Embromação (2)

As línguas são realmente fantásticas. Veja-se o caso da palavra “embromação”, em português. O que ela significa em seu sentido comum? Em termos mais técnicos, qual seria a “extensão” da palavra (Tarski)? A extensão da palavra diz respeito a todas as descrições pragmaticamente possíveis desta palavra em uma linguagem.

Embromação pode significar: enrolação, embuste, mentira, tapeação, armação, fingimento. Em termos mais compostos: passar o tempo, fazer mal feito, não fazer algo e dizer que está fazendo. Ou seja, embromar tem a ver com aparecer, com fazer de conta. Na tirinha do Dinâmica de Bruto, que coloquei abaixo, o “embromation” ocorre quando uma pessoa não sabe fazer alguma coisa – cantar, filosofar, pintar… Embromamos quando não sabemos o que fazer, ou quando o sabemos apenas vagamente.

Podemos também pensar que o “embromador” faz algo que não está ligado a seu desejo. Nesse sentido, seu maior inimigo é o tempo; melhor: a temporalidade. É como se, não podendo preencher seu tempo com atividades que, de fato, corresponderiam a seu desejo, fosse preciso fazer o tempo passar com “qualquer bobagem”. O embromador se auto-engana, e, mais grave ainda, o “embromado” é, na hipótese mais ingênua, enganado; na hipótese mais cínica, o embromado é um leviano, que não rompe a farsa. Por exemplo: o que deve fazer o professor quando o aluno está embromando? Quando, num seminário ou exposição em que tem de se revelar minimamente articulado, fala uma linguagem oca? E o que o próprio aluno, na situação inversa, que está diante de um professor embromador, pode fazer? Quando tal professor passa atividades sem finalidade pedagógica aparente, ou quando, da mesma forma que o aluno (embora em outro nível), tem uma linguagem oca? O mesmo se poderia perguntar em relação ao participante de palestras de auto-ajuda, ou a um vendedor e muitos outros “atores” da vida social contemporânea.

Mas o discurso da embromação pode também ser uma arma: quando queremos acusar, diminuir a credibilidade de alguém, podemos dizer que essa pessoa está embromando. Nada mais cínico do que isso também.

Há, provavelmente, alguma antropologia no ato de embromar. Talvez tenha a ver com o conhecido “jeitinho brasileiro”, situação típica na qual os envolvidos sabem estarem engajados num simulacro – finja que compreenda o que eu falo, e eu finjo que estou sabendo o que estou falando. Repetições enfadonhas, truísmos mais rasteiros, metáforas estapafúrdias, linguagem privada (delírios mentais) passando-se por fala pública, brincadeirinhas ansiosas, “dinâmicas para revelarem-se os sentimentos”, paráfrases, orelhas-de-livro, sentenças “eu-acho que”, e tantas outras, compõem o cenário da foule à deux da embromação.

O que faz um lugar ser “rico”?

Como já disse incansáveis vezes aqui, que bom que a febre-blog/internet nos permite falar (quase) sem escrúpulos teóricos. Pois bem. Hoje vou colocar aqui outro tema, analisado sob uma ótica muito particular: por que certos lugares são ricos, enquanto outros, não? Por que há cidades, estados, países, muito mais ricos do que outros?

A riqueza é um termo relativo: pode referir-se a uma dimensão econômica (mais óbvia), mas também a uma dimensão cultural, política, social (IDH, por exemplo), etc. Quem já circulou por várias cidades, no Brasil e no exterior (e não precisa ter sido muito!), deve notar a diferença: na fachada dos prédios, no cuidado das ruas, na beleza e estética das praças públicas… e no jeito de as pessoas se vestirem (não me refiro à moda propriamente dita, mas ao “grosso”, à média da população-média). Em algumas cidades, a beleza (que não é relativa, convenhamos!) salta à vista; em outras, a desolação: sujeira, terra, grosseria visual, caos urbano. Obs.: esqueçam, por um minuto, certa “fenomenologia” do “olhar estrangeiro” (exemplo: turista em lugar obviamente subdesenvolvido achando tudo “maravilhoso”).

Riqueza (econômica) está associada à disponibilidade de capital. O sudeste brasileiro, historicamente, é o mais atrativo economicamente. Por quê? Muitos motivos: maior mercado consumidor, custo de logística mais baixo, concentração de empresas, aeroportos com fluxo gigante de pessoas, etc. Mas, no fundo: mercado consumidor.

