Viver é refazer – excurso delirante

Foucault disse, em algum lugar de sua vasta obra, que chega um momento em nossa vida que a única possibilidade de continuar vivendo é reinventando as coisas, algo como não se conformar com o que nos foi legado, ou nos é ofertado a cada momento. Reinventar é fazer diferente; interromper um fluxo de acontecimentos baseados em inferências a partir de hábitos ou repetições passadas.

Mas como reinventar? Como ser auto-reflexivo a ponto de instituir, no mundo, uma forma de enunciação da realidade que nos pareça mais inteligível? E o que fazer da angústia que surge quando, à busca de tal saída do fluxo ordinário (às vezes, do próprio pensamento!), nada encontramos senão gêneros linguísticos disponíveis, resíduos fortes da socialização (primária, secundária…) e uma espécie de falência semiótica?

Como criar um “mundo” em que nos sintamos à vontade, mesmo que num pequeno espaço sujeito a inevitáveis, contínuas e vorazes “des-territorializações”?

 

Prefiro ouvir a falar (1)

Humanidade

Precisamos transformar TUDO em fato científico? Só os obsessivos…

Max Weber disse, no início do século passado, que os empreendedores capitalistas (na ocasião, ele se referia aos norte-americanos), não iriam parar até que o último combustível fóssil deste planeta fosse queimado. Estou parafraseando. O contexto do argumento era o capitalismo. A analogia serve para pensar em algo semelhante, porém não na esfera da economia: a ciência não faz a mesma coisa? O desejo de explicar tudo, de transformar tudo em um “fato científico” parece não ter medida.

1. Primeiro, pensemos no mundo pequeno da pesquisa: todo aluno que deseja fazer mestrado ou doutorado tem de “descobrir um tema” para pesquisar. Vale tudo: a engrenagem teórica tritura tudo o que encontra pela frente. Na psicologia, se você é um afeito à psicanálise, você pode querer explicar desde porque crianças não tomam leite ou gritam demais até porque as pessoas não obedecem a lei ou são violentas. Se você é um comportamentalista, pode querer entender desde a vida das formigas, macacos e outros animais até porque suamos frio quando ouvimos o sino da igreja tocar em um sábado à noite. Exagero, simplificação minha, mas o ponto está correto: tudo vira fato científico. Quem é que já não presenciou o desespero dos jovens que entram para um mestrado, antes de se tornarem “estáveis” em algum nicho disciplinar?

2. Tornar tudo passível ser pesquisado, escrutinado, explicado, é, mutatis mutantis, semelhante ao que faz um pensamento religioso ingênuo: tudo é explicado recorrendo a Deus. Chouveu? Foi porque Deus quis; o dia amanhece, a noite cai: Deus quis. E assim por diante. O desconforto é incalculável para o devoto alienado que não consegue encontrar no mundo senão a teleologia divina. O cientista alienado, idem. Seu desejo de saber, de dominar, de prever, pode não alcançar fim. Cientistas, na versão caricata do indivíduo que vê o mundo como um laboratório, tem uma curiosidade obsessiva. Ou então é um competente e disciplinado agente capaz de transformar o mundo físico em nosso benefício. De fato, o que seríamos sem eles? Provavelmente, um bando de bípedes sem penas caçando com lanças primitivas.

3. O que é um fato científico, pensando, particularmente, nas ciências humanas? O que pode ser passível de ser explicado, convertido no jargão científico? Há quem diga que um fato científico surge de algum desfuncionamento: o que não funciona conforme o planejado deve ser reparado. O amor se torna um fato científico quando se revela uma esfera problemática para os animais humanos; o trabalho, idem. O mesmo para a saúde, a educação, o lazer. Metemos o nosso nariz científico em como as pessoas jogam futebol, como elas fazem sexo, como elas dormem, como elas comem, como elas lidam com as perdas, com seus medos, com esquisitices….enfim, tudo.

