questão – ele havia sido preparado para ficar só um pequeno tempo nesse mundo, não um tempo muito longo. Num tempo muito longo, o que faria R.? Ele não saberia responder, pois R. foi preparado (este verbo é, neste contexto, pensa R., uma grande condescendência com seu passado….algofake, por assim dizer); R. não foi “preparado”, vejam só isso…

Às vezes, R., sem o saber por completo, concorda, com seus neurônios-vivos, com Husserl, concorda com a necessidade de suspender o juízo, de colocar entre parênteses, de dar um passo para trás e pensar, simplesmente pensar no stream mental que se lhe apresenta no cérebro, nesse cérebro que lhe explode às vezes, lhe jorra algunsinsights.

*** Eu, proprietário deste blog, apenas relatei o que tinha aqui escrito em algumas anotações antigas, referentes à minha convivência com R. Em Ficções, vou revelar a vocês outras coisas bem estranhas de R., um grande amigo meu da infância e adolescência.

Egocentrismo e infantilização

Inspirado por coluna recente do filósofo Paulo Ghiraldelli, a qual recomendo que o leitor leia antes de ler este post, escrevo algumas idéias sobre a relação entre egocentrismo e infantilização no desenvolvimento cognitivo (e moral) de certa juventude contemporânea…

Egocentrismo, em matéria de desenvolvimento cognitivo e mesmo moral, consiste em a pessoa colocar as referências de seu pensamento nela própria, nas questões que ela, a partir de sua percepção pessoal, julga que é o certo e o valioso. Em termos culturais, o egocentrista cognitivo tem dificuldade de interagir com o ‘outro generalizado’ da cultura. Não é por menos que, nos dias de hoje, proliferam as redes sociais, pois nelas tudo o que acontece é um grande monólogo assistido por ‘colegas virtuais’.

Em termos de percepção, o egocentrista não consegue ir muito longe de sua própria pele. Obviamente, muito de nosso conhecimento provém de nossas experiências, o que alguns estudiosos chamam de ‘first order experience’, quando vivenciamos uma situação dentro dos limites existenciais que, não obstante estejamos num contexto sociocultural, podemos (ou pretensamente pensamos) chamar de nosso, afinal, quem sente um cheiro somos nós (com nosso equipamento olfativo), quem vê uma outra pessoa somos nós (com nosso equipamento viso-perceptivo), quem ‘sente’ uma dor, uma emoção, etc., somos nós (por meio de nossos aparatos psicomotores, psicofísicos e assim por diante).

Contudo, há algo no pensamento que nos obriga a sair de nós próprios, em certo sentido. O pensamento é profundamente marcado pela semiótica do outro – pensamos com as ‘vozes’ de outros. Nossa linguagem ‘privada’, como demonstrou Wittgenstein, é uma grande ficção: a linguagem (essa matéria-prima essencial com a qual nos constituímos como sujeitos) é inteiramente social. O que ocorre é que nos apropriamos da linguagem em sua faceta social, devolvendo a esse mesmo ‘social’ uma estilização própria, a qual será, então, utilizada por outros como equipamento cultural. Mas, quando se é um egocentrista, não se consegue discernir o que há do outro em seu próprio pensamento, e então este é confundido como sendo algo brilhantemente inédito. Como consequência, e numa imagem, é como se a pessoa fosse como uma Idade Média ambulante, acreditando que ela é o centro do universo (ainda que, moralmente, publicamente, não assuma isso).

Muitas pessoas não conseguem ir além delas próprias. Quando são chamadas a falar em ‘terceira pessoa’, simplesmente embrutecem, ficam de ‘bico’, como uma criança. Aliás, a criança, egocêntrica por natureza (Piaget explicou isto), não consegue, cognitivamente, discernir ela e o outro – a partir do ‘eu’, generaliza o mundo que é, na verdade, uma espécie de projeção de seu mundo, e não do mundo mais amplo, marcado pela alteridade. Adultas, estas pessoas tendem a tomar o mundo delas como a medida de todas as coisas; tendem a julgar e a medir o mundo a partir de questões que são pessoais, no sentido mais egocêntrico do termo. Por meio de uma metonímia, confundem a parte pelo todo. Isso porque são, em geral, incapazes de empatia com o outro, incapazes mesmo de se verem a si próprias com outro olhar que não o seu olhar egocêntrico.