Mas a pergunta menos óbvia é: de que modo a pobreza pode ser associada ao “comportamento” das pessoas? À sua mentalidade? Riqueza, em sentido não-econômico, arrisco dizer, está associada à disposição, à vontade (interna ou não) de colocar-se a serviço de algo. Riqueza é capital de natureza não propriamente (ou somente) econômica: se eu trabalhar, se eu “servir bem”, e se TODO MUNDO fizer o mesmo, haverá uma elevação geral da riqueza compartilhada.

O capital (econômico) é uma derivação; sempre, uma derivação. O que o vulgo não entende é que a equação que frequentemente cria está ERRADA: quanto mais dinheiro, mais motivação, mais vontade, mais desejo de fazer algo bem feito; essa é a mentalidade que contamina todo o circuito de trocas, a base sociológica do que entendemos, genericamente, como mercado. Mas como somos enganados pela mitologia do dinheiro, não?

Prefiro ouvir a falar (6)

Fábula sobre a vida social

Normalmente, quase ninguém possui ratos de estimação – pelo menos não como fazemos com os cachorros e gatos: convivendo conosco no dia-a-dia, compartilhando conosco o cotidiano. Ratos, em geral, vivem uma vida clandestina, não podendo tomar parte do convívio amigal com os humanos. Eles não são bem-vindos: se achamos um rato em casa, tratamos logo de colocá-lo para fora (na verdade, o impulso é matá-lo!).

A vida clandestina do rato complica sua busca por comida. Ratos não têm uma vasilha para comer, onde humanos lhe colocam ração duas vezes ao dia! Precisam sair para caçar restos de comida, pedaços de pão velhos, alguma sobra. Para sair da toca e voltar com segurança (e com o alimento), o rato precisa empreender um verdadeiro malabarismo – sair à noite, espreitar por frestas, arrastar-se sorrateiramente e, caso seja flagrado, precisa desaparecer como fumaça, sendo mais rápido que seu possível predator (frequentemente, um humano).

Ao vencer a luta diária pela comida, em um lugar hostil (a casa onde ele não é bem-vindo), volta para a toca, come e, provavelmente, dorme. A tranquilidade termina quando é hora novamente de voltar a se inquietar com o estômago.

Alguém sabe me dizer se os ratos, depois de alimentados, gostariam de dividir o convívio com os humanos? Brincar com estes? Correr atrás de objetos lançados pelos humanos e trazê-los de volta, felizes com a conquista? Dificilmente. Os ratos, imagino, não toleram os humanos; não foram feitos para conviver com estes em ambiente compartilhado.

Contei esta estória sem sentido sobre ratos e sua busca por alimentos para falar, metaforicamente, sobre o que acho que às vezes é o ser humano vulgar (=comum): só sai de casa para buscar alimento. Quando convivem no espaço público com outros seres humanos, muitas vezes o fazem por pura distração. Não vêem a hora de voltar para casa com o alimento e ali repousar. Poucas pessoas, se fossem efetivamente “normais”, sairiam de casa de bom grado, exceto se tornassem tal saída um expediente privatizante (“vou sair com a minha turminha num lugarzinho da gente…”). Pois, contra toda uma lenda histórica, talvez só os gregos, em sua sabedoria adulta de “cidadãos da polis”, realmente se importassem em sair de casa para discutir, com outros, o destino comum….

Warehouse 13

Para quem gosta de ficção científica, aqui vai uma dica. Trata-se da série da SyFy norte-americana chamada Warehouse 13, ou Depósito 13. A história, que em 2012 vai para sua 4 temporada, gira em torno dos agentes Pete Lattimer e Myka Bering, os quais têm a missão de buscar e recuperar objetos com poderes paranormais. Uma vez encontrados, tais objetivos devem ser catalogados e arquivados no Depósito 13.

Venho assistindo à série desde o primeiro episódio e, como toda história com muitos episódios, há altos e baixos. Alguns dos últimos da 3 temporada pareciam implausíveis demais, mesmo para um estilo ficção. Mesmo assim, é divertida e nos ajuda a passar um bom tempo descontraídos. Um dos pontos fortes é a rapidez e agilidade com que os episódios são filmados (às vezes para compensar, penso eu, a pobreza do texto – mas não vamos ser críticos aqui, certo?).

Se pensarmos bem, os objetos de nossa vida cotidiana têm algum poder sobre nós – evidentemente, não paranormal ou sobrenatural (como em Warehouse 13), mas um poder semiótico: eles concentram memória: de um lugar, uma pessoa, uma perda, um ganho, uma escolha, um erro, um acerto. Objetos nos rodeiam e são uma extensão de nós – ou nós deles! Ofuscados pela sua cotidianidade, passam, na maior parte do tempo, desapercebidos por nós, mas estão sempre aí.

