Qualidade de vida

Todo mundo, especialmente habitantes de grandes metrópoles, fala sobre (e deseja ter) qualidade de vida. Mas o que seria tal coisa? Obviamente, rico não tem qualidade de vida; para começar, isso deve ser algo inventado para a classe média. Vamos pensar em uma teoria intuitiva sobre qualidade de vida: não pegar trânsito, não se estressar demais no trabalho, ter controle sobre o próprio esfincter, conseguir caminhar até a padaria e voltar, comer bem, dormir bem, ter segurança… A lista pode ser infinita. Mas há algo de muito importante mascarado nessa estória.

Qualidade de vida é uma versão desinflacionada, popular, da idéia de “vida boa”, no sentido grego. Uma vida vivida com excelência, quase heroísmo, com virtude. A qualidade de vida de que se fala no vulgo é uma teoria fraca sobre a “vidinha” boa. Notem que, quase nunca, se computa como fazendo parte do conceito uma relação saudável na esfera pública – ser bem tratado, tratar bem, pequenos gestos e modos que configuram a fibra de nossa vida cotidiana. Exceto da perspectiva do consumidor, que é, penso eu, a base epistemológica desse conceito de qualidade de vida! Para mim, que sou, pelos critérios do IBGE, membro da classe média, ter qualidade de vida é ser bem tratado nos pequenos detalhes: ter opção de escolha na cidade, ter bons médicos, não ser tratado como um número. Aplico a mim mesmo o comentário anterior, sobre ser a “qualidade de vida” um tema que poderia ser traduzido por “animais, mamíferos, gostam de prazer”.

Hoje fui fazer um exame de esteira, chamado “ergoespirométrico”. Passei mal ao final do teste. Mas, e apesar de não ter sido expulso da sala onde tive de permancer deitado (até fui tratado “com dignidade”…), a enfermeira chega e diz ao médico que havia dois pacientes esperando. O moderno critério da quantidade, do pagamento por unidade… medicina, hoje, não deveria mais fazer parte de nossa idéia pequeno-burguesa de qualidade de vida. Medicina é o exemplo mais bestial do que vivemos no mundo acadêmico: produtivismo. Só que tal produtivismo, no mundo acadêmico (pensem nas Humanas), é inócuo: serve para alimentar vaidades menores, de gente pequena. Na medicina, o produtivismo é pernicioso. Um olhar antropológico na rotina diária de clínicas médicas, Brasil afora, deverá ser suficiente para deixar qualquer pessoa em estado de choque.

Sabe o que é pior? Minha crítica aqui não vai, jamais, alterar o cotidiano, onde sua vida parece que vale pela sua assinatura numa requisição de exame. Nem quero pensar no que vive uma pessoa doente neste país. Enquanto isso, as criaturas vão achando que ter qualidade de vida é ter acesso à praia (com péssimo serviço, com gente querendo te roubar a céu aberto), tomar cerveja Skol, comer uma vez por mês em restaurante de quinta…olhe pela cidade (meu cenário é Natal-RN): descuido, sujeira, agressividade no trânsito…e por aí vai.

Prefiro ouvir a falar (7)

Melancolia

Como já mencionei aqui antes, o último filme de Lars von Trier, Melancolia, narra a história do “encontro” do planeta Melancholia com a Terra, encontro esse chamado de A dança da morte. É um filme, portanto, sobre o fim do mundo, mas absolutamente diferente dos Doomsday Films que temos por aí. Não há alarde, notícias de TV, arrependimentos boçais ou lágrimas de crocodilo. O “apocalipse sereno”, digamos assim, se passa ao som de Tristão e Izolda, de Wagner.

O fim do mundo, ao estilo von Trier, é contato sob a ótica de duas irmãs, Justine e Claire. A primeira, com quem o diretor começa seu filme, é apresentada em seu casamento. Inicialmente, o espectador fica com a sensação de tratar-se de mais um evento feliz na vida de uma mulher; porém, à medida que a festa avança, vai ficando clara a desolação da personagem, incapaz de dar o passo necessário na farsa do matrimônio.

Aliás, os 10 primeiros minutos do filme, em aterrorizador slow motion, mostra, entre outras coisas, precisamente o peso, a dificuldade, de viver. Nestas cenas iniciais, parece-nos que um excesso de gravidade prende os personagens à terra, segurando seus movimentos (brilhante cena de Justine, vestida de noiva, sendo constrangida em seu movimento para frente).