Ainda em termos cognitivos, e pensando no contexto de sala de aula, o jovem egocêntrico, muitas vezes desassistido por seus professores (eles também fruto de geração egocêntrica), não consegue desenvolver a capacidade de articular as idéias de outros (os autores). Não conseguem mergulhar em sistemas de pensamento e entender de que se trata tal sistema. Em vez disso, repetem alguns bordões, algumas leituras de orelha-de-livro, e nem isto muitas vezes fazem bem. Acometidos de dificuldades básicas de escrita e pensamento (problemas no ensino médio?), não conseguem redigir um texto escrito para um outro capaz de lê-lo (no caso, o professor). E, provando da surpreendente infantilização de nossa época, questionam a ‘capacidade didática’ do professor: se eu não consigo entender um autor, articular ideias, redigir um texto coerente, etc., a culpa só pode ser do professor. Isso lembra muito certa perversidade de filhos agindo na janela de culpa dos próprios pais, graças a qual conseguem muitas de suas conquistas. Ambos, professores e alunos, são igualmente responsáveis pelo processo de ensino-aprendizagem.

O aspecto que mais me chamou a atenção na reflexão de Ghiraldelli é de que nem o trabalho está mais cumprindo seu papel de passagem à vida adulta. Pois, de fato, o que é ser adulto? Na nossa imagem ocidental ‘clássica’, duas coisas principais ‘transformam’ alguém em adulto: o trabalho e a constituição de família. Por que o trabalho nos tornaria adultos? Primeiro, pelas responsabilidades que ele exige de nós; depois, porque, no trabalho, somos continuamente confrontados com nossos limites e incapacidades, e a elas temos de reagir, em vez de corrermos para debaixo da saida de nossos pais. No trabalho, além disso, somos colocados diante de conflitos sociais de ordem bastante séria, como a divisão de pessoas conforme o quanto ‘contribuem’ para a sociedade (o que culmina, entre outras coisas, na divisão de classes). O trabalho é, em certo sentido, o lugar do confronto, do embate, da imposição de si e da dominação.

Ora, quando o trabalho não cumpre seu papel de “civilizar as crianças” (em sentido amplo), o que pensar da própria educação, a qual, em nossa sociedade, acaba se justificando em nome do trabalho? Professores dizem: “Olha, vocês devem tratar a situação de sala de aula como um trabalho, pois lá, no trabalho, não vai ser moleza não!”. Será verdade? Será que nossos alunos, quando não estão muito a fim de levar a sério uma aula (pois seu interesse é no diploma), eles estão arriscando seu futuro? Qual futuro? Um futuro num mercado de trabalho igualmente infantilizado? (Uma prova disso: a abundância de literatura de auto-ajuda que existe hoje nos contextos corporativos, e certa cultura de “pragmatismo”, que desvaloriza a reflexão e coloca, cada vez mais, o peso decisivo de tudo nos “resultados”, não importa como são obtidos!).

Um pouco mais de reflexão sobre este assunto pode ser encontrado aqui.

Desconfiança

A prática cotidiana da observação (ou projeção, poderia sugerir um psicanalista) da vida em coletividades tem me levado a desenvolver uma profunda desconfiança (há, com certeza, exceções, mas não vou me ater a elas neste relato) em relação a:

1) Pessoas que dizem que estão ‘sem tempo’ porque estão ‘trabalhando muito’, que o trabalho lhes ‘consome a vida’, que ‘temos de rever’ esta ‘perversidade’ das organizações no mundo de hoje, sempre a nos exigir mais e mais engajamento, mais e mais trabalho, atividades, etc.