Objetos podem assumir o que Winnicott denominava de uma propriedade transicional, fazendo a ponte entre a ilusão e a realidade. Tudo tem a ver com as primeiras experiências de vínculo da criança: uma vez notando que a mãe não é parte dela, cria uma ilusão de sua presença – por exemplo, agarrando-se a um cobertor ou ursinho de pelúcia. Desenvolvemos, vida afora, nossos apegos a objetos transicionais. Eles constituem áreas intermediárias entre nosso mundo interno e o mundo externo, objetivo.

Warehouse 13 explora justamente essa relação subjetiva-objetiva entre nós e nossos objetos. Mostra o quão grande é a dependência do humano dos objetos que eles próprios criam. Para quem quer descontrair um pouco, e não se envergonha de algumas “catarses” vez ou outra, é um bom passatempo.

 

Velhice

Estou lendo o último livro de Philip Roth, Nêmesis. Há um trecho, no qual o personagem principal fala de sua avó, que cuidou dele desde quando sua mãe morreu no parto, que me chamou a atenção. Identifiquei no trecho minha própria avó (com 96 anos!) e, principalmente, minha mãe, que semana passada fez 72 anos. É muito complicado quando você vê sua mãe com essa idade, e mesmo quando você mesmo começa a notar, visceralmente (não pelo cérebro, quero dizer), que você envelhece e que sua vida é uma tênue linha, um espirro ao mesmo tempo maravilhoso e fugaz. Enfim, transcrevo o trecho a seguir.

“Naquela noite, observando a avó enquanto esta lhe servia o jantar, ele se perguntou se sua mãe se parecia com ela caso houvesse tido a sorte de viver mais cinquenta anos – débil, curvada, ossos frágeis, cabelos que tinham perdido a cor décadas antes para se converter numa fina lanugem branca, dobras fibrosas nos braços e papada sob o queixo, juntas que doíam de manhã e tornozelos que inchavam e latejavam ao anoitecer, pele translúcida e tão fina como uma folha de papel nas mãos manchadas de marrom, cataratas que haviam encoberto e descorado seus olhos. O rosto que encimava a ruína do pescoço era agora uma complexa malha de rugas, sulcos tão diminutos que pareciam ser obra de alguma ferramenta bem menos grosseira do que o formão da velhice – talvez um buril para gravar em metal ou o bilro de um fazedor de rendas, manipulado por um mestre artesão a fim de lhe dar a aparência de uma avó tão velha quanto as mais velhas no mundo” (p. 89).

 

 

Redução de escopo

Olá, pessoal
Aos que me acompanham aqui no blog, esporádicos e contínuos, informo que estou reduzindo o escopo de minha “inserção” na Internet. Estou excluindo minhas contas no Facebook e no Twitter. Ficarei só por aqui no blog e na minha página pessoal (https://www.pedrobendassolli.com). Portanto, nada muda: continuamos a nos encontrar neste endereço. Já está bom para mim!

Os pobres das Américas

Hoje li duas pequenas notas que me chamaram a atenção. A primeira, do Brasil, é sobre uma estatística absurda relacionada à demissão de pessoas no país. Ao redor de 42 milhões de brasileiros foram demitidos sem justa causa nos últimos quatro anos e meio (sobre 73 milhões de demissões). O ministro do trabalho diz que isso tem a ver com a falta de qualificação do trabalhador: os patrões demitem porque precisam de gente mais preparada para realizar as atividades.

Não entendo de economia, mas quando esse número de pessoas são demitidas, e quando, ao mesmo tempo, as taxas de desemprego são relativamente baixas, isso significa que há uma elevada rotatividade: a pessoa não fica muito tempo no mesmo emprego. Também não é dito em que nível isso ocorre, mas tenho a impressão que é na chamada base da pirâmide, com os trabalhadores de menor instrução. Obviamente, há também o desemprego de colarinho branco, mas alta mobilidade em massa só pode ocorrer entre a força de trabalho mais vulnerável.

Como psicólogo organizacional, me pergunto se há alguma novidade nisso – pelo menos se considerarmos a velha máxima do “exército de reserva”, de Marx. Além disso, maior mobilidade também pode indicar aquecimento econômico e maior facilidade para o trabalhador encontrar empregos mais interessantes para sua vida (que pague um pouco mais, por exemplo). Em suma, podemos relativizar esse número impressionante de demissões. Porém, talvez seja igualmente interessante se perguntar o que está se passando nas relações de trabalho, mais particularmente nos processos de gestão, para alimentar essa cifra. Teria o trabalho perdido seu significado subjetivo, e estariam empregadores (e, quem sabe?) e empregados se desfazendo de seus vínculos como se troca de roupa?