Brilhante também é a mudança do humor de Justine: de deprimida (não sustenta seu casamento, terminando-o na mesma noite em que ela o celebra; abandona seu emprego, no qual havia, também durante seu casamento, sido promovida…) para uma personagem com brutal resignação quando descobre que o fim do mundo estava próximo. Frase forte dela: a vida na terra é má; em nenhum outro lugar do universo há vida, diz ela, e esta vida é desprezível. Nada mais anti-cristão. Nenhuma postura poderia ser mais negadora da vida, para dizer como Nietzsche.

Claire, em compensação, faz o percurso inverso: de irmã forte, vigorosa e fibrosa (é ela quem planeja e orquestra a festa de casamento da irmã), tão logo descobre o fim iminente, se torna desolada, amedrontada. Ela lamenta a perda da vida na Terra; onde seu filho viveria (ela tinha um filho)? É o futuro interrompido que a desola. O de seu filho, o seu. Por que tudo terminaria assim? Por quê?

O alívio diante do fim do mundo. A meu ver, esta é a mensagem desesperançosa de Lars von Trier. Um mundo que termina pelo encontro inexorável com a Melancholia. Nada de metafísica. É difícil, num efeito catártico, não se identificar com Justine. Acho que von Trier nos ajuda a ver o quão desolador, o quão anti-metafísica é a vida. Nenhuma sensibilidade cristã consegue ver isso; no fundo, a mística cristã nos faz acreditar num propósito, numa teleologia. Chorando ou serenamente, ambas, Justine e Clarice, enfrentam o fim de olhos abertos.

Competência sem compreensão

Interessante fala do prof. Dennett sobre a “inversão” criador-criatura!

Embromação (2)

As línguas são realmente fantásticas. Veja-se o caso da palavra “embromação”, em português. O que ela significa em seu sentido comum? Em termos mais técnicos, qual seria a “extensão” da palavra (Tarski)? A extensão da palavra diz respeito a todas as descrições pragmaticamente possíveis desta palavra em uma linguagem.

Embromação pode significar: enrolação, embuste, mentira, tapeação, armação, fingimento. Em termos mais compostos: passar o tempo, fazer mal feito, não fazer algo e dizer que está fazendo. Ou seja, embromar tem a ver com aparecer, com fazer de conta. Na tirinha do Dinâmica de Bruto, que coloquei abaixo, o “embromation” ocorre quando uma pessoa não sabe fazer alguma coisa – cantar, filosofar, pintar… Embromamos quando não sabemos o que fazer, ou quando o sabemos apenas vagamente.

Podemos também pensar que o “embromador” faz algo que não está ligado a seu desejo. Nesse sentido, seu maior inimigo é o tempo; melhor: a temporalidade. É como se, não podendo preencher seu tempo com atividades que, de fato, corresponderiam a seu desejo, fosse preciso fazer o tempo passar com “qualquer bobagem”. O embromador se auto-engana, e, mais grave ainda, o “embromado” é, na hipótese mais ingênua, enganado; na hipótese mais cínica, o embromado é um leviano, que não rompe a farsa. Por exemplo: o que deve fazer o professor quando o aluno está embromando? Quando, num seminário ou exposição em que tem de se revelar minimamente articulado, fala uma linguagem oca? E o que o próprio aluno, na situação inversa, que está diante de um professor embromador, pode fazer? Quando tal professor passa atividades sem finalidade pedagógica aparente, ou quando, da mesma forma que o aluno (embora em outro nível), tem uma linguagem oca? O mesmo se poderia perguntar em relação ao participante de palestras de auto-ajuda, ou a um vendedor e muitos outros “atores” da vida social contemporânea.

Mas o discurso da embromação pode também ser uma arma: quando queremos acusar, diminuir a credibilidade de alguém, podemos dizer que essa pessoa está embromando. Nada mais cínico do que isso também.

Há, provavelmente, alguma antropologia no ato de embromar. Talvez tenha a ver com o conhecido “jeitinho brasileiro”, situação típica na qual os envolvidos sabem estarem engajados num simulacro – finja que compreenda o que eu falo, e eu finjo que estou sabendo o que estou falando. Repetições enfadonhas, truísmos mais rasteiros, metáforas estapafúrdias, linguagem privada (delírios mentais) passando-se por fala pública, brincadeirinhas ansiosas, “dinâmicas para revelarem-se os sentimentos”, paráfrases, orelhas-de-livro, sentenças “eu-acho que”, e tantas outras, compõem o cenário da foule à deux da embromação.