1.1) Ao falar dessa maneira, penso que tais pessoas têm é muito tempo para si, e criam tais racionalizações para colocar um paliativo sobre sua inércia, ou então para justificar, para elas próprias, a impossibilidade de desenvolverem um patamar de atividade que desejam em seu íntimo;

1.2.) Alternativamente, existem pessoas que, de fato, trabalham muito – e, neste caso, quando elas falam sobre isso, talvez seja porque não querem, no fundo, trabalhar tanto, mas criticam, denunciam para um “outro generalizado” essa sua incapacidade de controlar a própria vida, de colocar-se limites.

A) Acredito que, quem trabalha bastante, mas está de bem consigo mesmo em relação a isso, não fica, qual um ‘profeta’, a dizer o que as outras pessoas deveriam fazer. Para mim, há um cheiro de forte conservadorismo nisso, a tentativa de manter uma espécie de status quo pessoal, o autoritário desejo de regular a vida dos outros ou então de fazer sermão, ou ainda um monólogo consigo própria – quando imagina que está acrescentando algo de novo a uma conversa.

2) Pessoas que critiam o ‘produtivismo’ acadêmico, que denunciam a ‘cooptação capitalista’ de pesquisadores em relação à quantidade (em detrimento da qualidade). Claro que, neste caso, estou me referindo à categoria de docentes/pesquisadores, onde tais queixas e ‘críticas’ são comuns.

2.1.) Ao falar desta maneira, vale, penso eu, o mesmo princípio de 1.1.: elas estão dizendo isso para si próprias, estão tentando racionalizar sua própria baixa produção ou, então, estão tentando dizer a elas mesmas que estão fazendo uma coisa sem saber direito porquê – e que, no fundo, não acham certo. Ou, caso mais conspiratório, estão tentando convencer os outros a produzir menos – enquanto elas continuam a surfar nos ‘mega-n’ publicados. Conheço um punhado de gente que publica bastante (inclusive internacionalmente) e, aqui entre nós, fica escrevendo ‘ensaios críticos’ contra o produtivismo;

2.2.) Novamente, num tom conservador e autoritário implícito, tentam, com seu discurso, ventilar uma idéia de ciência e de profissão que é, no fundo, delas, não necessariamente das outras pessoas. Quantitade é, sim, possível com qualidade, pois há (desculpem a redundância) pessoas e pessoas.

B) Eu acho que, quem quer produzir, que produza; se isto que está fazendo é ‘quantitativismo vazio’, problema de quem está fazendo. Não consigo imaginar reais pesquisadores, gente que, efetivamente, contribui para o seu ofício (é óbvio que todo mundo não contribui da mesma maneira…e, sem ser polido/hipócrita, há quem não contribua, pronto!), ficar criticando que ‘estão produzindo muito’. A questão é outra. Como se diz, o furo é bem mais embaixo. Imaginem alguém contemporâneo a Freud dizendo, por Viena afora (como uma Maria chorona): “Nossa, a vida é mais do que ficar escrevendo o dia inteiro” (pois Freud devia escrever muito ao longo de um dia…).

3) Pessoas que dizem que ‘há coisas mais importantes na vida’ do que o trabalho, que este não é nada exceto uma forma de ganhar a vida (e não de ‘perdê-la’), que devemos ‘olhar mais a lua e as estrelas’, que devemos ‘ficar com quem amamos’, que devemos encontrar outras ‘prioridades na vida’, balanceando mais as coisas.

3.1.) Quem diz isso pode, no fundo, não gostar muito de trabalhar (não há nenhum problema nisto, afinal, o embate entre ‘princípio de prazer’ e ‘princípio de realidade’ é quase algo “constitutivo” do ser humano), ou então não entende nada sobre seu papel na vida de algumas pessoas. São grandes metafísicos enrustidos, pois devem ter algum critério substantivo para dizer o que é ou não ‘importante verdadeiramente’ na vida. São cristãos disfarçados, sem o saber. Caso tivessem algo mais substancial a dizer, o diriam, em vez de repetir bordões criados pela mídia e pelas revistas de auto-ajuda;

3.2) Novamente, podem, inconscientemente, estar dizendo a si próprias que não deveriam trabalhar tanto, ou então que não há problema, perante seu próprio superego, de não trabalhar tanto, ou de trabalhar ineficientemente ou (para ficar com um termo menos ‘capitalista’) de uma forma que seu próprio ritmo pessoal estabeleceria se pudesse.