4. Mas não é só o Lattes que anima a transformação compulsiva-obsessiva de tudo em fatos científicos. É a falta de criatividade, a dificuldade de um pensamento autônomo, em suma, falta da capacidade de ser adulto, de debater as coisas entre adultos, e de resolvê-las. Mas, não: é preciso passar pelo crivo científico, pelas normas da APA, da ABNT-2, dos objetivos claros e “focados”; é preciso passar pela crítica de que você não respeitou as regras básicas do método científico. Patético, pois, enquanto isso, o mundo gira em sua órbita indiferente. Pior: o mundo humano parece pouco se importar com o que se produz nas ciências humanas. Tem-se ali forças muito mais poderosas de explicação, enraizadas profundamente em hábitos, cultura, pressupostos. E não adianta, defensivamente, dizermos que “são ingênuos”. Santo Deus – qualquer pessoa, em universidades brasileiras, sente na pele o que, de fato, é ingenuidade.

5. Às vezes, dá vonta de dizer: que cada um viva sua vida e faça dela o que quiser; não precisam DESSA [ambiguo, certo?] ciência para lhes dizer o que fazer.

6. Vamos admitir um possível “fato”: que nós precisamos inventar fatos para moermos, na máquina científica, dissertações e teses. Veja bem: não quero dizer que fazer isso é coisa de não-adulto; há valor nisso, mas é preciso procurar com lupa. Portanto, talvez parecendo autoritário, concordo com decisões de um terceiro (o Estado) sobre quais áreas são ou não “prioritárias” para se investir dinheiro. O investimento deste último está, claro, sujeito a humores políticos, bem como podem induzir pesquisadores a construirem a “indústria da pobreza” ou algo similar só para conseguir recursos públicos, ostentar seu status de “pesquisador do Cnpq”, etc. Mas precisamos de algum critério de valor que nos ajude a decidir, pela esfera pública, o que é desfuncional e merece um escrutínio, sério, científico.

Entrevista com o estagiário

Engraçado vídeo com um estagiário. Vale a pena conferir. O final é bem interessante, pois mostra a diferença colossal entre dizer e fazer no campo do trabalho!

Psicologia e trabalho

Acaba de sair um artigo em que discuto algumas formas de “apropriação” do trabalho pela psicologia. Ou seja, coloco em perspectiva três abordagens ao trabalho: a organizacional, a social e a clínica, problematizando suas semelhanças e diferenças.

O artigo, publicado pela revista Psicologia & Sociedade, pode ser acessado abaixo.

Quanto vale um pardal?

Uma metáfora muito forte, que comove a todos ou que mobiliza nossos afetos mais ocultos, é a de um pássaro sendo solto de uma gaiola. Ver o animal voar, depois de ter sua liberdade tolhida ou mutilada, é algo com o qual nos identificamos – afinal, também somos, sob muitos aspectos, criaturas cativas.

Hoje pela manhã tive essa sensação atualizada. E em circunstâncias especiais: estava passeando com minhas duas cachorras em uma praça pública perto de minha casa. Acidentalmente, quando passava debaixo de uma árvore, notei que havia um passarinho (um pardal) preso por uma das pernas. Quando prestei mais atenção, percebi que ele não estava preso por puro acaso ou acidente: ele havia sido preso ao galho por uma linha – na verdade, praticamente por um novelo inteiro de linha!

Imediatamente, subi em um banco, quebrei o galho e comecei uma dolorosa (para mim) tentativa de libertar o passarinho. Ele havia sido efetivamente bem preso: foi passada em torno de todos seus pequenos dedinhos uma linha que os prendia ao galho. Cortei o feixe principal de linhas e fui, ao longo de uns 20 minutos, soltando uma-a-uma, até que finalmente consegui o livrar das amarras. E, claro, esse momento foi muito gratificante, pois, ao soltá-lo, ele voltou imediatamente a voar. Mais impressionante, durante todo o tempo em que fiquei me esforçando para libertá-lo, ele ficou imóvel, como que agradecido. Não há nada que pague isso.

O que fez alguém fazer aquilo? Minha primeira hipótese é de que se tratava de uma atividade popularmente conhecida como “macumba”. A segunda hipótese é de que se tratou de algum exercício de maldade, no seu estado mais puro. Num caso como no outro, creio que posso usar a palavra “mal”. E não a uso em sentido religioso, mas em sentido prático: no sentido de uma ação cuja motivação é fútil ou extremamente egoísta, maquiavélica, desprezível.