Outra notícia que li vem dos EUA. Uma imensa massa anônima, auto-intitulada de os 99% da América, está postando na Internet declarações que vão desde um espírito anti-Wall Street até algo que lembra muito a filosofia dos Alcoólatras Anônimos misturado com certa auto-exposição vitimizante. Veja aqui uma tradução do texto em que tais 99% se definem. Aqui no Brasil, lembro-me de ter visto algo similar (embora em muitíssimo menor escala): a pessoa desempregada tentando chamar de alguma forma a atenção. Nos EUA, dentro de seu individualismo cultural de massa, o átomo (indivíduo) se junta a uma infinidade de outros para gerar alguma reação no plano público. Lá, talvez a tentativa chame realmente a atenção (Sociedade do Espetáculo?); aqui, acho difícil, pois todos os dias assistimos pedintes pelas ruas, entregues à sua própria sorte, e duvido que nos sensibilizemos em massa. Sozinhos, vamos vivendo os dramas diários de “empregadinhos” facilmente descartáveis. Isso é tão dramático que nem sei como concluir este texto (a não ser assim: de forma abrupta).

Vontade de partir

O que nos faz enraizar num lugar? Talvez, considerando a história da humanidade, sejamos muito mais nômades do que criaturas sedentárias. O problema é que, nos assuntos humanos, o tempo, a insistência e a repetição têm um valor importante. Não dá para começar algo e logo interrompê-lo. A menos que abracemos a idéia de uma vida errática, sem trajetória fixa.

Acho que o homem (gênero), mais do que a mulher, tem sempre dentro de si o desejo de abandonar tudo, de deixar tudo para trás. Uma verdadeira utopia: em Passargada, seremos amigos do Rei… Em algum outro lugar nossa vida pode desabrochar mais do que neste em que estamos.

E por quê? Talvez porque não consigamos honrar desejos que achamos que tomamos em outro momento, no passado. Os desejos de hoje, realizados, parecem não deixar em você nenhuma sensação de identidade: eu quis isso? Eu fiz o que fiz porque queria estar onde estou? É às vezes difícil se conectar consigo mesmo no passado, exceto por um compromisso moral (assumi, cumpro).

Mas a mobilidade traz custos às vezes elevados. Além disso, ela depende de competência e de um “mercado” – não podemos nos dar ao luxo de ir embora para onde quisermos: é preciso haver emprego. E, junto deste, a reprodução da vida (comer, beber, morar, divertir-se). No passado brasileiro, um exemplo foi o fluxo migratório aqui do Nordeste para o Sudeste (hoje sendo invertido). As pessoas iam atrás de emprego. A mobilidade era colada à sobrevivência.

Há, apesar de tudo, um encanto sedutor, hipnótico, no desejo de mudança, de deixar o lugar em que se está. Ainda mais quando temos “vários mundos” em nosso espírito!

Para entender essa vontade de des-investir, de deixar tudo em nome de uma “nova vida”, um bom livro literário é Doutor Pasavento.

Focas e bestas

Uma vez eu li um livro no qual o autor, que discutia sobre “ética animal”, propunha a existência de três tipos de posturas éticas em relação animais: (1) há aquela pessoa que NUNCA sentiu nada pelos animais, tratando-os como objetos indiferentes; (2) há pessoas que têm dentro si uma sensibilidade adormecida: basta um pouco de reflexão ou de estímulo para fazerem despertar seu respeito e sentimentos pelos animais; (3) há aquelas que SEMPRE, desde quando saíram do berço, sentem algo pelos animais.

Hoje vi este filme abaixo. Imediatamente, fiquei imaginando os covardes matando esses bichos. E, sabemos, o fazem da forma mais cruel possível. Acho que a razão traz consigo responsabilidades: SABEMOS, ou deveríamos, que torturar os animais e matá-los é uma atrocidade. Sabemos disso, não há dúvida. Mas, claro, o conservador que me lê pode pensar: ué, mas deveríamos também saber que maltratar uma criança, matar outro ser humano, roubar ou coisa que o valha, são atividades inaceitáveis, pois desestruturam o equilíbrio social e fazem os outros sofrerem. Mas, há uma diferença: trata-se de seres humanos racionais, cientes do que estão fazendo (exceto o psicopata mais doente). Nossa relação com os animais é diferente: eles não têm razão, eles não compartilham conosco o mesmo campo ético; mas, ao mesmo tempo, e por conta justamente disso, merecem nosso respeito – pois temos possibilidade de escolha.

Aos covardes do mundo que fazem mal aos animais, aos conservadores mais desalmados, lamento fazer parte da mesma espécie que vocês! Eu me envergonho de dividir o mesmo “dom” da racionalidade que vocês.


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