C) Acho que cada um estabelece o que é prioridade e importante em sua vida. Vivemos numa sociedade relativamente pacificada, cujas fronteiras nos permitem, relativamente, pensar em coisas ligadas a nosso cotidiano (como as três que menciono aqui) – se é assim, se não vivemos em uma sociedade totalitária, metafísica, ideal, então cada vida se justifica por si, mesmo que esta vida esteja imersa dentro de um contexto social, econômico, histórico. A babozeira de que a ‘história sabe mais do que nós’ nos coloca na boca palavras vazias, discursos ocos, como os que destaquei acima.

Moral da história: viva e deixe viver. Não vale a pena brigar com o mundo e com as outras pessoas. Vale muito mais a pena tentar pensar consigo mesmo o que é válido e valioso para você. Uma vez descoberto, é sustentar isso, com todas suas consequencias, na vida social, na vida pública. Repito: não vivemos um “estado de exceção”: vivemos com relativa tranquilidade, em nossos pequenos feudos protegidos. Então, por que travar guerras contra pessoas que, a rigor, não estão nem aí para nós?

Segurança vs. aventura

Tempos atrás escrevi por aqui sobre uma espécie de desejo contraditório, uma luta contínua entre permanência e mudança: por que não, de repente, pôr o pé na estrada? Não usei, na descrição que fiz, a ideia de ‘segurança’, mas Contardo Calligaris, na sua última coluna da Folha, o faz. Ele contrapõe, em tensão paradoxal, a vontade que temos de nos manter ‘seguros’, e o desejo de mudança, de aventura, bem ao estilo ‘hippie’ dos anos de 1960.

Do lado da segurança, penso em nosso medo do desconhecido (algo até banal de se dizer!): no medo do ‘outro’ que não é nosso próximo imediato (embora possa ser um ‘closer’, como no filme de Mike Nichols); no medo da ausência de rotina e do desafio que tal ausência impõe a nosso corpo (em sentido de corpo que afeta e é afetado: quando não se tem uma rotina a organizar, rigidamente, a vida, é nosso corpo que passa a delinear o que nos organiza, o que mobiliza nossos afetos). Talvez uma das formas de ‘segurança’ mais ficcionalmente construídas no ocidente é a da carreira: nela, sentimos que estamos ‘encaminhados’; sem ela, a impressão que se tem é que se caminha à deriva.

Do lado da aventura, podemos pensar na ‘desterritorialização’: em vez de se viver num lugar, vive-se num espaço. Os papéis que usamos para desempenharmos expectativas em registros específicos (no trabalho, com os amigos, mesmo na família) deixam de se fixar em nós com facilidade, e nos tornamos, fazendo aqui um abuso conceitual, o que os filósofos Deleuze e Guatarri chamam de ‘corpos sem órgãos’. No exemplo que eu dei em outro post sobre o assunto, a minha grande ‘fantasia’, se é que posso colocar assim, era simplesmente a de partir, ir para qualquer outro lugar, mas, ao chegar neste lugar, o desejo de partir novamente se apossaria, e o conflito com a ‘segurança’ (inclusive fisiológica, a qual considero cada vez mais forte!) se instalaria novamente.

Eis que Calligaris coloca as coisas em termos ainda mais, digamos, emblemáticos, cruciais ou dilemáticos, quando diz, ao comentar o último filme de Walter Salles (Na estrada):

O filme de Salles está sendo a ocasião imperdível de um balanço -ainda não decidi se festivo ou melancólico. Cuidado, o balanço não interessa só minha geração. Cada um de nós pode se perguntar, um dia, como resolveu a eterna e impossível contradição entre segurança e aventura: quanta aventura ele sacrificou à sua segurança?