Sei que podemos olhar a realidade de muitas formas. Para muita gente, o que importa é atentar-se ao que é “útil” para os seres humanos: por exemplo, fatores macro-econômicos, política, taxa de emprego, saúde e educação. Não discordo. Porém, se colocarmos um “zoom” nas práticas cotidianas mais imperceptíveis, vamos ver que muito da natureza humana se deixa revelar aí – alguém que faz isso com um pardal, que, não fosse a sorte de eu tê-lo visto, a esta hora estaria ainda lá se debatendo para escapar (o que dificilmente iria acontecer), será com certeza conivente ou apático a tudo o que diga respeito às outras esferas da vida em sociedade. O mal, o desprezível, a ignorância, a crueldade, a covardia, a mesquinharia, tudo isso acontece, antes e acima de tudo, nesses pequenos micro-gestos, mergulhados no caldo de nosso cotidiano e desprovidos de qualquer conteúdo ético mínimo.

Vergonha diante da Itália (shame in face of Italy)

O episódio surreal da decisão de libertar Cesare Battisti deixou muitos brasileiros profundamente envergonhados. É provável que nem todo mundo esteja a par do ocorrido, nem, por esse motivo, conscientes da injustiça cometida contra a Itália. Sob o disparate de afirmar que a decisão levou em conta a “soberania nacional”, alimentamos uma mentira coletiva que, certamente, não corresponde senão às nossas instituições e às pessoas que as comandam. Gostaria que os italianos soubessem que a sociedade civil brasileira se solidariza com eles e não é, de forma alguma, conivente com assassinos nem, muito menos, com certa idéia propagada, segundo a qual no Brasil os espertos se dão bem…

Mensagem aos leitores italianos que por ventura passem por aqui:

I would like to send a message to the Italians. I would like you know that we Brazilians, as a Civil Socity, are deeply embarrassed by the decision made ​​by our institutions concerning the non-extradition the murderer Cesare Battisti to Italy. We are very sorry for this, and remain confident that justice will be done.

Mal-estar na civilização do trabalho

Tivemos, na manhã de ontem, uma mesa-redonda inspirada pela discussão da obra Mal-estar na Civilização, de S. Freud. A disparadora da discussão foi a psicanalista Ruth Jeunon, em resposta a quem o prof. Jorge Falcão e eu reagimos: no meu caso, explorando o porquê de o trabalho ser visto de modo tão restritivo na obra freudiana em questão:

1. Como poïésis – ou seja, com produção de coisas úteis (muito próximo do sentido de labour, tal como discutido por H. Arendt)

2. Como via de sublimação, porém (e esse é o detalhe), reservado a poucos homens, os Grandes Homens, tais como pessoas das artes ou das ciências.

Nossa provocação foi no sentido de questionar as possibilidades de se ampliar o raio da sublimação a partir de um olhar mais inclusivo sobre o que constitui o trabalho:

1. Como “opus” – ou seja, obra de arte

2. Como “trabalho psíquico”, trabalho sobre si, usando o termo Arbeit da obra freudiana: na medida em que o trabalho nos confronta com o “real” (no caso, com aquilo que nos escapa, com o “indizível que precisa ser, não obstante, dito”), ele nos convoca a desenvolver recursos de enfrentamento.

No final, nossa discussão encaminhou-se para a questão do julgamento de beleza e utilidade implicados no trabalhar, via reconhecimento do outro. O trabalho é, ao mesmo tempo, labour, opus e arbeit – ele liga o sujeito à realidade, aos outros e “devolve”, por meio desse mesmo processo, uma imagem sobre quem somos (identidade).

Uma manhã muito instigante e que nos deixou a todos com desejo de “quero mais”, além de ter deixado importantes questões no ar, como, entre outras, se é possível fazer psicologia do trabalho no “diálogo” com a psicanálise.

Colonização do RH no Brasil

Ainda seguindo com as indicações, gostaria de fazer mais uma. Trata-se de artigo publicado por Thomaz Wood, Maria J. Tonelli e Bill Cooke, sobre a colonização da área de gestão de pessoas no Brasil ao longo de vários períodos-chaves do desenvolvimento de nosso país. Vale muito a pena para quem trabalha ou estuda as questões de Recursos Humanos.

É interessante dizer que a RAE, onde o artigo foi publicado, comemora 50 anos, sendo a revista de Administração mais antiga do Brasil, ao menos das que publicam ininterruptamente. O layout dos artigos foi alterado, ficou bem mais moderno e “clean”. Já recomendava antes, agora recomendo mais ainda, esta importante revista, onde tive a oportunidade de trabalhar alguns anos atrás.


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