O que faz um lugar ser “rico”?

Como já disse incansáveis vezes aqui, que bom que a febre-blog/internet nos permite falar (quase) sem escrúpulos teóricos. Pois bem. Hoje vou colocar aqui outro tema, analisado sob uma ótica muito particular: por que certos lugares são ricos, enquanto outros, não? Por que há cidades, estados, países, muito mais ricos do que outros?

A riqueza é um termo relativo: pode referir-se a uma dimensão econômica (mais óbvia), mas também a uma dimensão cultural, política, social (IDH, por exemplo), etc. Quem já circulou por várias cidades, no Brasil e no exterior (e não precisa ter sido muito!), deve notar a diferença: na fachada dos prédios, no cuidado das ruas, na beleza e estética das praças públicas… e no jeito de as pessoas se vestirem (não me refiro à moda propriamente dita, mas ao “grosso”, à média da população-média). Em algumas cidades, a beleza (que não é relativa, convenhamos!) salta à vista; em outras, a desolação: sujeira, terra, grosseria visual, caos urbano. Obs.: esqueçam, por um minuto, certa “fenomenologia” do “olhar estrangeiro” (exemplo: turista em lugar obviamente subdesenvolvido achando tudo “maravilhoso”).

Riqueza (econômica) está associada à disponibilidade de capital. O sudeste brasileiro, historicamente, é o mais atrativo economicamente. Por quê? Muitos motivos: maior mercado consumidor, custo de logística mais baixo, concentração de empresas, aeroportos com fluxo gigante de pessoas, etc. Mas, no fundo: mercado consumidor.

Mas a pergunta menos óbvia é: de que modo a pobreza pode ser associada ao “comportamento” das pessoas? À sua mentalidade? Riqueza, em sentido não-econômico, arrisco dizer, está associada à disposição, à vontade (interna ou não) de colocar-se a serviço de algo. Riqueza é capital de natureza não propriamente (ou somente) econômica: se eu trabalhar, se eu “servir bem”, e se TODO MUNDO fizer o mesmo, haverá uma elevação geral da riqueza compartilhada.

O capital (econômico) é uma derivação; sempre, uma derivação. O que o vulgo não entende é que a equação que frequentemente cria está ERRADA: quanto mais dinheiro, mais motivação, mais vontade, mais desejo de fazer algo bem feito; essa é a mentalidade que contamina todo o circuito de trocas, a base sociológica do que entendemos, genericamente, como mercado. Mas como somos enganados pela mitologia do dinheiro, não?

Prefiro ouvir a falar (6)

Fábula sobre a vida social

Normalmente, quase ninguém possui ratos de estimação – pelo menos não como fazemos com os cachorros e gatos: convivendo conosco no dia-a-dia, compartilhando conosco o cotidiano. Ratos, em geral, vivem uma vida clandestina, não podendo tomar parte do convívio amigal com os humanos. Eles não são bem-vindos: se achamos um rato em casa, tratamos logo de colocá-lo para fora (na verdade, o impulso é matá-lo!).

A vida clandestina do rato complica sua busca por comida. Ratos não têm uma vasilha para comer, onde humanos lhe colocam ração duas vezes ao dia! Precisam sair para caçar restos de comida, pedaços de pão velhos, alguma sobra. Para sair da toca e voltar com segurança (e com o alimento), o rato precisa empreender um verdadeiro malabarismo – sair à noite, espreitar por frestas, arrastar-se sorrateiramente e, caso seja flagrado, precisa desaparecer como fumaça, sendo mais rápido que seu possível predator (frequentemente, um humano).

Ao vencer a luta diária pela comida, em um lugar hostil (a casa onde ele não é bem-vindo), volta para a toca, come e, provavelmente, dorme. A tranquilidade termina quando é hora novamente de voltar a se inquietar com o estômago.

Alguém sabe me dizer se os ratos, depois de alimentados, gostariam de dividir o convívio com os humanos? Brincar com estes? Correr atrás de objetos lançados pelos humanos e trazê-los de volta, felizes com a conquista? Dificilmente. Os ratos, imagino, não toleram os humanos; não foram feitos para conviver com estes em ambiente compartilhado.