Essa conta deveria ser feita sem esquecer que 1) a segurança é sempre ilusória (todos acabamos morrendo) e 2) qualquer aventura não passa de uma ficção, um sonho suspenso entre a expectativa e a lembrança.

Qualquer aventura não passa de uma ficção. Fiquei pensando, então, se nossa própria vida não poderia ser narrada na forma de uma ficção, com diversos personagens representando ‘alter egos’ possíveis de nós próprios, mas jamais plenamente realizados, realizáveis. E não deixaram de ser realizados porque fomos covardes, fracos, abrindo mão de nosso desejo: eles simplesmente não poderiam ser todos realizados, considerando a vida finita que levamos, os custos psicológicos envolvidos nos laços que fazemos e desfazemos, ainda que decidamos, como dizia C. Lasch, viver como um “mínimo eu”.

O empirista inseguro

Força de vontade

1.  Força de vontade, em nossa cultura, é frequentemente associado a coisas como perder peso, deixar de fumar, conquistar um sonho/objetivo, vencer no esporte; ou seja, associado à mudança de hábitos e a ideais a serem conquistados, a limites a serem superados (especialmente, limites pessoais, individualistas);

2. O mesmo se pode dizer do uso da expressão ‘força de vontade’ aplicada a casos em que não faríamos determinada coisa se não fosse por um ato de vontade, um ato contrário a alguma força de natureza desconhecida mas que nos faz fazer algo que, conscientemente, não faríamos. Neste sentido, ter força de vontade diz respeito ao sujeito moral, àquele que é responsável por seus atos;

3. Força de vontade, novamente em nossa cultura ocidental, está associado à ‘força’ em sentido mais estrito: força fisiológica. Neste caso, ter força de vontade é ser, fisiologicamente, capaz de lançar-se em um determinado curso de ação sustentado pelo corpo biológico (se estou relativamente em forma, sou capaz de perpetuar uma ‘força’ que, de outra forma, não conseguiria). Isto lembra aquelas propagandas de vitamina C, em que a pessoa que usufrui da mesma consegue enfrentar, com ‘vontade’, um dia pesado;

4. De algum modo, há uma relação tensa entre vontade e desejo: enquanto este vai por si, aquela precisa ser desenvolvida, sustentada, mantida (fala-se, por exemplo, “Eu tenho vontade de”…, mas isto seria mais corretamente dito como “Tenho desejo de…” [embora se guarde aqui alguma conotação sexual e, portanto, se opte pela primeira alternativa]). Talvez seja (em parte) por isso que o tema é debatido em filosofia moral;

5. E quanto à vontade em sentido mais cotidiano? O que você faz quando não está com ‘vontade’ de sorrir, de conversar com uma pessoa qualquer? Quanto, num evento coletivo (uma aula, uma reunião, etc.), prefere ‘deixar passar’, sem sentir-se com ‘vontade’ de defender seu ponto de vista (admitindo que você conheça e tenha um ponto de vista ao qual se pode chamar de seu)?

6. A apatia, a acédia, a preguiça, o torpor da inação, o deixar-se levar não apenas pelo fluxo do próprio pensamento (inverso à ação, neste caso), da situação, da atividade, do evento coletivo a se desdobrar na sua frente. Penso que isso ocorre, afora razões de ordem psicológica, pelo fato de estarmos imersos em muitas situações sem sentido, desconectadas de aspectos mais amplos e profundos de nossa existência. Vivemos, muitas vezes, apenas encenações que não demandam de nós uma ‘força de vontade’ eticamente necessária. Não seria muito chato ter ‘força de vontade’ em qualquer momento? Um ativismo sem fundamento, sem finalidade, absorto em 4 paredes?

7. É impressionante, pois, a cada ato seu que não é assentado em alguma vontade, é o fluxo do mundo, das pessoas e das coisas, do tempo em suma, que se impõe; é a fisiologia que se desdobra – somos pura fisiologia na ausência da vontade. É claro que esta última, a fisiologia, tem vontade própria. Em certo sentido, foi isso que Schopenhauer nomeou de a ‘vontade da natureza’, essa força cega, mas absurdamente forte e insistente, logo depois chamada de pulsão de morte por Freud. A vida, a fisiologia, tende a buscar sua perpetuação; sua ‘força de vontade’ é descomunal. Schopenhauer era um ‘desconfiado’ da vontade;

8. De onde vem a vontade? Não é, decerto, a ‘motivação’ do pensamento gerencial moderno, impregnado e imbecilizante (pois é óbvio que, ao não se ter vontade na empresa, a mais valia não é extraída – no mundo público, exceto em alguns casos de ambição pessoal, a falta de vontade é absurda, pois muitas pessoas, ao terem sua vida material resolvida, simplesmente exibem, para si e para os outros, que sua vida perdeu o sentido, virou um deserto, preenchido com pequenos consumos); a vontade vem…bom, isto é assunto para outro post, em algum momento.

1976, 23/06

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2012, 23/06

* Num ato bem privado, ao digitar cada data acima, uma imensidão de acontecimentos, em forma de flash. A vida é um flash?

Dogville

Ontem assisti novamente a Dogville, do Lars von Trier. Acho que é a terceira vez que assisto. Ao contrário das outras vezes, porém, não havia percebido a sagacidade do final, justamente a parte dos créditos. Eis que a achei na net. Infelizmente, não dá para reproduzir aqui porque o Youtube não permite, mas você pode assistir diretamente no endereço original. A música é de David Bowie – e esta sim reproduzo abaixo (caso queira só ouvi-la sem a cena dos créditos de Dogville, embora se perda bastante o efeito pretendido). Tente imaginar, se você já assistiu a este filme, o porquê deste final…

Vidas possíveis

Nos últimos livros de Philip Roth duas temáticas têm sido salientes: a proximidade da morte do personagem principal e, ligado a isto, certo desejo incontrolável (nos homens), um fascínio, pela vida de outras pessoas mais jovens. Velhice e juventude. O desejo que, mesmo com o passar do tempo, não arrefece, pelo contrário: se intensifica num misto de consciência da decadência, memória e a infinitude.

É impressionante como a juventude vive como se o amanhã fosse infinito. Isto não é uma novidade. Não até o ponto em que você vive isso, observa o transcorrer do tempo, observa a perda a seu redor, no seu ínfimo mundo privado. Ao mesmo tempo em que sente (ou percebe) que o jovem sequer cogita sua própria finitude. Lei da selva, lei da sobrevivência; talvez.

Voltando a Philip Roth. Num caso, o personagem se perde, se apaixona pela Lolita; contempla seu corpo em seu pleno vigor. Contraste do corpo jovem com o corpo velho. Há mais do que o lugar-comum do ‘ímpeto’ versus a ‘experiência’: há alguma coisa que se perde no confronto do velho com o novo. Em outro caso, o filho observa uma tomografia da cabeça do pai. Imagens gravadas da cabeça do pai – não de qualquer pessoa. O pai vai escorregando para a morte, e o filho faz seu luto.

Acho que é isso, foi por isso que dei por mim escrevendo estas coisas, lembrando dos enigmáticos, profundos, personagem de Philip Roth: cada momento de nosso dia está pleno de possibilidades não realizadas; está repleto de angústias e nostalgias por uma vida não vivida, por uma vida que seria possível mas não é, e não porque não nos arriscamos ou coisa do tipo, mas porque não conseguimos, simplesmente não conseguimos, viver ‘todas’ as vidas possíveis. Ocorre que cada pessoa, cada jovem (na metáfora usada aqui), ‘combinado’ contigo e com certas ‘condições’, gera uma paradoxal, irrepetível e ao mesmo tempo fugaz vida.

Persistência e esperteza


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