Contei esta estória sem sentido sobre ratos e sua busca por alimentos para falar, metaforicamente, sobre o que acho que às vezes é o ser humano vulgar (=comum): só sai de casa para buscar alimento. Quando convivem no espaço público com outros seres humanos, muitas vezes o fazem por pura distração. Não vêem a hora de voltar para casa com o alimento e ali repousar. Poucas pessoas, se fossem efetivamente “normais”, sairiam de casa de bom grado, exceto se tornassem tal saída um expediente privatizante (“vou sair com a minha turminha num lugarzinho da gente…”). Pois, contra toda uma lenda histórica, talvez só os gregos, em sua sabedoria adulta de “cidadãos da polis”, realmente se importassem em sair de casa para discutir, com outros, o destino comum….

Warehouse 13

Para quem gosta de ficção científica, aqui vai uma dica. Trata-se da série da SyFy norte-americana chamada Warehouse 13, ou Depósito 13. A história, que em 2012 vai para sua 4 temporada, gira em torno dos agentes Pete Lattimer e Myka Bering, os quais têm a missão de buscar e recuperar objetos com poderes paranormais. Uma vez encontrados, tais objetivos devem ser catalogados e arquivados no Depósito 13.

Venho assistindo à série desde o primeiro episódio e, como toda história com muitos episódios, há altos e baixos. Alguns dos últimos da 3 temporada pareciam implausíveis demais, mesmo para um estilo ficção. Mesmo assim, é divertida e nos ajuda a passar um bom tempo descontraídos. Um dos pontos fortes é a rapidez e agilidade com que os episódios são filmados (às vezes para compensar, penso eu, a pobreza do texto – mas não vamos ser críticos aqui, certo?).

Se pensarmos bem, os objetos de nossa vida cotidiana têm algum poder sobre nós – evidentemente, não paranormal ou sobrenatural (como em Warehouse 13), mas um poder semiótico: eles concentram memória: de um lugar, uma pessoa, uma perda, um ganho, uma escolha, um erro, um acerto. Objetos nos rodeiam e são uma extensão de nós – ou nós deles! Ofuscados pela sua cotidianidade, passam, na maior parte do tempo, desapercebidos por nós, mas estão sempre aí.

Objetos podem assumir o que Winnicott denominava de uma propriedade transicional, fazendo a ponte entre a ilusão e a realidade. Tudo tem a ver com as primeiras experiências de vínculo da criança: uma vez notando que a mãe não é parte dela, cria uma ilusão de sua presença – por exemplo, agarrando-se a um cobertor ou ursinho de pelúcia. Desenvolvemos, vida afora, nossos apegos a objetos transicionais. Eles constituem áreas intermediárias entre nosso mundo interno e o mundo externo, objetivo.

Warehouse 13 explora justamente essa relação subjetiva-objetiva entre nós e nossos objetos. Mostra o quão grande é a dependência do humano dos objetos que eles próprios criam. Para quem quer descontrair um pouco, e não se envergonha de algumas “catarses” vez ou outra, é um bom passatempo.

 

Velhice

Estou lendo o último livro de Philip Roth, Nêmesis. Há um trecho, no qual o personagem principal fala de sua avó, que cuidou dele desde quando sua mãe morreu no parto, que me chamou a atenção. Identifiquei no trecho minha própria avó (com 96 anos!) e, principalmente, minha mãe, que semana passada fez 72 anos. É muito complicado quando você vê sua mãe com essa idade, e mesmo quando você mesmo começa a notar, visceralmente (não pelo cérebro, quero dizer), que você envelhece e que sua vida é uma tênue linha, um espirro ao mesmo tempo maravilhoso e fugaz. Enfim, transcrevo o trecho a seguir.

“Naquela noite, observando a avó enquanto esta lhe servia o jantar, ele se perguntou se sua mãe se parecia com ela caso houvesse tido a sorte de viver mais cinquenta anos – débil, curvada, ossos frágeis, cabelos que tinham perdido a cor décadas antes para se converter numa fina lanugem branca, dobras fibrosas nos braços e papada sob o queixo, juntas que doíam de manhã e tornozelos que inchavam e latejavam ao anoitecer, pele translúcida e tão fina como uma folha de papel nas mãos manchadas de marrom, cataratas que haviam encoberto e descorado seus olhos. O rosto que encimava a ruína do pescoço era agora uma complexa malha de rugas, sulcos tão diminutos que pareciam ser obra de alguma ferramenta bem menos grosseira do que o formão da velhice – talvez um buril para gravar em metal ou o bilro de um fazedor de rendas, manipulado por um mestre artesão a fim de lhe dar a aparência de uma avó tão velha quanto as mais velhas no mundo” (p. 89).

 

 


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